sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Brasil: Corrupção e Burocracia (IV)


                                            

        A corrupção, se não terá especiais preferências por formas de governo, tenderá a desenvolver-se mais se o regime não gozar de maiores controles, se não houver o bom exemplo das principais autoridades do Estado, e se a deterioração nos costumes induzir à lassitude. Essa fadiga no tecido social pode induzir a virtual estado de anomia, em que, por falta de exemplo, de regras claras e de sua aplicação democrática (i.e., a presunção de 'exceções' tenderia para zero) as consequências se afiguram propícias para a criação de ambiente em que a possibilidade de uma cultura de corrupção possa implantar-se seja de forma setorial, seja de modo amplo.

        No estado absolutista, como foi o Portugal do século XVIII, e o Brasil colonial do mesmo período, se determinadas classes como a nobre e a eclesiástica gozavam de amplos privilégios, a sua autonomia tinha, em matéria de práticas e costumes, limites bastante nítidos. As aparências deveriam ser mantidas, máxime as do culto. Os familiares da Inquisição tinham os ouvidos acessíveis, e muita vez a excessiva desenvoltura social, e/ou a suposta ousadia de abraçar costumes ou retóricas de outras sociedades, vistas por uns como mais abertas, e por outros, como mais corrompidas, poderiam servir como torpes instrumentos de dominação, ou de cruéis lições para que o tecido social ficasse supostamente livre ou preventivamente vacinado[1] contra alegadas práticas dissolutas. Nesse sentido, o nome do brasileiro Antonio José da Silva[2], escritor e dramaturgo, constituiria o anti-exemplo, não só pela perseguição que sua família e ele próprio sofreram, mas sobretudo pelas soezes atenções que receberia na masmorra lisboeta, havendo sido encarcerado em 1737, e condenado como judaizante (sic) recidivo, tendo o corpo garrotado e queimado em praça pública, em 1739. Como se assinala, a histeria antissemita obscureceria por demasiado tempo o valor da própria dramaturgia, a exemplo da respectiva obra prima, Guerras do Alecrim e Manjerona (1737).

       Portugal (assim como a sua vizinha maior, Espanha) já adentrara as plácidas correntes de secular decadência. O tristemente célebre terremoto de Lisboa - a que Voltaire se reportaria a seu tempo e com inconsueta virulência - marcaria o século. Assinale-se, por oportuno, que o santista Alexandre de Gusmão seria também suspeito de ter sangue impuro, e somente a alta posição na cercania do soberano lhe evitariam, se não a maledicência, pelo menos insídias maiores do poder inquisitorial.

          Não escapará ao leitor a Derrama, que foi o anti-evento que precipitou a repressão contra a chamada Inconfidência Mineira. Sabedor por traição, o poder colonial que planejava recorrer à chamada derrama (cobrança extorsiva, feita em Minas Gerais, dos tributos ou quintos atrasados, para que a metrópole não ficasse privada de seu quinhão sobre o produto do trabalho das populações, e em especial a mineração) preferiu adiá-la e prender os principais implicados na conjuração mineira. O novo governador, Visconde de Barbacena, chegara à província em 1788, disposto a executar a cobrança. A conspiração, no entanto, fundada nesse motivo, logo vaza e com tal surge a mísera figura do traidor, Joaquim Silvério dos Reis, que, como sói acontecer, tinha outros a secundá-lo.

          Nos inconfidentes estava a nata da província, com o poeta Claudio Manoel da Costa, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, Alvarenga Peixoto, Tomás Antonio Gonzaga, os padres Carlos Correia de Toledo e Melo, Luís Vieira da Silva, e outros mais. Socialmente, o mais modesto era o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, o mais humilde, apesar de ser o mais ativo e proficiente. Talvez por isso, seria o único a sofrer a pena capital - os demais tiveram as sentenças comutadas - o alferes Tiradentes, que como cabeça do movimento seria executado a 21 de abril de 1792, subindo, em praça pública, os degraus da forca, a que se seguiu o esquartejamento.

             Está estreitamente ligada a esse gorado levante a obtusa arbitrariedade dos governantes portugueses. Depois da abundância na produção de ouro realizada pela intensa mineração nas primeiras décadas do século XVIII, sobreveio inexorável o declínio na explotação com o progressivo esgotamento dos veios auríferos.  Sob a ávida pressão da metrópole, tangida por seus dispêndios suntuários, a sucessão de governadores já vindos em período de vacas magras não tinha a coragem de arrostar a cupidez da Corte. Com efeito, o procrusteano mínimo fixado de cem arrobas[3] de ouro por ano (o chamado quinto) não mais correspondia à efetiva potencialidades dos veios auríferos.

              É interessante, de resto, ter presente onde realmente foi parar grande parcela da riqueza das Minas Gerais. A exemplo de sua irmã maior na península ibérica (notadamente com a prata do México e das minas do Peru), tampouco o emprego do ouro, a par de grandes despesas com monumentos, palácios e obras religiosas, boa parte dessas luzentes cem arrobas anuais das Minas Gerais - se não caíam nas mãos cúpidas de piratas e corsários da longa rota até a metrópole -  tomariam o caminho da velha Álbion e da poderosa ilha seguiria para a Nova Inglaterra, onde muito ajudariam no reforço do fundo de capitais e nos investimentos das colônias americanas de Sua Majestade britânica.

              Ao contrário da colonização espanhola, que fundou universidades em suas dependências de além-mar, a orientação lusitana seria bem diversa. A metrópole portuguesa temia o saber e  sua influência. Por isso, por aqui, nos tempos coloniais, inexistia educação superior. Àqueles que o desejassem, só estava aberto a rota de Coimbra. Dado o custo de tal traslado, é fácil de supor que nos bancos da vetusta universidade não haveria muitos súditos de Sua Majestade por graça de Deus Rei de Portugal e Algarve, nascidos no Brasil colônia. Para o punhado daqueles brasileiros que empreendiam a viagem oceânica, havia de presumir-se que, ou eram membros de famílias de posses, ou gozavam do raro favor de alguma instituição.

 

( Fontes: Enciclopédia Delta-Larousse, Jaime Cortesão )




[1] Tal metáfora já é admissível com a introdução da vacina contra a varíola no século XVIII.
[2] A.J. da Silva, dito o Judeu,  Rio de Janeiro  1705 -  Lisboa 1739.
[3] cerca de uma tonelada e meia (1.468 kg)

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