domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Ucrânia e as barricadas da modernidade

                     

       Tínhamos o hábito de encarar as barricadas com o próprio simbólico heroísmo na luta contra a arrogância do poder e a sua perene inclinação de pisotear a liberdade como um fenômeno típico da Paris das ruelas e do dédalo urbano do século XVIII e a primeira metade do XIX.
        Vemos no cinema e nas páginas dos livros imagens e relatos dessa luta do povo contra a autoridade real que pisoteia a liberdade e anseia pela volta do Ancien Régime[1]. Esse desprendimento, essa disposição de atulhar as estreitas ruas com móveis, madeiras e tralha do casario ao redor, e de acorrer a tais contestações – como em 25 de julho de 1830, contra o intento de Carlos X, o último Bourbon, de restabelecer o absolutismo, ou em 24 de fevereiro de 1848, pela insatisfação provocada pelo governo burguês de Luís Filipe, pelo conservadorismo dos gabinetes e a aliança com a Inglaterra.

        Pensávamos que com Napoleão III e  o  Barão de Haussman que, sob o véu da modernização, abrira grandes avenidas e largos espaços, com o que criou a Paris que conhecemos, e inviabilizou, pela demolição, supostamente no altar do urbanismo moderno, a Paris medieval das estreitas e caprichosas vias. O pretenso progresso impossibilitou a imaginação libertária e as incríveis muralhas da rebelião dos becos e das ruelas, tornando, na aparência militarmente inviável o modo de guerrear do povo contra o poder estabelecido.

        A revolução na Ucrânia, em pleno século XXI, veio varrer o mito da obsolescência da barricada como instrumento da revolta popular. A reação do povo ucraniano contra a inopinada mudança de alianças e sobretudo de perspectiva de parte do governo de Viktor Yanukovych, menosprezando os anseios populares pelo acordo com a União Europeia e a implícita promessa de entrada no Ocidente (afinal, a vizinha Polônia é prova bastante disso, com a sua moeda forte e a economia recuperada), e correndo para o velho Kremlin, com a respectiva imagem de sujeição e mais do mesmo.

       Não se pode brincar impunemente com o imaginário da população. E a velha húbris que tolda a vista dos poderosos retornou, para que o presidente da Ucrânia fosse informado pelas ruas, pelas manifestações e  concentrações na Praça da Independência que, como na frase célebre, mais do que um crime, ele cometera um erro.

       A liberdade tem muitos avatares, porque esta característica da criatura humana, se lateja e vive em todo lugar, carece de formatos e ambientes em que possa crescer e desenvolver-se, se possível longe do poder autoritário em todos os seus disfarces.

        A revolução ucraniana – que felizmente, malgrado Nicolas Maduro, existe e continua bem de saúde  - hoje ingressa em nova fase. Em honra de seus mortos, os jovens Yuri Verbytsky e Mikhail Zhisznevsky, entre outros mártires, os manifestantes deixaram em Kiev o Palácio da Cidade, que ocuparam durante três meses, assim como vários edifícios governamentais, além de liberar uma artéria principal do centro citadino da capital.
        Não permitirão, porém, que a polícia de Yanukovych adentre o Palácio da Cidade, e por isso montarão guarda à sua porta.

        Com tal decisão, o comando da manifestação cumpre a sua parte, no acordado pelos líderes parlamentares próximos da revolução, com Vitali Klitschko à frente, para que o Governo desista, conforme prometido, do indiciamenteo de manifestantes ainda presos.

        Para hoje, domingo dezesseis de fevereiro, no frio glacial de Kiev, está prevista nova manifestação.
        Como em toda a revolução, os manifestantes mantêm um estranho anti-diálogo com o poder. Esse não há de cansar enquanto vivo for, nos seus obstinados intentos para enfraquecer a revolução, seja pela violência da polícia de choque e quejandos, seja pela persistência na tentativa de esvaziamento das reivindicações.

        Há um velho dito que assevera que revolução que negocia é revolução vencida.
        O tamanho da concentração de hoje na praça Maidan mandará mensagem ostensiva ao governo Yanukovych. É de augurar-se que continue bem visível nesta barricada moderna – feita de capacetes operários, de escudos adaptados, de formações coesas e determinadas, do fogo dos pneus que minora o frio – para que o Palácio se conscientize do erro cometido e da necessidade de ouvir a multidão organizada que teima em gritar, alto e forte, pela saída democrática, em que o Povo Soberano possa mostrar a Viktor Yanukovych que, se deseja permanecer no Palácio, deve respeitar-lhe a  vontade e denuncie a aliança espúria com Moscou. Por isso e só isso não cessam de clamar desde novembro de 2013.

(Fonte: CNN) 




[1] Antigo regime, em geral simbolizado pelo absolutismo real pré-1789.

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