segunda-feira, 17 de março de 2014

A Crise da Crimeia

                   

         O referendo sobre a Crimeia, considerado ilegal pelo Ocidente, produz o resultado esperado, com maciça aprovação pelos eleitores da península de sua anexação à Federação Russa. Segundo Washington, Berlin e Bruxelas, o procedimento, seja pela invasão de forças militares russas (posto que sem assumir a responsabilidade, ao envergarem uniformes descaracterizados), seja pela redação capciosa de falsa alternativa reúne todos os elementos para ser considerado como nulo de pleno direito.

        Isto será de somenos importância para o Senhor do Kremlin, que reedita, em pleno século XXI, ato de intimidação e força bruta como foi, v.g., o Anschluss da Aústria pelo Terceiro Reich hitlerista.

       Que tal despropósito possa vir a acontecer, não será decerto por acaso. A Federação Russa, hoje presidida pelo ex-KGB Vladimir V. Putin, é o estado-herdeiro da antiga superpotência União Soviética, implodida no começo da última década do século XX. Como sucessora virtual, a Rússia tem assento permanente no Conselho de Segurança e o direito de veto, além de dispor de boa parte do arsenal termonuclear  da defunta URSS.

       No entanto, a sua base demográfica – achacada por tendência ao envelhecimento e à redução na taxa de nascimentos – tende a encolher, malgrado as fumaças autoritárias de gospodin Putin e de seu círculo. Nesse contexto, será mais  pelos pendores atléticos e o torso nu, que Vladimir Putin pode ser comparado ao seu eventual modelo – o Duce Benito Mussolini. Assim, se o poder militar e econômico da Federação Russa está longe  de ser comparável ao da União Soviética, ainda conserva o deterrente nuclear e parte da grande extensão territorial. Por isso, será sobretudo pelas bravatas e a afirmação atlética que Putin é suscetível de comparações com o Duce. Quanto ao poder militar, no entanto,  não há comparação com as encenações do líder fascista.   

        Há muita especulação na imprensa internacional sobre as liberdades que Vladimir Putin tem assumido na política internacional. Durante o governo de George Bush, no episódio da Abkázia e da Ossétia do Sul, confrontou com êxito o Ocidente, a detrimento da Geórgia.

         Desta feita, contudo, a transgressão é bastante maior, pois manu militari interveio na península da Crimeia, a qual desde 1954 fazia parte da Ucrânia.  Naquela época, a passagem da península para a Ucrânia configurava questão interna da URSS. Com a independência das diversas repúblicas soviéticas, a Rússia pôde dispor de um porto para a sua esquadra no Mar Negro, inclusive com prerrogativas de exterritorialidade.

       Nesses termos, a anexação da Crimeia sublinha o imperialismo de Moscou.

       A pergunta que não pode ser calada é se Putin teria ousado apropriar-se na marra da península – todo o seu proceder está impregnado de afronta ao direito internacional e aos tratados respectivos – se a posição dos Estados Unidos fosse mais afirmativa.

      Dentro do velho dito – fantasma sabe para quem aparece – não é questão retórica a indagação quanto à postura do presidente russo, se tivesse pela frente mandatário em Washington com estratégia mais ambiciosa e afirmativa.

         A dita estratégia da cautela da Administração Obama, na verdade, se já prenunciada no primeiro mandato, se terá firmado (se cabe o verbo) no lusco-fusco do primeiro quadriênio.  Se anteriormente, pelo braço da OTAN, a primavera árabe fora muito incentivada na Líbia, com os bombardeios das forças de Kaddafi,  a postura de Barack Obama foi assaz diversa no que tange a Bashar al-Assad. O 44º presidente se deu ao luxo de contrariar parecer conjunto dos titulares do Departamento de Estado, da Defesa, e da CIA, quando se recusou a armar a Liga rebelde. Data dessa época o começo da recuperação do ditador sírio, com as consequências que hoje são infelizmente muito mais incisivas.

          A Rússia de Putin agradeceu penhorada o favor. Embaído por promessas de mais uma conferência de paz em Genebra – algum dia o Palais des Nations[1] poderia abrigar um cemitério virtual, i.e. a relação das malogradas conferências de paz ali realizadas -   o governo americano bem cedo enfrentaria novas condições na guerra civil síria. O próprio Putin se alçaria a dar conselhos a Obama através das folhas do New York Times.

          Há dúvidas se essa estratégia da cautela, preconizada por Obama, seja um derivado do chamado declínio da superpotência, que é tradução não-spengleriana[2] da visão do escritor alemão pós-primeira guerra mundial, sobre a chamada Decadência do Ocidente.    

          Se muito ajudou ao candidato Obama o seu discurso como Senador pelo Illinois contra a guerra no Iraque - ao contrário da postura da principal adversária Hillary Clinton -, muito diferente é a atitude de recuo por ele evidenciada em diversos episódios, como no da utilização de mísseis Tomahawk contra o arsenal químico de Bashar.

          Desafortunadamente, não se trata apenas de vão prestígio o que se perdeu com a recuperação do tirano Bashar al-Assad, e de seus aliados, como Putin.  A Rússia tem permitido que Assad intimide a Organização Mundial da Saúde (OMS). Através do Conselho de Segurança, enfraquece a linguagem vinculante também nas resoluções relativas à situação médica na Síria. Não é, infelizmente, opção de estilo. Bashar tem trabalhado assiduamente para que a área sob controle rebelde não disponha de condições sanitárias dignas deste nome, inclusive com o criminoso favorecimento da poliomielite, enfermidade que se pensava extinta, e que graças a Bashar (e ao estulto preconceito em outras áreas) vem experimentando revoltante recuperação, sobretudo em território sob controle dos rebeldes (eis que não lhes são facultadas mínimas condições de higiene e de profilaxia).

             Não sei se esta dita estratégia de cautela de Barack Obama se tenha acentuado por força das características do temperamento do atual residente na Casa Branca. De qualquer forma, as diversas vacilações de Obama são água para o moinho de Vladimir Putin, a par de outros destinos.

              Não será sem preocupação que os democratas americanos observam essa estratégia, em que os resultados para a liberdade dos povos e a prevalência do direito não são dos mais auspiciosos. E não se vá esquecer o dito camoniano, que Leonel Brizola gostava tanto de citar: ‘o fraco rei faz fraca a forte gente’, Canto X, Lusíadas.                                                            

                                                                                 ( a continuar)
( Fontes:  The New York Times, New York Review of Books)



[1] Palácio das Nações.
[2] Oswald Spengler, historiador (1880-1936), autor do best-seller mundial ‘A Decadência do Ocidente’ (Der Untergang des Abendlandes), escrito logo em seguida ao fim da Grande Guerra.

Nenhum comentário: