sábado, 30 de março de 2019

O livro encantado


                              

        Quando ele chegou na casa dos padrinhos, de certa forma o ambiente de antes desaparecera. Na companhia da mãe, Maria, ele voltara, e apesar de que o casal os recebesse com afeto, sentiu uma pequena diferença na atitude dos donos da casa.
            Faltava alguém entre eles, e era dessas ausências que o tempo não faz esquecer. Antes, José, o seu pai ausente, parecia que estivesse sempre com eles - a mulher Maria e o filho, de seis anos,
            Agora, o pai ficara para sempre em Porto Alegre. Sua mãe chorava amiúde, e vagava pelos aposentos da casa na rua Turquia, 26, em contraste com a moça vivaz de antes, que não desdenhava uma brincadeira, e que passara os dias no aguardo do marido, pois ele vinha buscá-los para darem um pulo na Cidade maravilhosa.
              Chico e Deborah - a quem a família chamava Bi - era um casal sem filhos, com a casa bem arrumada, como sóem ser os lares onde não há crianças. Por isso, agora ralhavam a criança se sequer brincasse, como costumava fazer no lar da Santa Therezinha, de onde tinham vindo, enxotados, mãe e filho, pela brutal e inesperada tragédia doméstica.       
                O menino era vivaz e a desgraça o colhera em plena idade do porquê. Ele sentia que o casal gostava dele, embora lhe parecessem um pouco rabujentos, notadamente o padrinho Chico, a quem desagradavam as perguntas constantes do menino, com apenas seis anos. 
               A criança a quem cercara o amor de um matrimônio feliz,  não estava habitua-da aos longos silêncios das mansões dos adultos, e por isso, vez por outra, apesar das advertências da mãe, arriscava interromper as leituras do padrinho.
               Esse menino já gostava de livros. Por isso, se encarinhara com as estantes cheias que se espalhavam pela sala de visitas. E, dessarte, com a naturalidade da inocência, disparou uma pergunta ao tio e padrinho:
                "Tio, que livro bonito é aquele ?"
                 Sem o saber, desrespeitara todas as regras, pois o padrinho não gostava de ser interrompido quando lia jornal, ou a revista americana.
                  No entanto, a pueril simplicidade pode encantar  um senhor casmurro, como foi o caso. A simplicidade infantil pode abrir os portões gradeados da adulta sisudez, e o taciturno Chico reagiu com largo sorriso ao elogio da criança.  Como resistir será possível à franqueza da inocência ?
                 "Aquele é a primeira edição do dicionário Webster's,de que o teu padrinho gosta muito, por causa da qualidade muito apreciada pelos especialistas."
                   E por vez primeira, o padrinho Chico lhe mostrara o largo sorriso, de quem se descobre tocado pelo interesse livresco do próprio afilhado.
                   Sem o saber, forjara com  o tio e padrinho um liame especial, enquanto elogiara de forma espontânea o volume a que Chico dispensava  particular atenção, no seu estudo da língua inglesa.
                    A partir daquele momento como que sobrinho e tio mostravam interesse especial por uma língua a que o padrinho dedicara não poucos esforços para domar e auxiliá-lo na respectiva fluência, enquanto ascendia na hierarquia de uma grande empresa, que tinha sede nos Estados Unidos.
                     O tio acompanharia o menino apesar das distâncias. Através do Diário Oficial viu que o sobrinho a quem abrigara com a mãe em hora difícil, continuava com as velas pandas em termos de estudos, pela sua colocação no Instituto Rio Branco.
                     A despeito da separação física - os padrinhos se quedaram em São Paulo, aonde Chico viria a falecer, prematuramente, durante a recuperação de operação da tireóide - aquele velho liame não fora esquecido, e anos mais tarde a madrinha, agora viúva,  mostrou ao sobrinho o exemplar daquela primeira - e mui prezada edição do dicionário  Webster's - que guardara, lembrada do encargo do marido Chico, de entregar ao menino, hoje homem adulto, o precioso dicionário a que padrinho e afilhado devotavam o mesmo respeito e apreço.
                     No entanto, a vida diplomática e suas ausências de ofício podem ensejar maldades, impensáveis para aquele casal que recebera o menino e a mãe-viúva, na hora difícil de uma brutal tragédia.
                     A madrinha veio a falecer no Rio.  O câncer lhe ceifara a existência, e não muitos anos depois do passamento de Chico. Entre tantos,  ela não se esquecera do mandado do marido, mas com sua partida, prevalece a torpe inveja de outra parente que costumava exibir os próprios livros, encadernados e virgens,  em estantes a metro, com fins simplesmente decorativos. Sem embargo, valendo-se de uma viagem a serviço, do sobrinho,  por razões que só entidades infernais poderiam desvelar, ela manda deixar na garagem do próprio prédio, em que abundam as ratazanas, o velho dicionário Websters. Essa primeira edição, prezada pelos estudiosos e bibliófilos, não tem qualquer valor para ela, pelo simples fato de que não tem conhecimento para consultá-lo.
                      Por que tanto ódio?  Como poderia ela compreender aquele presente do  Tio e padrinho ? Que turvas pulsões impeliam a essa Tia, antes poderosa,  a, na prática, destruir um singelo, mas comovente  presente, que nada significava para ela?  Na névoa dessa raiva incoercível de quem se sabe ignorante, ela procura destruir o donativo - e sobretudo a lembrança material que a incomoda sobremaneira.  Que outros recebam lembranças e não ela, há de parecer-lhe insuportável.

Fonte: recordações familiares )

Nenhum comentário: