X
V
Meu dileto Amigo Pedro,
o mutismo a que me referia na
última carta persiste. As aparências indicam, portanto, que as minhas
intervenções não mais são necessárias. Se devemos saudar a normalidade, sempre
resta o ambíguo sentimento, em que a satisfação do dever cumprido se mescla à
sensação de indefinível vazio.
Nesses três
meses que estão por findar, me venho perguntando se a reparação desejada não
mais se apresente nas vestes luzidias do galardão merecido. Do nada surgiram
sombras, inda mais tenebrosas e horrendas do que as vagantes no Hades. Ao
contrário das vistas por Ulisses, essas têm memória. A sua triste faina é
incompreensível para os mortais, eis que, criaturas da injustiça, elas se
propõem não só negar, mas, em escarnecendo, castigar o mérito com as armas cavilosas
da prepotência. Enquanto cercado da geral indiferença, elas serão tua companhia
de todas as horas. Às vezes refluem, noutras se entremostram, até de novo se
adensarem, na dança cruel e volúvel, em que só a insana esperança, com a
heróica e trêmula fímbria de luz, te faz prosseguir na caminhada. Será
ôý÷ç o verdadeiro nome da justiça ?
Mas não te
apoquentes por ora no intento de comigo partilhar o significado dessas linhas.
Se a longa, iníqua, injuriosa noite acaso se desfizer, que fique o transe
marcado nas crispadas palavras de solitário parágrafo.
Tratemos, ao
invés, de ensaiar mais alguns traços no esboço do personagem que encarnasses na
tua existência terrena. Se já é difícil conviver com a ausência irremediável,
tanto maior o será, se nos colhe no estrangeiro, em que não podemos recorer às
muletas da remembrança. Refiro-me, por certo, aos lugares e espaços que
cruzaste – como não hei de imaginar-te na sala maior da Leonardo da Vinci, ou
junto ao do bar Capital, a remexer na moedeira, para pagar o cafezinho dos
amigos ?
Diplomata que
foste, e no entanto, não gostavas de viajar. Assim, não te posso conceber na
Acrópole, na distante Olímpia, ou, num turístico arroubo, na insular Santorini.
Sem embargo, prezavas outro tipo de viagem, feita através das páginas dos
livros, recriando paisagens, porém as mais das vezes silente auditor de doutas
palavras, fixadas nas ordenadas letras das folhas dos volumes da tua
biblioteca.
Hoje, me
animo a propor um périplo pela mente. Percorrendo tais esconsos domínios, a que
ao outro só é dado apreender através de
incertos reflexos, pelo enganoso espelho das sensações refractadas, o juízo
será sempre omisso, tentativo e indistinto.
Não
obstante, cotejando impressões dos primeiros tempos e dos últimos, me atrevo a
dizer que, em termos de atitude e tolerância, ao contrário de muitos,
melhoraste com o passar das décadas. Recordo-me da frase dita por volta dos
anos sessenta, em que te referias a um rapaz teu vizinho, a quem havias censurado
por cerrar as janelas do apartamento com pesadas cortinas de veludo. Entendias
aquele desejo extremo de privacidade como reprovável e admitias, por
conseguinte, o direito do olhar estranho a condicionar o comportamento de
alguém, mesmo no recesso de sua morada.
Pareceu-me
preconceituosa a tua atitude, que mais semelhava ter a ver com a odienta
curiosidade dos familiares da Inquisição. Ao deparar-te nessa rígida postura,
resultava-me difícil aceitar que para ti representasse ameaça a íntima escolha
de um pobre diabo, refugiado entre as próprias paredes. Mesmo naqueles anos
plúmbeos em que a estreiteza mental de uns tantos intentava tanger a sociedade
na marcha batida, sob as esquálidas luzes de suas poucas letras, para a
existência vivida sob o bastão do medo, e as promessas de outra ordem unida,
regida por tacanho, medíocre conformismo, como poderia supor que dos teus
livros houvesses retirado lição tão pouco conforme à moderação do sábio e ao
imanente respeito ao direito alheio de diferençar-se dos ditames do presídio ?
Já nos anos
noventa, relembro conversares sobre um cozinheiro que trabalhara na tua
residência da Barão do Rio Branco. A despeito de te haver deixado o serviço,
aduziste que sempre o procurava ajudar, por considerá-lo pessoa de boa índole.
Mais além, se acrescentaste que ele era gay,
terá sido em funçõ de que perceberas, enquanto falavas com o antigo
empregado, avultarem sob a camisa os seios de silicone. Ao referir a
descoberta, inda que a entonação não fosse a de uma simples constatação
factual, tampouco o condenavas, com a acerba intransigência
velho-testamenteira. Dei-me conta então que a chamada correção política,
exprobada por muitos como a persona
da hipocrisia, na verdade te influenciava o comportamento, nele mostrando a sua
face tolerante e respeitosa da diversidade do outro.
A tua
preocupação social cresceria com o avançar do tempo. Ao invés de muitos, em que
o enrijecer das artérias também se reflete no comportamento, se reforçariam as
bases laicas e liberais da tua personalidade. Consoante o teu hèïò
esse engajamento seria sempre individual. Se colimavas porventura expandir-lhe
o efeito, jamais verbalizaste tal desígnio, como se preferisses deixar ao
exemplo as eventuais consequências.
Pertenceste
àquela geração que julgou ter ‘perdida’a mocidade pela experiência do Estado
Novo. Peculiar juventude essa, que admirava Gustavo Corção e os lenços brancos
da U.D.N. Imperceptivelmente, boa parte dessa geração se viu empurrada para a
direita, capitaneada a princípio pelo Brigadeiro Eduardo Gomes e, mais tarde,
por Carlos Lacerda.
Tenho
presente artigo que escreveste em louvor de Corção. Se não me engano, publicado
pela Revista Forense, nos foi mostrado com o disfarçado orgulho do pai de um
único filho. O revisor, sobretudo nas páginas finais, decerto se ausentara, tal
a pletora de erros tipográficos. Na oportunidade, formulei elogios de
circunstância. Achei que exercício de franqueza seria gratuita crueldade, para
quem lia a produção com os olhos do universitário. Hoje, entendo melhor porque
não poderias repudiar, seja a criatura, seja o idolatrado pensador de uma época
transata.
Das
ambiguidades, muitos dos partidários do encanecido tenente não lograram
escapar. Não é hora, porém, de increpar-te erros, eis que te apuraste com os
anos. A tua visão democrática, informada pelos princípios herdados do ideal
republicano do século XIX, e os antagonismos ideológicos do período de
entre-guerras, não poderia prescindir das premissas das elites, muita vez contrapostas,
mas não necessariamente diversas. E se ata for requerida, estou pronto a
reconhecer-te coerência, de cujos parâmetros se poderia divergir, mas não
menoscabar, como se foram meras construções do passado.
Não creio que
discordarás se te situar no centro, em termos políticos, com um discreto viés
de simpatia para determinados temas propugnados pela esquerda moderada, desde
que certos requisitos de capacitação e colocação forem respeitados.
A suposta
superação da divisão doutrinal entre direita e esquerda é uma falácia a que
recorrem amiúde os líderes de direita e centro-direita. Dentro do quadro
dinâmico da política, tal contraposição – tipificada mas não criada pela
assembleia na Revolução francesa – há de persistir. Contudo, no chamado arco
constitucional, as posições ideológicas dos diferentes movimentos tendem a
evoluir ou involuir, de acordo com as ideias-força de cada momento histórico. A
crônica do partido radical na França é, a esse respeito, exemplo da
mutabilidade política, sempre dentro desse quadro de fluxo e de condicionamento
da associação às contingências ditadas
pela sociedade. Empurradas por exigências não atendidas e por contrastes não
solucionados, as tendências liberais otocentistas e mesmo novecentistas
caminham para a subordinação ou absorção pelas forças conservadoras da direita.
Nessa curva, onde o vácuo inexiste, os espaços progressistas, nos diversos
avatares do processo, serão ocupados por uma nova esquerda. Apenas leve adendo
ao dito evangélico – dize-me com quem andas (e o que propões) e eu te direi
quem és – me parece suficiente para expor e desnudar todos os aranzéis da
denominada terceira via.
Da tua
vocação udenista, apenas dela me inteirei por assim dizer de segunda mão. Na
época de nosso convívio em Quito, a U.D.N. já tinha sido engolida pela
“revolução de 31 de março” – cuja falsidade começa pela data – e os seus
principais líderes cooptados pela
Arena.
Ainda não falávamos muito de política, não fosse pela necessidade de tentear o
terreno em momento propício
à la chasse
aux sorcières.
Dava-me conta, todavia, por frases e atitudes esparsas, de tua inclinação
liberal moderada. Mais tarde, te encontraria lotado na
D.S.I.
