quarta-feira, 19 de março de 2014

Diário da Mídia (XI)

                               

Euforia imperialista

 
     Vladimir V. Putin deve sentir-se, se não realizado, em marcha batida para sê-lo em breve. A história pode olhá-lo de soslaio, mas no momento gospodin Vladimir Vladimirovich se banha nas extáticas aprovações, tanto da gente da Crimeia, quanto dos próprios russos.

      Afinal o jovem e amargurado apparatchik do KGB, forçado pelos alemães a incinerar o arquivo da agência em Dresden, pode fruir da reação da velha Rússia, enfim recuperando terras e, sobretudo, o antigo pisoteado prestígio.

      O autocrata Putin mergulha na popularidade de supostas desfeitas ao Ocidente.  Para ele, até que a queda de Viktor Yanukovich, o dócil líder ucraniano, lhe veio a calhar, eis que reabriu o frasco das veleidades da Crimeia, e a oportunidade de encurralar um adversário fraco.

      Como quem bate em gato morto, o presidente da Federação Russa, no papel do ofendido, fustiga o Ocidente, pelo que fez e sobretudo não fez. Pois a implosão da União Soviética, os russos a devem à própria húbris de fazer frente a Washington, e, em especial, ao feiticeiro Gorbachev por ter tirado do frasco os espíritos da glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação).

      Se não fosse o temor do círculo de Boris Ieltsin, pela sua queda abismal de popularidade, quem sabe, o ex-funcionário do KGB Vladimir Putin teria ficado esquecido em uma das antecâmaras da história.  A ironia nessa operação de salvação foi a de que quase todos os seus artífices se perderam, salvo Putin. Com a sua vinda, se mandou à breca o avanço da sociedade na rota democrática, cedo escanteado, para ceder lugar ao velho e provado autoritarismo, que também trouxe de volta o cajado da corrupção.

       A propósito da vertiginosa aceitação do líder Putin pelo povo agradecido, há dois tópicos a sublinhar. O caráter momentâneo dessas efusões é relembrado pela popularidade atingida na anexação às custas  da fraca Geórgia dos enclaves da Abkázia e da Ossétia do Sul. A euforia era então a regra – como o é hoje na Crimeia e adjacências – como se todos os problemas de atraso, abandono e da mãe-corrupção seriam página virada da história. Fora o desalento e a crença nos super-poderes do Kremlin, nada mudou nessas terras por todos esquecidas.[1]

       O outro aspecto é referido pela observação de Hillary Clinton (atualmente, a principal candidata democrata à sucessão de Barack Obama) de que Putin quer redesenhar as fronteiras da Europa.

       Colocar a Rússia como um poder insatisfeito na cena europeia, seria exagerar e não pouco no mundo pós-II Guerra Mundial. Pela insânia nazista, Stalin – com a ajuda dos Estados Unidos – venceria o desafio, e procederia a uma brutal revisão de fronteiras, que favoreceram, como é de regra, os poderes vencedores. É a velha justiça de Breno, a do vae victis (ai dos vencidos), que a jovem Roma teve de provar, para depois reverter.

       No momento, a Federação Russa parece refletida nesses espelhos de feira, em que a pluralidade é a regra. Além da potência insatisfeita (a que Hillary alude), é também um poder emergente – será nesse avatar que gospodin Putin visitará Dilma Rousseff, na próxima reunião do acróstico BRIC (ou brics, se admitirmos a África do Sul). Sem dúvida, como sucessora da URSS, é membro permanente do Conselho de Segurança, e dispõe da mágica faculdade do veto.

      Se não se pode de resto forçar demasiado a comparação com outra suposta grande potência – no caso a defunta Itália de Mussolini, cujas posturas histriônicas Vladimir como todo admirador imita – Moscou se qualifica como grande potência pelo arsenal de que dispõe, mas na economia e até nas Forças Armadas ainda é reminiscente da Roma imperial do Duce, com muita bazófia e  vazia encenação.

      Defrontada com a possível intimidação, Kiev – que dispõe de boa base demográfica – poderia tratar de estruturar e treinar as respectivas forças militares. A Federação Russa não é um tigre de papel, mas tampouco as suas fileiras têm mavórtica capacidade. E os aguerridos ucranianos não se devem esquecer que o seu melhor amigo serão eles próprios, como, na antecâmara do conflito de 1939, a pequena Finlândia surpreendeu o paquidérmico exército do Camarada Stálin, que pensava levar de roldão os isolados soldados do governo de Helsinki.

 

(Fontes:  O  Globo, The New York Times on-line)



[1] V. a respeito reportagem em  The New York Times hodierno.

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