O gerrymander
existe em toda parte, mas em nenhuma democracia ele está sendo utilizado de forma tão aberta e
descarada quanto nos Estados Unidos dos dias atuais.
Valho-me neste blog de dois artigos, o de Andrew
Hacker[1] e
aquele de Jeffrey Toobin[2].
Devo igualmente mencionar a politóloga Elizabeth
Drew, pelo seu relevante trabalho de conceituação desse tema, e da
complexidade política em geral.
Se o gerrymander é invenção estadunidense, não surpreende que em
democracias com representação distrital essa fraude política, urdida por
Elbridge Gerry, governador do estado do Massachusetts em 1811, seja fenômeno
corrente. Sem embargo, o próprio Gerry ficaria decerto lisonjeado pelo ardor e
a extensão com que a sua criação vem sendo imitada nos dias que correm na terra
de Tio Sam.
Por que gerrymander? Gerry redesenhara os distritos eleitorais de
Massachusetts de tal forma que eles se assemelhavam a salamandras. Daí se
cunhou a prática, com a simbiose de Gerry e salamandra.
Hoje em dia, conquanto os
democratas não sejam imunes de tal deslize, não há negar que o Partido
Republicano é o principal beneficiário do processo.
Antes de especificar aqueles
estados em que esta prática fraudulenta se tem assinalado – para tanto o software do computador transformou a
arte do gerrymander, nas palavras do jurista Toobin, em verdadeira ciência –
semelha oportuno assinalar característica hodierna importante do Grand Old Party. Por força de suas
bases, o Partido Republicano se arrima em correntes conservadoras e mesmo
reacionárias. Enquanto o Partido Democrata atrai as minorias – as quais por sua
união se tornam maiorias – o GOP, o
partido do status quo a despeito de
dispor de simpatizantes determinados e intransigentes, tem um problema com o
pluralismo do seu principal adversário.
Posto que esquerda não seja
vocábulo bem visto nos EUA, o
observador atento logo se há de aperceber que os republicanos defendem a ordem
estabelecida, vale dizer, as grandes empresas, os grandes negócios e seus privilegiados
executivos. É intuitivo, portanto, que sintam um problema com o número dos eleitores. Nesse contexto, o GOP tem adotado estratégia voltada contra
o número. Para dar um exemplo: os Estados Unidos da América gostam de
marcar a sua diferença. Afinal de contas, apesar do chamado declínio, continuam a ser a
superpotência. Daí, persistem em enjeitar o sistema métrico que é adotado
mundialmente, preferindo o arcaico sistema dos pés e polegadas. Outra
singularidade: no mundo lá fora, o vermelho é a cor característica da
esquerda, mas não nos EUA. Lá, o vermelho é a cor do partido da direita
conservadora, o GOP, enquanto os
liberais do Partido Democrata preferem a cor azul...
A estratégia republicana contra
o número há pouco recebeu senhora ajuda da Corte
Suprema. Sob especioso pretexto, a maioria de direita da Corte anulou relevante
conquista do governo de Lyndon Johnson.
Os estados do Sul profundo (Deep South)
podem voltar a impor restrições às minorias (leia-se afro-americanos) no seu exercício de voto, o que antes não era
possível, por força do controle impeditivo pelo Congresso federal quanto à imposição de obstáculos legais às
comunidades negras pelas legislaturas desses estados.
Por força desse seu temor do número,
nos estados em que detém o mando, o GOP se
empenha em dificultar o livre direito do sufrágio por negros, latinos, idosos,
pobres et al. No Texas, na Flórida, no Ohio e em muitos outros estados em que o
controle legal esteja em mãos do GOP,
a palavra de ordem será dificultar ao máximo a votação dessa gente, que sufraga
maciçamente os candidatos democratas. Tal não ocorre por acaso. Não foi um
acidente que a revelação de que Mitt
Romney considerava que 47% do eleitorado era de parasitas (que votavam nos
democratas) partiu do bartender de
reunião confidencial com ricaços contribuintes do rival de Barack Obama...
Descrição mais ampla desta
estratégia impeditiva demandaria um outro artigo. Basta dizer que as enormes
filas na Flórida, as seguidas
dificuldades diante da exigência de apresentação de ulteriores documentos de
identidade, a redução nos horários de abertura das seções eleitorais, a
não-permissão de votação antecipada, todas fazem parte de estratégia geral tendente a reduzir ao máximo as correntes de voto
das classes desfavorecidas (essa gente
não é boba, e vota em quem a ajuda).
Por isso, Barack Obama e o Partido Democrata empreenderam luta titânica para criar
meios e modos com que as massas
desfavorecidas logrem chegar até a urna para votar.
Esse horror do Partido
Republicano diante do número potencial dos votantes democratas se reflete tanto
na Casa de Representantes (de que me ocuparei adiante), quanto na tentativa
reacionária de restabelecer a eleição dos senadores por Estado pela forma
primitiva (que foi ab-rogada por emenda constitucional). Nada é mais ilustrativo
desta postura anti-povo que a anacrônica
campanha republicana para a eleição dos Senadores federais voltar a ser indireta, ficando a cargo das
assembleias legislativas. É pouco provável que o GOP logre retirar dos respectivos eleitorados estaduais a
capacidade de eleger os dois senadores. Mas o caráter tentativa de manipulação mostra o quanto possa
ser cínica, reacionária e antipopular a estratégia republicana.
O recrudescimento do gerrymander.
Como a Constituição americana
é omissa sobre a forma de eleição da Câmara de Representantes - diz apenas que
os membros da Casa ‘devem ser escolhidos a cada segundo ano pelo Povo dos vários
Estados’ – a maneira de contestar a descarada afronta foi a de promover ação
sob a argumentação de que o novo mapa eleitoral privava o povo da Pennsilvania
de équa proteção legal, violando, portanto, a 14ª Emenda à Constituição.
A ação judicial – Vieth x Jubelirer – foi julgada pelo
Supremo em 2004. Com maioria republicana, os ministros se recusaram a derrogar
o mapa eleitoral da Pennsilvania. Em
decisão tão importante, quanto facciosa, estranhamente avalizaram o direito dos
partidos políticos em valer-se do gerrymander
em proveito próprio. Na motivação da sentença, o juiz Antonin Scalia (que junto com Clarence
Thomas ocupa a ultradireita na Corte, que mantém a supremacia conservadora
até hoje) lavou as mãos de possível intervenção do tribunal, sob o pretexto de
que a Constituição garante a proteção equitativa a pessoas mas não a grupos.
Essa sentença está na raiz do
sistema iníquo e desigual que ora prevalece na Casa de Representantes. Em
função da clamorosa parcialidade, como assinala Toobin, em 2012 os candidatos
democratas à Câmara de Deputados receberam meio milhão de votos a mais que os
seus adversários republicanos. No entanto, o GOP foi aquinhoado com mais 33
cadeiras do que o Partido Democrata !
Há estados, como a
Pennsilvania, em que o exame estatístico
é ainda mais severo nos seus números em estigmatizar o sistema que cinicamente
frauda a vontade popular. Assim, para presidente Obama venceu com 52% dos sufrágios, contra 47% para Mitt Romney. Já na votação para a
Câmara, os democratas, apesar de terem 50%
dos sufrágios, contra 49% do GOP, só venceram em cinco contra treze
distritos arrebatados pelos republicanos! O truque na fraude eleitoral está em
concentrar os eleitores democratas em um menor número de distritos. Assim, no
quadro elaborado por Andrew Hacker o
percentual vencedor democrata é altíssimo (no quinteto, há uma oscilação entre 89% e 60%), enquanto os contingentes vencedores republicanos estão
distribuídos entre 66% e 52% ! Para fins estatísticos, os votos são
considerados supérfluos acima dos 55% ! Vejam, portanto, como foi conservador o
legislador estadual na Pennsilvania para os distritos a serem vencidos pelo
GOP; e como foi pródigo, reunindo a cambada democrata em cinco distritos, com
um grande acúmulo de votantes, que assim puderam mascarar um desequilíbrio na
votação, que não corresponde ao sentir dos habitantes da Pennsilvania, se distribuídos
de forma séria e honesta.
Mas a Pennsilvania, como o mostra o artigo de Andrew Hacker, não é a única
campeã da fraude e de sistema adrede disfuncional. O corrente gerrymander republicano se origina da
esmagadora vitória do GOP nas
eleições intermediárias de 2010 (o amargo fruto de um presidente ainda inexperiente
em termos de comunicação política, mas com respeitabilíssimo legado no que
tange a esses solitários dois anos, em que teve também o controle do Congresso,
como se verifica na lista abaixo de realizações). Como indica Andrew Hacker, apesar de Obama ter vencido em 2008 e 2012 em Michigan, Ohio, Pennsilvania, Florida e
Wisconsin, em 2010, por causa do shellacking
(tunda), esses estados elegeram governadores
e legislaturas republicanas.
Com a liderança do GOP no palácio do governo e nas
assembleias desses estados – cabe a elas, a cada dez anos, elaborar o mapa de
distritos eleitorais para a Câmara – fica
mais fácil de entender, tanto a extensão do gerrymander, quanto a sua
proficiência em assegurar aos republicanos a maioria na Câmara de
Representantes.
O que não se adequa bem com a
especiosa fundamentação da sentença de 2004, a que me reporto acima, pode ser
resumido em duas considerações básicas: o objetivo dos constituintes foi o de
assegurar que a vontade do Povo seja respeitada. Por outro lado, esse
desrespeito à vontade do Povo Soberano se reflete na eleição de uma Câmara em
que o sentir majoritário da Nação não é obedecido. A composição da atual Câmara
de Representantes está na contracorrente de o que povo americano deseja, e daí
a disfuncionalidade atual do sistema, eis que um dos poderes não está
constituído em forma que corresponda à vontade da maioria do eleitorado. Eis a
razão básica pela qual Washington e o Governo são ditos não funcionarem. Depois
dos dois primeiros anos de Obama, em que foram aprovadas a Reforma Sanitária (a
lei da assistência médica custeável – ACA), a reforma financeira (a lei
Dodd-Frank), o salvamento da indústria automobilística, a revogação da
disposição não pergunte e não diga (don't ask, don't tell vinda da Administração Clinton,
quanto aos gays nas Forças Armadas),
os estímulos (Tarp) para sair da
grande recessão, e a ratificação de tratado de controle de armas com a
Federação Russa, o 44° Presidente não conseguiu mais nada na prática do
Congresso, pela oposição da Câmara dominada pelo Tea Party, e um Senado, em que
o Partido Democrata não mais dispunha da maioria de sessenta para vencer os
filibusters dos republicanos.
O Partido Republicano, por uma
série de fatores, tornou praticamente irrelevante a sua anterior corrente
moderada, que funcionava como espécie de ponte com os democratas. Dadas as suas
características, atuava em prol do espírito bipartidário. Hoje em dia há pouquíssimos congressistas
republicanos moderados. São uma espécie em extinção. Daí também a queda no
espírito de entendimento bipartidário, que punha os interesses da Nação acima
dos da facção.
O estudo da política nos
tende a ensinar que todos os sistemas antifuncionais – e existe algo mais antifuncional
do que a fraude erigida como base de uma organização ? – contêm dentro deles o
próprio germe de sua eventual auto-destruição.
Existem traços no atual
sistema disfuncional americano que podem dar guarida a uma avaliação mais
otimista das possibilidades de superação de tais irregularidades (mesmo aquelas
avalizadas pela toga). O processo, no entanto, é necessariamente lento.
Fontes: The New York Review of
Books; The New Yorker; The New York Times.
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