segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Brasil: Corrupção e Burocracia


                                
        Por quanto tempo ainda a elite pensante no Brasil irá choramingar sobre a herança maldita da sofrida colonização luso-ibérica?

        O legado das ordenações manuelinas e filipinas criou diversas ilusões no Brasil colonial. A primeira delas estaria em que as determinações de el-Rei poderiam dispor sobre a realidade ambiente tanto cível quanto comercial e penal de modo discursivo. Colocadas no papel teoricamente pelo monarca, quase tudo o mais já estaria disposto. A sua adequação à realidade colonial seria consequência natural do sentido verticalizante  dessas disposições régias.

        Trazidas pelas naus e caravelas do soberano, a sua obediência como implicação imediata, como real pressuposto que sequer entrava em consideração, eis que tanto a obediência, como a latitude de seu emprego não deveriam ser objeto de qualquer outra reação que a do súdito que não carece de interpretação ou qualquer outra reação que hoje chamaríamos de pró-ativa.

        Quanto mais excessiva a submissão, menor a carga de pensamento que porventura busque melhor entender e, por conseguinte, aplicar as noveis disposições de el-Rei.

       Dada a diferença hierárquica entre colônia e metrópole, e a falta de qualquer participação do longínquo súdito real na ordenação do monarca reinante, a possibilidade de inadequação do diploma real tenderia a crescer. A fortiori, atendida a deficiente comunicação entre os baixos cortesãos encarregados dos domínios da Coroa, assim como o caráter especial e mandatório da ordem recebida, é de supor-se que a obediência presumida não implicasse em que o novel ditame de pronto se inserisse necessariamente como alteração da(s) ordem(ns) preexistente(s).

       A não ser nos casos expressos em que a nova Lei derrogasse a precedente - o que os leais servidores da Coroa se predispunham a fazer seria reservar as novas determinações o devido lugar para consideração futura, o que decorreria da leitura e estudo pelos comissários reais dessas  ordenações, e como deveriam ser vistas e adequadas dentro do quadro geral normativo da colônia.

      Dada a disparidade hierárquica entre a Corte distante e os recipiendários da repartição colonial, tal exame deveria ser procedido com a atenção e os cuidados pressupostos no caso, assim como consoante as normas consuetudinárias que presidiam à recepção, estudo e análise, a que se seguiria, se não houvesse dúvidas quanto à inserção da norma nova nas normas precedentes, já fruindo de antigas avaliações, e o que talvez pesaria com mais força na hierarquia colonial, a aplicação prévia e difundida das determinações anteriores.

      Se tivermos presente os tempos de comunicação na colônia, e a não descartável sempre possível existência de temidas contradições na interpretação da nova ordem diante da antiga, assim como na sua eventual aplicação sem dúvidas e discrepâncias, não se poderia excluir que as instâncias da real administração colonial tenderiam em muitos casos a encarar com mais favor o que el-Rei antes determinara, se cotejado com as novíssimas ordens para os negócios coloniais.

      Não é ocioso, portanto, presumir que em certo número de determinações reais, haveria de parte de seus leais empregados a inclinação por optar pelo já provado em termos de usos e usanças, sobretudo se houvesse discrepâncias maiores entre ambas. O natural conservadorismo na colônia entre o novo, com ignotas consequências e aquele já provado pela aplicação, tenderia a levar a administração colonial à posição, em casos de menor urgência, a manter a escolha antiga. Em tais circunstâncias, o favorecimento da norma precedente se apresenta como decorrência natural, e pode até ser visto como no interesse de el-Rei, evitando que um novo moço de escrivaninha possa vir a introduzir novéis e discutíveis normas, cujas consequências se afigurariam imprevisíveis.

      Dessarte,  o conservadorismo da administração colonial pode ser havido como a posição predileta desses leais súditos de el-Rei. A par da prudência administrativa, que preza mais o já provado manejável, diante dos riscos (de qualquer natureza) porventura colocados por nova e não-provada determinação, perpassa em toda burocracia colonial a preocupação com a eventual reação de seu próximo público na colônia. Não há de esquecer-se, outrossim, dada a relação umbilical com o soberano, para resguardar a respectiva sobrevivência burocrática, os respectivos encarregados dirigentes terão igualmente o cuidado maior de preservar os interesses de el-Rei, e nesse sentido não é incomum que possam vir a ser mais realistas do que Sua Majestade.

      E essa inquietude deve ser entendida como vetor relevante na questão ora submetida. A aparente resistência da administração colonial nada tem de insurrecional. Constitui apenas a reação natural de uma elite burocrática que, ao considerar a possibilidade de má reação dos suditos da colônia, adota postura que, em parecendo discrepar da determinação de el-Rei, está na verdade cerrando fileiras pela norma antiga e já provada como não-suscetível de induzir reações adversas ao Soberano na colônia. Em assim agindo, protegem duas situações: a própria, que seria ameaçada pela nova ordem, e, por conseguinte, a dos interesses da Coroa.

      Tudo isso explica, por conseguinte, não só a prevalência do conservadorismo, mas também a paralela resistência administrativa ao novo, e a consequente menor inserção das ordenações reais na realidade colonial, dada a preferência pela posição conservadora e, portanto, necessariamente apartada da realidade colonial.

                                                                       (a continuar)

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