domingo, 27 de julho de 2014

Colcha de Retalhos B 29


                                    

Guerra na Ucrânia Oriental

 

         Vladimir Putin tirou uma lição muito diversa de a que se esperava da queda do voo da Malaysian Airlines. Os 298 mortos, vítimas de  disparo missilístico que foi lançado por sofisticado sistema russo de lançamento, com a quase certa participação de militares russos, constituem a prova irrefutável de um mega-crime.

          Não se detectam até agora medidas seja no campo das sanções, seja na determinação de assistir o Estado da Ucrânia, que vem a ser vítima, e em espaço de tempo relativamente curto, de novo ataque da Federação Russa, agora com claros propósitos de respaldar os separatistas pró-Rússia, e de estancar os eventuais ganhos territoriais do exército ucraniano na recuperação de sítios antes sob o domínio rebelde.

           O vice-presidente Joe Biden tem telefonado para o Presidente Poroshenko, prometendo apoio. Data vênia, o presidente Barack H. Obama deveria comunicar-se com quem pode não dispor de seu poderio militar, mas tem a mesma posição hierárquica, conseguida pelo voto livre do povo ucraniano.

            Obama é homem cauteloso, mas quero crer que de quando em vez seria oportuno que telefonasse para o Presidente constitucional da Ucrânia,  que herdou país mutilado pela anexação ilegal da península da Crimeia, e que agora se defronta com a agressão russa nos limites orientais do país.

            Não é o caso de lançar o mundo no pesadelo de uma crise em que armas nucleares estejam em jogo, mas a superpotência dispõe de muitos outros meios de forçar o Kremlin a abandonar a sua cínica afronta a um país vizinho e soberano.

            Tem-se falado de aplicação de sanções. O problema que parece existir é que a referência a esse tipo de medida não tem levado à imposição de punições no campo financeiro, assim como nos fluxos comerciais.

            Gospodin Vladimir Putin vem agindo dessa forma provocante e sobranceira para passar a impressão de que está acima dessas ameaças não-efetivadas. Tampouco a superpotência depende de fornecimentos energéticos, como é o caso de países europeus, com substancial força econômico-financeira, mas suscetíveis de sofrerem  interrupções de fornecimento de energia, que são igualmente inaceitáveis, mas que dados os métodos do Kremlin nem sempre são de molde a que se possa excluir o emprego deste recurso extremo.   

                 Não estamos falando de brinkmanship[1], como nos tempos de Eisenhower e Foster Dulles. Mas de alguma forma o agressor – que não respeita o direito internacional e só se atém a considerações de força e de oportunidade – tem que ser convencido  de que a sua presente postura, ao invés de trazer-lhe benefícios, é suscetível de gerar uma série de dificuldades, contratempos, desvantagens e, sobretudo, prejuízos materiais e financeiros, que uma outra atitude mais conforme ao direito internacional e ao respeito à boa vizinhança tenderá a evitar, se mantida de modo duradouro, sem quaisquer interrupções, nem conducente à utilização de qualquer expediente que possa ser considerado como  simples embuste, ou tentativa de ganhar tempo, para voltar em seguida aos mesmos objetivos de transgressão às normas internacionais.

                  Em outras palavras, ao montar estratégia nesse sentido, o Presidente Barack Obama estará dando lição prática ao Presidente Vladimir V. Putin quanto às vantagens a serem auferidas em que passe a respeitar as normas das boas relações e do respeito ao direito alheio. O Presidente Obama mostraria a firmeza responsável que o Ocidente espera dele, no sentido de tornar patente ao Presidente Vladimir Putin que também o crime internacional não compensa.

 

Causas da 1ª Guerra Mundial (Conclusão)

 

         O assassínio do Arquiduque Francisco Ferdinando mudaria o panorama político, e não só na Áustria-Hungria, mas em toda a Europa.

          Francisco Ferdinando fora abatido por conjura originária da Sérvia, e de que oficial do exército sérvio Dragutin Dimitrijevich, alcunhado Apis, pelos largos ombros do boi-deus egípcio, seria a mente propulsora. No entanto, a idéia da eliminação do herdeiro do trono austríaco partira provavelmente de Rade Malobabich, sérvio nascido na Áustria-Hungria, que viria a informar Apis da próxima visita do Arquiduque à Bosnia. Malobabich, hábil espião, que escapara inúmeras vezes da captura pelas forças austro-hungáricas, encontrava-se com Dimitrijevich no quadro da associação secreta Mão Negra, formada, a onze de junho de 1903, para o banho de sangue do assassinato do Rei Alexandre e da Rainha Draga,  e de todos os membros da família real. O massacre poria fim literalmente à dinastia Obrenovich.

           No confinado mundo de extremismo e violência, que caracteriza o irrequieto pequeno reino sérvio, semelha inteligível e quase natural neste peculiar ambiente dos Balcãs que tais projetos terroristas caíssem sob o manto da Mão Negra, com a sua cultura de segredo e dissimulação.

           A amarga ironia de que o herdeiro da Coroa austro-hungárica devia ser eliminado, e não por seus defeitos, mas por suas qualidades, constituía o falso paradoxo que norteou o grupo de fanáticos e desajustados. Como chamar os agentes-assassinos doutra forma, se estavam prontos a matar o Arquiduque e em seguida suicidar-se (além da bomba e da pistola, portavam frasco de cianureto)?

            Para esses radicais, Francisco Ferdinando impossibilitaria a formação da grande Sérvia, pelas reformas que introduziria na monarquia, abrindo espaço para os eslavos, com a perspectiva de Zagreb tornar-se a capital dos eslavos dentro da monarquia. A idéia básica do Arquiduque estava na criação, dentro do Império, de  Iugoslávia, com predominância croata (e, portanto, católica). Segundo Clark, contudo, o pensamento do herdeiro real evoluíra por volta de catorze no sentido de ampla transformação em que o Império dos Habsburgo se transformaria nos “Estados Unidos da Grande Áustria”, com quinze estados membros, muitos dos quais com maioria eslava.

            Dentre as personalidades com responsabilidade indireta quanto ao assassínio do Arquiduque, o Ministro-conjunto das Finanças da Áustria-Hungria, Leon Bilinski, como já referi na primeira parte, recebera pelo Ministro de Legação Jovan Jovanovich a ambígua advertência do Primeiro Ministro da Sérvia, Nikola Pasich, quanto a eventuais perigos na visita do Arquiduque à Bósnia, e não a repassara, como devera, ao Conde Leopold von Berchtold,  Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império. Se isto terá pesado de algum modo na sua consciência, aumentou-lhe decerto  a  impaciência no que concerne às questões da Bósnia – que estavam formalmente sob sua jurisdição – e, em especial, quanto à incompetência ou voluntária negligência do governador Oskar Potiorek, que se refletiram na bastante descurada segurança dos príncipes reais, quando da malfadada visita àquela província. Talvez por sentimento inconsciente de culpa se reforça, assim, a agressividade anti-Sérvia do Ministro Bilinski, o que se refletiria no teor do ultimatum que a Monarquia dual apresentou à chancelaria de Belgrado.

             Ultimatum à Sérvia.  Determinada a responsabilidade de instâncias paragovernamentais da Sérvia no assassinato do arquiduque e de sua esposa, a monarquia austro-húngara apresenta ultimatum ao governo da Sérvia, que é pintado por muitos como excessivo e absurdo nas suas exigências. Na verdade, no entendimento de Christopher Clark, o documento apresentado pela Áustria-Hungria ao governo sérvio era muito mais brando do que o ultimatum apresentado pela OTAN à Sérvia-Iugoslávia na forma do chamado Acordo de Rambouillet redigido em fevereiro e março de 1999 para obrigar os sérvios a obedecerem a política da OTAN em Kosovo.  

