segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Putin e o Exterior Próximo

                                      

      A política intervencionista do  Presidente Vladimir V. Putin no que tange à Ucrânia não é um capricho atual. Como o muito bem documentado livro da professora Karen Dawisha o demonstra, não é de hoje que o Senhor do Kremlin alimenta tal intenção.

      Com efeito, pouco antes de sua tomada de posse na presidência em maio de 2000, um alentado documento – Reforma da Administração do Presidente da Federação Russa – foi vazado para o jornal Kommersant. Tudo indica que esse vazamento procedeu diretamente da Administração Presidencial do Kremlin, sob ordens diretas do futuro Presidente. Dentre as disposições do referido Plano, merece atenção especial a seguinte passagem: “Se ele (o presidente) realmente quer assegurar a ordem social e a estabilidade no país durante o seu governo, então o sistema de autogoverno político não é necessário. Ao invés disso, ele necessitará  de uma estrutura politica (autoridade) dentro da sua Administração, que não só há de prever e criar situações políticas ‘necessárias’ na Rússia, mas na verdade estar habilitada a manejar processos sociais e políticos na Federação Russa e nos países do próximo exterior”.[1]

       Não é só de gospodin Vladimir Vladimirovich Putin essa postura paternalista no que tange ao exterior próximo – trocando em miúdos todos os países limítrofes da maior nação em extensão territorial do planeta. Essa atitude com relação aos vizinhos da Rússia está informada por uma suposta superioridade do velho urso russo. A própria inserção desse programa de reforma da Administração Presidencial mostra como se afigura natural que o Kremlin tenha condições de manejar (ou manipular) processos sociais e políticos tanta na Federação própria, quanto nos países vizinhos do próximo exterior.

        Por mais moderada que seja a intenção de gerir tais processos em países além-fronteiras, acha-se aí claramente estatuído o suposto direito (que para o Kremlin seria natural) de manipulá-los nas esferas social e política que são vistas como óbvias projeções do poder imperial do Senhor de todas as Rússias.

        Pelo que vem sucedendo com a Ucrânia – desde a anexação da Crimeia em abril de 2014 – não resta a menor dúvida que Putin tem uma interpretação bastante lata dos alegados direitos da Federação Russa sobre os seus vizinhos. Todas as nações vizinhas – e não apenas aquelas que integravam a União Soviética – têm fundados motivos de preocupação. Tal inquietude, portanto, que hoje seria apenas de Kiev – a explosão de artefato explosivo na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia, longe do front, mas muito próxima de Belgorod, na Rússia, que matou duas pessoas e deixou onze feridas – já é na verdade sentida como ameaça por diversos países que são inseríveis nesse ominoso, mas ainda difuso processo.

         Assim, os episódios da Ossétia do Sul e da Abkhazia do Sul, na Geórgia, e da Transnístria, na Moldova – que na prática fragilizaram ainda mais as pequenas Geórgia e Moldova – constituíram tão só um exercício preliminar, na estratégia de Putin. Nesses termos, se o ataque contra a Ucrânia continuar com a desenvoltura dos chamados ‘rebeldes’ apoiados e armados pelas forças russas (que intervêm sempre que necessário, quando o exército de Kiev ameace os objetivos dos ditos ‘separatistas’) a situação dos vizinhos que tem a infelicidade de situar-se no próximo exterior  tenderá a agravar-se.        

          Barack Obama faz por vezes ameaças – lembrem-se da linha vermelha que não poderia ser transposta– e cunha expressões depreciativas (recordam-se da Rússia como ‘poder regional’ ?), que muita vez podem servir como marcos de ultrapassagens futuras.

          Tudo o que se conhece sobre o Presidente Vladimir V. Putin mostra como ele pode ser determinado na consecução de seus projetos. Dessa maneira, é risível pensar que um epíteto de menoscabo o fará retroceder ou conformar-se.

          Se os livros sobre a personalidade e a progressão de Putin como “O Homem sem Rosto”, de Masha Gessen[2] e “Putin’s Kleptocracy”, de Karen Dawisha, nos apresentam um personagem hábil e articulado, sem escrúpulos, com grande determinação, inclusive na implementação de seus objetivos, como o demonstra a sua ação coordenada para tornar realidade o programa de poder que explicitara para a opinião pública russa, através do vazamento para o jornal Kommersant, tampouco deveríamos subestimá-lo no que tange aos seus propósitos com relação ao exterior próximo.

          Ora, é justamente isso que o Ocidente está fazendo.

 

 

( Fontes: Karen Dawisha, Putin’s Kleptocracy, O Globo ) 



[1] ‘A Cleptocracia de Putin – Quem é o dono da Rússia?’, Karen Dawisha, Simon & Schuster, New York, 445pp. V. pág. 253
 
[2] The Man Without a Face, Riverhead Books, 2012.

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