Quando ele chegou na
casa dos padrinhos, de certa forma o ambiente de antes desaparecera. Na
companhia da mãe, Maria, ele voltara, e apesar de que o casal os recebesse com
afeto, sentiu uma pequena diferença na atitude dos donos da casa.
Faltava alguém entre eles, e era
dessas ausências que o tempo não faz esquecer. Antes, José, o seu pai ausente,
parecia que estivesse sempre com eles - a mulher Maria e o filho, de seis anos,
Agora, o pai ficara para sempre em
Porto Alegre. Sua mãe chorava amiúde, e vagava pelos aposentos da casa na rua
Turquia, 26, em contraste com a moça vivaz de antes, que não desdenhava uma
brincadeira, e que passara os dias no aguardo do marido, pois ele vinha
buscá-los para darem um pulo na Cidade maravilhosa.
Chico e Deborah - a quem a
família chamava Bi - era um casal sem filhos, com a casa bem arrumada, como sóem
ser os lares onde não há crianças. Por isso, agora ralhavam a criança se sequer
brincasse, como costumava fazer no lar da Santa Therezinha, de onde tinham
vindo, enxotados, mãe e filho, pela brutal e inesperada tragédia doméstica.
O menino era vivaz e a desgraça o
colhera em plena idade do porquê. Ele sentia que o casal gostava
dele, embora lhe parecessem um pouco rabujentos, notadamente o padrinho Chico,
a quem desagradavam as perguntas constantes do menino, com apenas seis anos.
A criança a quem cercara o amor de um matrimônio feliz, não estava habitua-da aos longos silêncios
das mansões dos adultos, e por isso, vez por outra, apesar das advertências da
mãe, arriscava interromper as leituras do padrinho.
Esse menino já gostava de livros. Por isso,
se encarinhara com as estantes cheias que se espalhavam pela sala de visitas.
E, dessarte, com a naturalidade da inocência, disparou uma pergunta ao tio e
padrinho:
"Tio, que livro bonito é aquele ?"
Sem o saber, desrespeitara todas as
regras, pois o padrinho não gostava de ser interrompido quando lia jornal, ou a
revista americana.
No entanto, a pueril simplicidade pode encantar um senhor casmurro, como foi o caso. A
simplicidade infantil pode abrir os portões gradeados da adulta sisudez, e o
taciturno Chico reagiu com largo sorriso ao elogio da criança. Como resistir será possível à franqueza da
inocência ?
"Aquele é a primeira edição do
dicionário Webster's,de que o teu padrinho gosta muito, por causa da qualidade
muito apreciada pelos especialistas."
E por vez primeira, o padrinho Chico lhe mostrara o largo sorriso, de
quem se descobre tocado pelo interesse livresco do próprio afilhado.
Sem o saber, forjara com o tio e
padrinho um liame especial, enquanto elogiara de forma espontânea o volume a que
Chico dispensava particular atenção, no
seu estudo da língua inglesa.
A partir daquele momento como que sobrinho e tio mostravam interesse
especial por uma língua a que o padrinho dedicara não poucos esforços para
domar e auxiliá-lo na respectiva fluência, enquanto ascendia na hierarquia de
uma grande empresa, que tinha sede nos Estados Unidos.
O tio acompanharia o menino apesar das
distâncias. Através do Diário Oficial viu que o sobrinho a quem abrigara com a
mãe em hora difícil, continuava com as velas pandas em termos de estudos, pela
sua colocação no Instituto Rio Branco.
A despeito da separação
física - os padrinhos se quedaram em São Paulo, aonde Chico viria a falecer,
prematuramente, durante a recuperação de operação da tireóide - aquele velho
liame não fora esquecido, e anos mais tarde a madrinha, agora viúva, mostrou ao sobrinho o exemplar daquela
primeira - e mui prezada edição do dicionário Webster's - que guardara, lembrada do encargo do
marido Chico, de entregar ao menino, hoje homem adulto, o precioso dicionário a
que padrinho e afilhado devotavam o mesmo respeito e apreço.
No entanto, a vida diplomática e suas ausências de ofício podem ensejar
maldades, impensáveis para aquele casal que recebera o menino e a mãe-viúva, na
hora difícil de uma brutal tragédia.
A madrinha veio a falecer no
Rio. O câncer lhe ceifara a existência, e
não muitos anos depois do passamento de Chico. Entre tantos, ela não se esquecera do mandado do marido,
mas com sua partida, prevalece a torpe inveja de outra parente que costumava
exibir os próprios livros, encadernados e virgens, em estantes a metro, com fins simplesmente
decorativos. Sem embargo, valendo-se de uma viagem a serviço, do sobrinho, por razões que só entidades infernais poderiam
desvelar, ela manda deixar na garagem do próprio prédio, em que abundam as
ratazanas, o velho dicionário Websters. Essa primeira edição, prezada pelos
estudiosos e bibliófilos, não tem qualquer valor para ela, pelo simples fato de
que não tem conhecimento para consultá-lo.
Por que tanto ódio? Como poderia ela
compreender aquele presente do Tio e padrinho
? Que turvas pulsões impeliam a essa Tia, antes poderosa, a, na prática, destruir um singelo, mas
comovente presente, que nada significava
para ela? Na névoa dessa raiva
incoercível de quem se sabe ignorante, ela procura destruir o donativo - e
sobretudo a lembrança material que a incomoda sobremaneira. Que outros recebam lembranças e não ela, há de
parecer-lhe insuportável.
( Fonte: recordações familiares )