     Pronto o documento, o Ministro austríaco Barão Giesl telefonou para o ministério do exterior em Belgrado, para informá-lo que comunicação importante será entregue ao Primeiro Ministro Pasich, naquele 23 de julho, às 17 horas. Este, contudo, em campanha eleitoral em Nis,  se recusa a regressar à capital. Receba Giesl no meu lugar, é a instrução do Primeiro Ministro ao Ministro das Finanças Lazar Pacu,  seu substituto designado. Quando o Ministro Giesl aparece às 18 horas (houve adiamento de uma hora),  Pacu o recebe, ladeado por Gruich, porque o Ministro das Finanças não fala francês. Giesl entrega o ultimatum, com anexo de duas páginas, e nota interlocutória da missão austríaca para o Ministro Pacu, que  informa ser o prazo de resposta de 48 horas. Personalidade evasiva, o Primeiro Ministro Pasich tarda muito em voltar para Belgrado, diante da emergência. A reação da Sérvia oscila, de início, entre a recusa de atender às exigências, mas depois chega a considerar a aceitação de suas imposições. O próprio Pasich manda circular às missões sérvias a 25 de julho declarando que a intenção de Belgrado é responder de forma conciliatória em todos os pontos, e oferecer “plena satisfação” a Viena. Os sérvios estão dispostos até mesmo a aceitar os tópicos 5 e 6 que estipulam comissão mista de inquérito, “desde que a designação de tal comissão possa ser confirmada como de acordo com os costumes internacionais”.       

     Será somente quando o governo sérvio é informado de que o governo russo se dispõe a entrar em guerra com a Austria, e a tomar a Sérvia sob sua proteção, que muda a atmosfera em Belgrado. Sob instruções de Pasichi se prepara resposta ao ultimato,  documento de muito engenho e tergiversação, que na forma mais cortês possível não atende a nenhuma das exigências da Monarquia dual. Foi para Pasichi e seus ministros  leda surpresa, eis que em outubro de 1913 o Ministro do Exterior russo Sergei Sazonov havia aconselhado Belgrado a recuar diante do ultimatum austríaco sobre a Albânia.

       Transcorridos cerca de oito meses, São Petersburgo ora se dispõe alacremente a mobilizar e a entrar num conflito com os Impérios Centrais, coisa que sequer então passara pela cabeça do Ministro Sazonov.

        Ainda no contexto do ultimatum, provocou estranheza na Europa o prazo relativamente longo tomado pelo Império austro-húngaro para reagir. Dado o óbvio envolvimento da Sérvia no assassinato, e a brutal eliminação do casal real, se Viena houvesse atuado com mais presteza, golpeando Belgrado em breve prazo, a presunção seria que as potências europeias, ainda sob o impacto do golpe infligido à monarquia dual, teriam maior compreensão pela reação austríaca.

          Deixando, no entanto, passar cerca de mês, a resposta não mais se beneficiava do caráter visceral. Dado o caráter burocrático que assinala tantas ações do estado austro-hungárico, não surpreende, portanto, que a resposta tivesse quase evoluído dentro dos trâmites usuais.

           Agindo friamente por motivos inconfessáveis, não terá passado pela cabeça de Gavrilo Princip o imenso mal que provocaria para Europa e o mundo com o atentado de Sarajevo. E, no entanto, depois do desaparecimento da cena europeia do Príncipe Otto von Bismarck, e da entrada no palco de políticos de menor estatura, não tardaria muito a criarem-se pelas cortes do Velho Continente e seus gabinetes, os instrumentos adequados para transformarem a Belle Époque na antessala do Inferno.

            E é por isso que faz muito sentido a descrição por historiadores modernos da maneira quase maquinal com que esses gabinetes cuidaram néscia e voluntariamente, seja de assegurar a própria destruição, seja seu brutal empobrecimento. Daí o mecanismo diabólico da política de alianças que sobreveio depois da saída de cena do Chanceler Bismark – que a revista Punch de forma alegórica e premonitória descreve no celebre desenho do Chanceler descendo a escada de portaló da nave do estado germânico, espiado da balaustrada do convés pelo jovem Kaiser, acompanhado do favorito da vez  - que tentarei resumir nas linhas abaixo.

             Com a guerra franco-prussiana de 1870, e a vitória da Prússia, se completa a obra de Bismarck, no que tange à reunificação da Alemanha. Apesar do parecer do Chanceler em contrário, o Imperador da Alemanha, coroado no Palácio de Versailles, força a anexação da Alsácia e Lorena à Alemanha (essas duas províncias, de origem germânica, tinham sido anexadas à França pela Paz de Westphalia, que concluira a guerra dos trinta anos em 1648).

              Em março de 1890, com a exoneração da Chancelaria do Príncipe von Bismarck, o Kaiser Guilherme II se acredita capaz de ser o seu próprio Birmarck.  Na verdade, o seu ativismo juvenil, conjugado com as respectivas limitações intelectuais e a consequente falta de visão estratégica, contribuirá para que em poucos anos se desfaça o sistema de alianças ideado por Bismarck. Na concepção bismarckiana, a França era a única potência a ser contida, eis que, por força da derrota de 1870, a perda da Alsácia e da Lorena a colocaria necessariamente no campo hostil ao Império germânico.

              O principal erro foi a não-renovação da aliança com a Rússia, por decisão do sucessor de Bismarck, o conde Leo von Caprivi. O novel Chanceler permite que tal tratado – e suas cláusulas secretas – caduque, Não obstante as gestões pela sua manutenção do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Nikolai Giers.

              Apesar de pouco terem em comum, Rússia e França, até então sem alianças, nos anos seguintes, se aproximam e firmam tratado que os generosos empréstimos franceses cuidam de reforçar, tornando mais intenso o intercâmbio entre a Democrática Terceira República e o Império Absolutista dos Tzares.           

              Por sua vez, a chamada Tríplice Aliança – de Alemanha, Áustria e Itália -  se tornará capenga com a chamada Entente Cordiale – aliança informal entre a Inglaterra de Eduardo VII e a República francesa. Se o aporte militar da Itália não teria grande peso, a larvar defecção da aliança dos poderes centrais mina qualquer planejamento, pela certeza de que não se efetivará quando a guerra acontecer. Além disso, a participação da Itália na Tríplice Aliança sofria de artificialismo, dada a passada hostilidade ítalo-austríaca, motivada em especial por causa da dominação  pelo imperialismo austríaco de províncias no norte italiano, sobretudo no Veneto e na Lombardia.

              Verifica-se, portanto, que a despeito de patéticas tentativas de Guilherme II de recosturar a aliança com o Império Russo, através de encontros com o seu primo Nicolau II, todas as precárias construções dinásticas do trêfego soberano Hohenzollern davam em nada, pelas concretas obrigações que ligam os Romanoff aos republicanos gauleses, e que forçam  Nicolau II, quando regressava a São Petersburgo, a dar o dito por não dito.

               Por outro lado, o cerco estratégico contra a Alemanha se vai cerrando com a Entente Cordiale franco-britânica, de 1904, e a Convenção Anglo-Russa de 1907. Como sublinha Christopher Clark são alinhamentos ainda frouxos, e tomará tempo até que se enrijeçam para formar as coalizões da 1ª Guerra Mundial. Sem embargo, os perfis dos dois campos opostos já são claramente discerníveis.

               Na Inglaterra, Edward Grey assume o Foreign Office em dezembro de 1905. Transmitiria ao ministério, durante a  longa estada – até dezembro de 1916 – na qualidade de líder dos imperialistas liberais, com seus traços distintivos (o distante aristocrata que não possui ambição pessoal) a atenção para ‘a ameaça germânica’,  a par do cultivo da dissimulação e da ambiguidade. Com o respectivo  controle do ministério do exterior, cresce o poder da grupo anti-germânico. Ao contrário da França, tal postura antagônica – que singulariza a Alemanha como o rival da Álbion que, por conseguinte, deve ser contido – não é de conhecimento público. A própria ambiguidade de Grey seria expressamente mencionada no contexto de Versailles, com vistas a evitar que o segredo pudesse estender-se a ponto de prejudicar a formação do juízo das partes envolvidas, no que tange à posição de Sua Majestade Britânica.

                 Já se vê que o quadro se alterava deveras, e não favorece o campo dos Impérios Centrais (Alemanha e Áustria).

                  Por sua vez, a Rússia atravessa duas fases distintas: a desastrosa Guerra Russo – Japonesa, iniciada em 1904 pelo Império nipônico (como de hábito, sem declaração de guerra), depois de provocações russas, com a destruição de boa parte da frota imperial russa. Em função do trauma desta guerra, eclode a revolução de 1905, em que surge a figura revolucionária de Leon Trotzky. Diante da quase catástrofe provocada pelo próprio aventureirismo, o poder de Nicolau II se enfraquece. Para sua sorte, o Ministro Sergei Witte reorganiza a administração, com reformas para unificar o  governo. Sucedido por Pyotr.A.Stolypin (1906-1911), este com determinação, inteligência e carisma logra impor a sua autoridade pessoal sobre a maioria dos ministros, imprimindo coerência governamental, o que era desconhecido antes de 1905. Permanece nesse período em relativo limbo o Tzar Nicolau II. A despeito da autoridade dinástica, a escassa capacidade mental não o ajuda com vistas à respectiva compatibilização em face da complexa realidade do Império.

                 Entende-se, por conseguinte,  que com o desaparecimento de Stolypin (assassinado por terrorista no outono de 1911) as questões não mais tenham a segura direção de antes. Mostra de o que viria pela frente foi a crise da anexação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria. O Ministro do Exterior Alexander Izvolsky causa enorme confusão. Depois de obter a anuência de Nicolau II (mas sem informar o Primeiro Ministro Stolypin) acordou com o então Ministro do Exterior da Áustria-Hungria, Conde Alois Aehrenthal, que em  troca a Rússia  teria o apoio austríaco para seu acesso aos estreitos de Bósforo e Dardanelos, que estava sob domínio do Império Otomano.

                A crise varreria Izvolsky do ministério porque, em troca da anexação da província da Bósnia-Herzegóvina, o apoio austro-hungárico nos Estreitos tinha pouco ou nenhum valor, eis que a Grã-Bretanha se opunha firmemente ao acesso pela Rússia ao Mediterrâneo.

                O Ministro das Finanças, o Conde Vladimir Kokovtsov, lograria a presidência do Conselho, mas com vários ministros, como o da Agricultura, Alexandre Krivoshein, engrossando o partido do ativismo, o poder do Tzar de novo aumenta. Kokovtsov, a despeito ou talvez por causa de seu bom senso (lembrando-se de 1905 restringe os créditos militares) acabou sendo afastado do simulacro de gabinete na Rússia. Na verdade, inexistia autêntico Conselho de Ministros no Império tzarista. Os ministros constituíam um conglomerado, e muitos deles não estão sujeitos à autoridade do Presidente do Conselho.  A fragmentação e a desordem aumentam com a possibilidade de ministros se acordarem com o próprio Soberano, que assim os ajuda a contornar qualquer controle do principal Ministro, além de criar desordem que em nada aproveita ao Estado tzarista.

                 À medida que a lembrança da catástrofe de 1905 esmaece, avulta o partido da guerra. Corria a Europa na época a difusa convicção da inexorável futura grandeza econômica e industrial do Império Russo, e do consequente aumento do poderio estratégico da máquina bélica do Tzar.

                  Nesse contexto, irrompe na França Raymond Poincaré, que norteara a respectiva pregação política pelo jacobinismo e o ardor patriótico, e mesmo patrioteiro, que sonhava com a próxima oportunidade da guerra contra o Reich Alemão, único modo entrevisto para reaver afinal a Alsácia-Lorena.

                  É deveras rápida a ascensão de Poincaré. Depois de curto período  como Primeiro Ministro, foi eleito em janeiro de 1913 para a Presidência da República. Contudo, ao contrário de seus predecessores, não será o presidente clássico das repúblicas parlamentaristas (que inaugura exposições e tem meramente funções decorativas, enquanto as questões de estado ficam por conta do Primeiro Ministro). Ao invés disso, Poincaré passa a controlar os seus Premiers, e os escolhe, em geral, jejunos de política externa. Se possível, para incrementar a respectiva influência, tratou de ter também Ministros do Exterior que sejam instrumentais seja pelo despreparo, seja pelo favorecimento da respectiva  política belicista. Mais tarde, no pós-guerra, tentará explicar a própria posição pela guerra à outrance (ao extremo),o que teria envolvido até mesmo a manipulação de documentos, o que é contestado por Poincaré.

                    O assassínio do Arquiduque Francisco Ferdinando faria com que a visita de estado ao Tzar do Presidente Raymond Poincaré e do Primeiro Ministro Viviani se transforme em uma preparação efetiva para a mobilização e a guerra. O Primeiro Ministro René Viviani, cioso de sua autoridade, mas, dominado na prática por Poincaré, pela sua ignorância da política externa e dos compromissos assumidos no sistema de alianças, demonstra sérios problemas psicossomáticos, por causa do considerável stress a que está  submetido e pelas crescentes dúvidas sobre o seu papel constitucional. Em São Petersburgo, Poincaré já havia colocado como embaixador o seu protegido Maurice Paléologue,[2] que antes do empurrão do Ministro e Presidente só tivera encargos burocráticos menores.

                     Por outro lado, o partido da guerra em Moscou, comandado por Krivoshein e Sazonov(Ministro do Exterior) não perde a oportunidade de considerar o ultimatum da Áustria à Sérvia um casus belli. Seis meses antes, como assinalado, Sazonov convencera os sérvios a ceder a outro ultimatum austríaco. Desta feita, o zelo é tamanho que leva Sazonov a tratar ríspida e nada protocolarmente ao embaixador austríaco Conde Frigyes Szapáry. Antes, na recepção ao corpo diplomático quando da visita de Poincaré, o Presidente francês igualmente tratara de forma beirando a grosseria a Szapary, ao se referir com pesada ironia a duas questões anteriores entre Viena e Belgrado.

                       O cataclismo da Guerra Europeia - chamada depois de Grande Guerra, e mais tarde de Primeira Guerra Mundial, que, nas palavras de Christopher Clark mobilizaria 65 milhões de soldados, colheria vinte milhões de mortes de militares e civis, e feriria (e estropiaria) vinte e um milhões - foi ardentemente desejada pelo Tzar e o seu ministério, Poincaré e muitos franceses (mas não por Jean Jaurés, assassinado ao romper o conflito), e também por Asquith, Edward Grey, Winston Churchill (então liberal) e um vastíssimo etcetera). Como lemingues, se precipitariam no abismo da conflagração, a que saudavam como se fora um bem-comportado conflito dos tempos do século dezoito. Um autêntico caso, com poucas exceções, de cegueira coletiva.

                        A política das alianças, com suas cláusulas secretas, devoraria nas matanças e nas trincheiras a juventude de então, que pensara, a princípio, adentrar guerra com a volta garantida para casa antes mesmo da chegada do inverno boreal e da queda da folhagem das árvores[3].

                        Talvez o ardor belicoso fosse ainda maior na elite russa. Ao ordenar a mobilização de seus exércitos, o Tzar Nicolau II não terá pensado nos desastres de um menor esforço bélico, a guerra contra o Japão. Foi convencido pelos Ministros Sazonov e Krivosheim a decretar a mobilização geral por causa de um pequeno país nos instáveis Bálcãs.  Não tinha mais ao seu lado políticos mais avisados e prudentes como Sergei Witte, Vladimir Kokovtsov, e Pyotr Stolypin, os dois primeiros afastados e o último assassinado, mas sobravam, a par dos dois já citados, os partidários da guerra, como Alexander Izvolsky e Nikolai Yanushkevich, este último o Chefe do Estado Maior do Exército.

                    Ao cabo de pouco mais de três anos, Nicolau II seria destronado, o asilo lhe foi na prática negado pelas potências aliadas, e passado o interlúdio Alexander Kerenski, com seu governo provisório, o ex-Tzar com a sua família acabou trucidado em  Ekaterinburgo, na Sibéria, pelos bolcheviques, a mando de Lenin.

                    A tragédia não se cingiria àqueles que desencadearam o conflito, mas à toda a nação russa. Além dos então notáveis empreendedores, pagariam  caro a elite na época dominante,  depois transformados  em inimigos do povo. Não atendidos os avisos e advertências de políticos de maior experiência e visão, a insânia seria a de tornar fiel da balança  um pequeno e instável país – que cultuava a morte com a sua Mão Negra. Para tanto, os Ministros Sazonov e Krivosheim com mais zelo do que discernimento, convenceram o fraco intelecto do Tzar Nicolau II a declarar a mobilização, e a desencadear os demônios da guerra, assegurando destarte, em futuro relativamente breve, maior miséria para o seu povo, e o próprio desaparecimento e da respectiva dinastia dos Romanoff.  Não é que a nação russa tenha perdido demasiado com a saída de cena do Tzar, mas sim com as demais catastróficas consequências.

                         Com as declarações de guerra – a primeira da Rússia contra a Áustria – se seguiram as outras, dentro de um movimento esquizofrênico pré-ordenado e irreversível. Talvez o ápice da loucura tenha sido sujeitar a sorte da Europa aos assuntos de pequeno país no concerto geral das nações, dentro de região como os Balcãs a que caracterizavam distúrbios e revoluções de toda sorte.

                        Na verdade, dado o entusiasmo com que muitos dos dirigentes responderam ao apelo do conflito, mais pareceram vítimas de generalizada alienação, que literalmente se lançavam no abismo do desconhecido, ignaros das consequências.

                        O Primeiro Ministro Neville Chamberlain, em outro contexto, mas decerto derivado dessa conflagração mor, falaria da angústia de sujeitar a sorte da Europa  a questões e desavenças de paragens longínquas das quais nada se conhecia. Era do conhecimento geral  que  a questão dos Sudetos na Tchecoslováquia levaria, dentro da política de apaziguamento, ao acordo de Munique, um desesperado esforço de impedir a eclosão de  novo conflito mundial. Os meses seguintes demonstraram a impossibilidade de construir a paz com tais alicerces.

                        Mas o que muitos talvez não saibam - ou não se dão a devida conta - foi que os males do século XX – e logo pensamos em Hitler e Stalin – não teriam irrompido se houvessem dado ao ultimatum de julho de 1914 da Áustria à Sérvia o mesmo tratamento dado ao de outubro de 1913, quando o mesmo Ministro Sazonov instruíra os sérvios a aceitarem o ultimatum austríaco a propósito de um hoje esquecido diferendo acerca da Albânia...

                         Nesse quadro hipotético, a questão da trágica morte de Francisco Ferdinando se transformaria em mais um dos muitos atentados daqueles tempos de paz entre as grandes potências europeias. Esse último não mudaria a face da Europa, nem dizimaria a sua juventude. Nem abriria as portas para o cortejo infindo e maldito que surgiria da Grande Guerra. E o século XX seria diferente, sem os terríveis eventos que vieram a caracterizá-lo. Talvez mais ordenado, mais burocrático, e decerto menos interessante, mas, como dizem os chineses, muito poucos querem viver nesses tempos terríveis, cheios de desgraças e de sofrimento, a que a posteridade chama de  tempos interessantes...

 

(Fontes: The New York Times;  The Sleepwalkers, de Christopher Clark )     



[1] Tática política e militar de testar os limites da posição adversa.
[2] Paléologue mais tarde publicaria ‘La Russie des Tzares’ (A Rússia dos Tzares)
[3] Wenn der Laube fällt – antes que as folhas caiam.

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