segunda-feira, 31 de março de 2014

Rússia, Poder regional ?

                                

        Engana-se redondamente Barack Obama se pensa haver redimensionado Vladimir Putin ao apodar a Rússia de poder regional. Com efeito, se algo se pode determinar com certeza no que tange ao Senhor do Kremlin é que ele, um realista, não atribui muita importância a classificações.

        A exemplo de outros assim chamados homens fortes que no passado confundiram, por vezes, os seus interlocutores e as potências da época, Putin alterna a agressão e palavras de paz. Sem embargo, se se examinar com atenção a outra face do presidente russo, se verá que com discurso na aparência pacífico, ele persegue e/ou complementa o objetivo já parcialmente alcançado por meios bélicos ou de implícita violência.

        Veja-se, por exemplo, o seu inesperado telefonema para o presidente americano. Em tais circunstâncias, a tendência natural será interpretar a iniciativa como um eventual repensamento do agressor Putin, que estaria buscando uma via pacífica para consertar o imbróglio por ele aprontado.

        Terá sido, acaso, ingenuidade do Ocidente ver na atitude de Putin uma possível abertura?   Não, porque as pessoas e os governos, a quente, tendem a projetar na contraparte o que faria alguém que se pauta por um comportamento dentro das regras não-escritas das relações interestatais. Imagina-se, dessa maneira, que gospodin Putin reavaliou a questão, e, diante da reação ocidental, estaria inclinado a fazer algumas concessões. Argumento supostamente forte em tal sentido seria o fato de ele haver tomado a iniciativa de reatar o contato, o que implicaria, se nos ativermos à interpretação acima exposta, a uma matizada admissão de culpa.

        Daí, a boa repercussão do referido telefonema, fundada apenas em premissas retiradas tão só da mente a quem visa a comunicação de Putin. Nesse contexto, a personalidade autoritária de Vladimir Putin tem diversos exemplos na história recente. Quem não se recorda dos gestos conciliatórios – que tanto animavam os pacifistas – tomados por Adolf Hitler, v.g., tão logo após realizar um ato de força, com que os propósitos posteriores se achavam em frontal contradição ? O agressor que se apresenta como a parte ofendida e, não obstante, insinua genéricas disposições de paz, não constitui, no figurino do imperialismo, nada de novo. Trata-se tão só de um aparente recuo – que visa a vesti-lo de boas intenções – e cujo precípuo desígnio será ganhar tempo, para voltar, em futuro por ele determinado, com novos reclamos.

         Assim, Putin colheu a deixa de Obama de que se deve recorrer à diplomacia. Telefona, ex-abrupto, para a sua contraparte americana, a quem terá agradado, como é natural, a iniciativa, máxime por provir da parte com culpa no cartório. Putin, o ex-agente da KGB, que preza manter suas cartas bem junto do peito no jogo de poker de altas apostas, terá sido vago quanto às questões a serem discutidas, mas enfatiza a concordância com a tese do homólogo de privilegiar a diplomacia.   

         O americano imputa essa postura à suposta necessidade de Putin de camuflar o alegado erro da anexação da Criméia, motivo pelo qual o russo elogia o método propugnado por Obama. Sob tal suposição, que paira no ar como os aviões de Aporelli, o presidente estadunidense concorda com a proposta de Vladimir de entregar aos diplomatas a incumbência de resolver a questão.

           A linguagem será necessariamente vaga, porque o escopo de Putin é como se diz vulgarmente passar gato por lebre. Nada é muito especificado, e os dois concordam em atribuir aos seus ministros do exterior a missão de deslindar a questão.

          É humano, volto a dizê-lo, que Barack Obama tenha concordado na reunião entre John Kerry, o seu Secretário de Estado, e Sergei Lavrov, o eterno Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa. No entanto, marcada e realizada a reunião em Paris, ontem dia trinta, eis que se verifica que o intuito do presidente Putin não tem a ver com a sua agressão e ulterior anexação – dentro de ‘modelo’ que muitos pensavam superado, em um mundo dos pacta sunt servanda (os tratados devem ser cumpridos) – mas com outra aplicação da diplomacia, voltada esta para a Ucrânia!

          Com tropas na fronteira, Putin agora pensa em valer-se da interveniência diplomática para fazer avançar a causa das populações no oriente da Ucrânia, que são em maioria de fala russa. Depois de apoderar-se da Crimeia, e de todos os navios de guerra ucranianos que lá encontrou, Vladimir Putin quer valer-se da diplomacia para intervir nos assuntos internos do governo de Kiev, a que pede, a princípio com os punhos de renda do mister, tenha o devido juízo para federalizar aquelas regiões habitadas por gente de fala russa.

          Ignoro por ora qual terá sido a reação do Secretário de Estado Kerry quando inteirado da real motivação da reunião. Se assentiu à discussão, o que me parece pouco provável, abriu ainda mais a porta para a progressão das intenções de gospodin Putin.

          Enquanto o Ocidente e os Estados Unidos de Barack Obama não se conscientizarem de que estão tratando com um realista à antiga, cortado nos moldes do figurino imperialista – e que se lixa de meras designações como ‘poder regional’ -, e que só entenderá a linguagem da firmeza, vamos continuar a assistir a reprise do filme sobre os atos de força seguidos de lânguidos e ôcos gestos de afirmação de uma estranha paz.  

         Como é sempre bom lembrar que os cenários e as armas mudam, porém os homens nem tanto, vale repetir a afirmação de Virgílio na Eneida: Timeo Danaos et dona ferentes (tenho medo dos gregos sobretudo quando dão presentes). Como se vê, desde a guerra de Tróia as armas mudaram, mas não os homens.

 

( Fonte: The New York Times )

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