A revolução na Ucrânia continua nas ruas e
na praça Independência de Kiev, assim como com reações nas províncias.
Entrementes, três principais atores – que não se julgam coadjuvantes –
acompanham, com interesse, por vezes atabalhoado, a evolução da crise, com
vistas a trazer água para os respectivos moinhos.
Houve nesta semana a enfermidade do
Presidente Viktor Yanukovych, que o forçou a baixar ao hospital. A
ausência do chefe de estado, em meio à sublevação de parte da população, os
maus tratos dados ao ativista Dmitri
Bulatov (que teve de ser atendido em nosocômio na Lituânia), junto com a
demissão do Primeiro Ministro, acirraram a inquietação. Recuperado da afecção
nas vias respiratórias, o retorno do Presidente, se afastou hipóteses
alarmistas, de consequências imediatas, repõe a crise onde antes estava, vale
dizer, o sentir majoritário da praça e das ruas com vistas à opção europeia.
Não se deve esquecer, porém, que Yanukovych,
por hubris ou incompetência, está na
raiz da sublevação popular, surgida em novembro último. Seja por falta de
sensibilidade, seja por tentativa de criar fato consumado, o presidente da
Ucrânia preferiu ignorar a manifesta preferência de seu povo – sobretudo, mas
não só, nas províncias ocidentais, de fala ucraniana - pela implementação do
acordo de associação com Bruxelas.
Não é ilusória veleidade dos ucranianos.
Basta ver a vizinha Polônia e o quanto progrediu com seu ingresso na União
Europeia, para aquilatar-se o que está realmente em jogo nesse embate entre
Moscou e Bruxelas. Firmar acordo com a
Rússia pareceu aos manifestantes e aos seus muitos simpatizantes um retorno aos
tempos em que a Ucrânia era uma das repúblicas da União Soviética. Ao
libertar-se do pluricentenal abraço do urso moscovita, Kiev encetou difícil
caminhada, mas significou sobretudo opção por real independência.
Dadas as limitações da decisão
independentista – e tendo presentes as oportunidades apresentadas pela
constituição da União Europeia – essa escolha pela Europa ocidental não é
atitude superficial.
O erro inicial de Yanukovych está na
desenvoltura com que acreditou poder rejeitar funda aspiração da maioria do
povo ucraniano como se fora questão de somenos importância, que pudesse ser
cortada por uma penada. Não estamos mais no século XVIII, para que déspotas
supostamente esclarecidos se assanhem a dispor, através de ‘troca de
alianças’ da sorte dos povos
respectivos.
Dessa maneira, a súbita ‘troca de alianças’ –
pela qual, às vésperas da assinatura em Vilnius, na Lituânia, dos acordos
longamente negociados com Bruxelas, o presidente da Ucrânia se atreveu a
descartá-los e a anunciar – na vigésima-quinta hora - o embarque no bonde de gospodin Vladimir Putin, decerto foi
encarado pelo povo ucraniano como provocação que lhes barrava o caminho de suas
aspirações nacionais.
Ao enjeitar de forma acintosa e até
provocatória a associação com a União Européia, Yanukovych não só contrariou a
vontade majoritária do povo ucraniano, mas também e em especial, ao recolocar
na mesa a dependência histórica do império russo, escarneceu das aspirações de
progresso e elevação de nível de vida, como perspectiva e mostra efetiva, que
os seus compatriotas têm diante de si, na vizinha vitrina da Polônia.[1]
O que terá induzido Viktor Yanukovych a
trocar Bruxelas por Moscou? Parodiando a frase célebre de Jean-Jacques Rousseau sobre o Abbé
de Saint-Pierre[2],
tal se deveu menos a grandes idéias,
mas sim a pequenas vistas sobre o
futuro. Diante do caminho aberto pela União Europeia, com seus acordos e a
abertura para o Ocidente, o presidente ucraniano optou por ganhos imediatos, na
concessão de empréstimos pelo Kremlin
e na redução da tarifa do gás importado, o que aliviaria a pesada dívida
contraída com a antiga metrópole.
O próprio Presidente
Putin – que no passado, como se quisesse humilhar o vizinho, deixava
Yanukovych pacientar longamente para ser
recebido em audiência – mostrou-se, nesta oportunidade, bem mais ágil e
solícito. Para o povo ucraniano, contudo, tais condições de temporário alívio,
a par da oferta do ingresso na União Aduaneira capitaneada pela Rússia, de que
participam a Bielo-Rússia e o Kazaquistão, além de países menores e
dependentes, tudo isso terá sido para a opinião pública ucraniana como se fosse
agregar ao insulto a injúria.
No entanto, em
visita a Kiev da Assistente do Secretário de Estado para Assuntos Europeus, Victoria Nuland vazou – por aparente
participação dos serviços russos informação – a gravação de comprometedora conversação
telefônica entre a Assistente e o embaixador americano em Kiev, Geoffrey Pyatt.
A par da
incompetência e leviandade demonstradas pelo teor do telefonema entre Nuland e
Pyatt, estarrece a grosseria de palavrão da Assistente de Secretário de Estado
no que tange à atuação político-diplomática da U.E. No episódio, uma vez mais
luziu a Chanceler alemã, Angela Merkel, que fez saber pela
porta-voz Christiane Wirtz: “A Chanceler considera essas declarações
absolutamente inaceitáveis. E destaca que a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, faz um excelente
trabalho”.
A Merkel
continua, portanto, a sobressair nas relações internacionais. Não se deve
tampouco esquecer a sua maneira comedida de apostrofar a espionagem da Agência
de Segurança Nacional (NSA) com as
palavras de que Alemanha e Estados Unidos “estão muito distantes quando se
trata de ética”, entre “a liberdade e a ação do Estado”[3].
Não sei se cabem
saudades do Departamento de Estado dirigido por Hillary Clinton. Por enquanto, John
Kerry nos induz a esperar mais, para que se possa fazer uma avaliação
equilibrada.
No entanto, é
importante que se tenha presente de o que está em baila na presente revolução
ucraniana. Não é decerto um jogo de influências, como o teor do telefonema entre
Nuland e Pyatt semelha enfatizar. A opção para o povo da Ucrânia – e se tem a
impressão de que até na região oriental, feudo de Yanukovych por seu viés
pró-Moscou, a relevância da associação com a U.E. esteja levando empresários de
Dniepropetrovsk a expressarem o seu apoio a Bruxelas.
Por isso,
existe uma dicotomia que os manifestantes da Praça Maidan tem plena consciência, e ela se refere à opção pelo
Ocidente ou pela Rússia. Nesse contexto, parece relevante que a diplomacia de Barack Obama entenda que Bruxelas não é
adversária, ou pelo menos seria descomunal miopia política assim confundi-la.
A Ucrânia
desgarrada será presa fácil da Federação Russa. Quer queira o Departamento de
Estado, quer não, a visão alternativa – e aquela que motiva os manifestantes –
está no que oferece a União Europeia. A solução inteligente, portanto, não é
digladiar-se, mas somar forças.
(Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo, The New
York Review, The New York Times )
[1] A economia polonesa
progrediu bastante com a sua participação na UE, assim como a própria moeda
(zloty), elevando sensivelmente o nível de vida de sua população.
[2] Charles-Irénée de Saint-Pierre
(1658-1743), autor do Projeto de Paz
Perpétua.
[3] V. coluna de Janio de
Freitas “Os fins dos meios”, na Folha de 2.02.2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário