O relativo silêncio da mídia em relação à Ucrânia pode
dar a enganosa impressão de que o cessar-fogo estabelecido a cinco de setembro não só está sendo
mantido, como abre nova fase tendente à solução da ‘rebeldia’ na região
oriental.
Segundo artigo de Tim Judah - que tem visitado essa vasta região ucraniana - a
situação agora se acha em claro compasso de espera.
Não há dúvida que o novel presidente
em Kiev, Petro Poroshenko, não tinha muitas opções quanto ao
cessar-fogo. Dada a situação, tal acordo pode ser importante para a Ucrânia,
justamente para ganhar tempo e ajudar na recomposição das forças.
Para Vladimir Putin, o
cessar-fogo tira por semanas ou meses a agressão à Ucrânia do noticiário, e
assim pode assisti-lo no sentido de um encaminhamento favorável da questão.
Só o Dr. Pangloss, o
personagem otimista de Voltaire[1], poderia
pensar que o presidente russo estaria interessado em solução pacífica, com o
restabelecimento da soberania de Kiev na sua região extremo-oriental.
A agressão de abril que levou à
anexação da Crimeia não encerrou a aventura de conquista de Vladimir Putin.
Para tanto, terá contribuído a fraca reação internacional diante da cínica
operação de criação de condições para o “referendo”, que buscou coonestar a
invasão branca da península.
A tibieza das Nações Unidas – de
que o Itamaraty de Dilma Rousseff participou, inclusive pela
não-condenação da conquista, o que é inconstitucional – pareceu indicar que o
concerto internacional não se conscientizou das implicações de que Vladimir V.
Putin se colocava pela sua agressão à Ucrânia e desrespeito ao princípio do pacta sunt servanda, e se tornava, em
consequência, hors la loi[2].
A fraca liderança de Barack
H. Obama terá igualmente cooperado, embora no que concerne aos Estados
Unidos tampouco o antecessor George W.
Bush se saíra a contento quando tentara bater de frente contra Putin, no
controle russo dos territórios da Ossetia do Sul e Abkhazia, na chamada
Transnistria.
E é aí – segundo refere o artigo
de Judah – que mora o perigo. Os rebeldes, quando sentirem esgotado o tempo do
cessar fogo, podem tentar virar o jogo, se necessário com apoio russo.
Assim, não se pode excluir que o Kremlin reacenda a guerra, onde os
chamados ‘rebeldes’ foram salvos da reação ucraniana, que se encaminhava para
recuperar Donetsk e Luhansk, pela intervenção militar russa (através de tropas
regulares que atravessaram a fronteira para ajudar os rebeldes). A imprensa e o
governo russo negaram de forma veemente a verdade militar. As baixas nos
militares russos seriam de ‘voluntários’.
O núcleo rebelde está na chamada República Popular de Donetsk (DNR, no
seu acrônimo russo). O sonho da milícia
pró-Rússia é estender o próprio domínio a uma faixa ao longo da costa do Mar
Negro, o que despojaria a Ucrânia desse importante litoral, transformando-a em
país mediterrâneo. Tudo isso para ligar-se à Transnitria, que contorna a
Moldavia. Toda essa operação de sanhuda conquista já encontrou um ideólogo.
Trata-se de Aleksandr Dugin, que propõe a criação de império
russo-eurasiano, obviamente governado por Moscou. Antes figura marginal no
ultranacionalismo russo, Dugin passou a personagem respeitado pelo mundo
rebelde.
Sob o cessar-fogo, a cidade de Mariupol, no mar de Azov está
muito dividida (ela foi invadida por tropas russas para desafogar a investida
do exército ucraniano contra Donetsk). Por sua vez, em Sloviansk e Luhansk, as
forças ucranianas estão de volta.
O conflito, segundo Judah, se
desenvolve em duas frentes: é guerra
civil, mas também guerra entre estados.
Na maior parte das cidades, a população está satisfeita com a presença
ucraniana, mas tem medo da volta dos russos e dos violentos rebeldes. As queixas contra o exército de Kiev estão
motivadas pela sua pontaria deficiente, que atingiu muitos civis em Donetsk e
Luhansk.
Não há dúvida, por conseguinte,
que com todos os seus tropeços, a campanha do exército ucraniano para recuperar
a região extremo-oriental teria sido
bem-sucedida, se não ocorresse o súbito ‘reforço de voluntários russos’, na
verdade a reentrada na guerra do exército russo.
Com efeito, como se pode inferir,
Putin, depois da anexação da Crimeia, e animado pela respectiva facilidade daquela
operação, passou à desestabilização da
Ucrânia oriental, valendo-se para tanto da minoria de simpatizantes pró-Rússia
colhidos nos extratos menos favorecidos da população, além dos chamados
‘voluntários’ para dirigir o chamado foquismo, com a criação de
fatos-consumados (invasões de delegacias e sedes regionais).
Inexistindo um governo titular
em Kiev, pelo momento revolucionário da Praça
Maidan e a consequente fuga do desmoralizado ex-presidente Viktor Yanukovich, estava colocada para
o Kremlin a oportunidade de encetar a
desestabilização da Ucrânia oriental. O processo de transição na capital e a contingente
fraqueza do governo provisório e do parlamento ucraniano forneceram a Putin o
que julgaria a janela mais favorável para o seu ulterior projeto de
desestabilização da Ucrânia como uma das entidades territoriais soberanas
surgidas com o desaparecimento da União Soviética no final de 1991.
(Fonte: The New York Review of Books, 9 de outubro de 2014, artigo de Tim Judah “Ukraine: What Putin has won” (Ucrânia: o que ganhou Putin).
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