Tínhamos o hábito de encarar as barricadas com o próprio
simbólico heroísmo na luta contra a arrogância do poder e a sua perene
inclinação de pisotear a liberdade como um fenômeno típico da Paris das ruelas
e do dédalo urbano do século XVIII e a primeira metade do XIX.
Vemos no cinema e nas páginas dos
livros imagens e relatos dessa luta do povo contra a autoridade real que
pisoteia a liberdade e anseia pela volta do Ancien
Régime[1].
Esse desprendimento, essa disposição de atulhar as estreitas ruas com móveis,
madeiras e tralha do casario ao redor, e de acorrer a tais contestações – como
em 25 de julho de 1830, contra o intento de Carlos X, o último Bourbon, de
restabelecer o absolutismo, ou em 24 de fevereiro de 1848, pela insatisfação
provocada pelo governo burguês de Luís Filipe, pelo conservadorismo dos
gabinetes e a aliança com a Inglaterra.
Pensávamos que com Napoleão III e o Barão de Haussman que, sob o véu da
modernização, abrira grandes avenidas e largos espaços, com o que criou a Paris
que conhecemos, e inviabilizou, pela demolição, supostamente no altar do
urbanismo moderno, a Paris medieval das estreitas e caprichosas vias. O
pretenso progresso impossibilitou a imaginação libertária e as incríveis
muralhas da rebelião dos becos e das ruelas, tornando, na aparência
militarmente inviável o modo de guerrear do povo contra o poder estabelecido.
A revolução na Ucrânia, em pleno século
XXI, veio varrer o mito da obsolescência da barricada como instrumento da
revolta popular. A reação do povo ucraniano contra a inopinada mudança de
alianças e sobretudo de perspectiva de parte do governo de Viktor Yanukovych,
menosprezando os anseios populares pelo acordo com a União Europeia e a implícita
promessa de entrada no Ocidente (afinal, a vizinha Polônia é prova bastante
disso, com a sua moeda forte e a economia recuperada), e correndo para o velho Kremlin, com a respectiva imagem de
sujeição e mais do mesmo.
Não se pode brincar impunemente com o
imaginário da população. E a velha húbris
que tolda a vista dos poderosos retornou, para que o presidente da Ucrânia
fosse informado pelas ruas, pelas manifestações e concentrações na Praça da Independência que,
como na frase célebre, mais do que um crime, ele cometera um erro.
A liberdade tem muitos avatares, porque
esta característica da criatura humana, se lateja e vive em todo lugar, carece
de formatos e ambientes em que possa crescer e desenvolver-se, se possível
longe do poder autoritário em todos os seus disfarces.
A revolução ucraniana – que felizmente,
malgrado Nicolas Maduro, existe e continua bem de saúde - hoje ingressa em nova fase. Em honra de seus
mortos, os jovens Yuri Verbytsky e Mikhail Zhisznevsky, entre outros mártires,
os manifestantes deixaram em Kiev o Palácio da Cidade, que ocuparam durante
três meses, assim como vários edifícios governamentais, além de liberar uma
artéria principal do centro citadino da capital.
Não permitirão, porém, que a polícia de
Yanukovych adentre o Palácio da Cidade, e por isso montarão guarda à sua porta.
Com tal decisão, o comando da manifestação cumpre a sua parte, no acordado pelos líderes parlamentares próximos da revolução, com Vitali Klitschko à frente, para que o Governo desista, conforme prometido, do indiciamenteo de manifestantes ainda presos.
Para hoje, domingo dezesseis de
fevereiro, no frio glacial de Kiev, está prevista nova manifestação.
Como em toda a revolução, os manifestantes
mantêm um estranho anti-diálogo com o poder. Esse não há de cansar enquanto
vivo for, nos seus obstinados intentos para enfraquecer a revolução, seja pela
violência da polícia de choque e quejandos, seja pela persistência na tentativa
de esvaziamento das reivindicações.
Há um velho dito que assevera que
revolução que negocia é revolução vencida.
O tamanho da concentração de hoje na
praça Maidan mandará mensagem
ostensiva ao governo Yanukovych. É de augurar-se que continue bem visível nesta
barricada moderna – feita de capacetes operários, de escudos adaptados, de
formações coesas e determinadas, do fogo dos pneus que minora o frio – para que
o Palácio se conscientize do erro cometido e da necessidade de ouvir a multidão
organizada que teima em gritar, alto e forte, pela saída democrática, em que o
Povo Soberano possa mostrar a Viktor
Yanukovych que, se deseja permanecer no Palácio, deve respeitar-lhe a vontade e denuncie a aliança espúria com
Moscou. Por isso e só isso não cessam de clamar desde novembro de 2013.
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