– que se ocupava da parte ostensiva da política de segurança nacional. Para
mim, foi uma surpresa, cuja ocorrência prefiro atribuir às relações com o então
chefe, o Ministro João Luiz Areias Neto. A presença na D.S.I. indicava, porém,
um certo isolamento na Casa, que te levaria a trabalhar em lugares não
condizentes com a tua capacidade e, quero crer, com o próprio enfoque político.
Muitos anos
depois, na década dos oitenta, o ambiente se desanuviara, e a conversa no bar
Monteiro, poderia desembocar para questões políticas. Eras leitor do Globo e da Veja, e no domingo compravas a Folha
de S.Paulo, por causa do suplemento Mais!.Nas
discussões, te pilhava amiúde em posições que chamaria de
liberais-conservadoras, em que estavam mui presentes as posturas da tua
geração, inclusive nos pendores pró-americanos. Na verdade, como verificaria
após a virada do milênio, vias com o ceticismo de longos anos de diplomacia de
alinhamento automático quaisquer iniciativas que se propusessem contrariar a
potência hegemônica. Assim, sacudias
a cabeça, atavicamente incréu, diante das campanhas anti-Alca, que eu e o
Rezende defendíamos com vigor. Não descreio do teu patriotismo, mas provinhas
de um tempo em que a contestação às iniciativas de Washington seria impensável
em determinados círculos.
Tampouco
entendias como o contemporâneo Rezende se abalançasse agora a aventuras contra
força que, a teu juízo, esmagaria qualquer resistência. A todas as veleidades
de independência olhavas com vistas cansadas e enfastiadas, de quem havia por
desarrazoadas e quixotescas essas vãs empreitadas de arrostar o poderio
estadunidense.
Comigo
parecias mais paciente, como se atribuísses à minha relativa juventude o motivo
de tais despropósitos. Já do Rezende, professor universitário e simpatizante do
denominado PT igrejeiro, aceitavas a custo as extravagâncias, que a teu ver,
acredito, não condiziam com alguém da sua experiência.
Na última
eleição presidencial em que votaste – a de outubro de 2002 – a tua declarada
hesitação quanto à eventual inclinação pela candidatura de Lula poderia talvez fazer
pensar a um estranho ser prenúncio alvissareiro de sufrágio para o candidato do
P.T. Conhecendo-te bem, não colhi essa
impressão. Pareceu-me, em verdade, que a tua suposta dúvida seria simples aceno
em homenagem à manifesta maioria então existente em favor de Luiz Inácio Lula
da Silva.
Toda a tua a
formação e, em especial, a exigência do nível universitário, tornava assaz
improvável o voto para o ex-operário metalúrgico, que abandonara os bancos
escolares após o quarto ano primário. Assim, no segundo turno, na hora da
decisão, votarias em José Serra, o contendor que já entrava derrotado.
E à medida
que irrompiam os escândalos na presidência de Lula, cresceram em estridência as
tuas críticas, que lançavas com mal disfarçado gosto contra o pobre Rezende. A
mim, tomavas o meu silêncio como tácita aprovação das tuas verrinas. Embalado
pelo que lias na revista Veja e nas
páginas de O Globo, encantado pelo
desconcerto do Rezende, e contando com o meu presumido silente apoio, davas
rédea solta à veemência das invectivas contra o governante que fora eleito sem o teu voto, a ponto de levares um
pouco além dos limites da conveniência o ardor tribunício.
Então te
ocorria o que sói acontecer aos pelotões de cavalaria que se adentram demasiado
nas hostes inimigas. Esmorecido o ímpeto, as palavras perdiam a força, envoltas
e quase abafadas pela persistência de um silêncio que do embaraço passara à
mudez sisuda e contrafeita, reservada àqueles que se enlearam nos próprios
excessos.
Em geral,
sugeria eu que mudássemos de assunto. A
álacre concordância de Rezende selava o destino do teu estouvamento. E
se mal participavas da discussão do novo tema, seria menos por falto de energia
do que por remoer as razões da inopinada peripécia.
Se me
permites, gostaria de levantar outro tópico, em que tenho batalhado para chegar
a um juízo acerca da tua postura. Longe de mim submeter-te a uma
espécie de sabatina ideológica. Hás de convir, no entanto, que é
oportuno esclarecer alguns pontos, mormente aqueles que, à primeira vista,
semelham contradizer personalidade voltada para o progresso da ciência e a um
consequente maior compromisso com a expansão do saber humano.
Por um lado,
foste homem preocupado em aprofundar o conhecimento no que concerne à evolução
da própria espécie. Nos teus últimos anos, serias leitor incansável de livros e
publicações dedicados a tal estudo. Quantas vezes não te vi sobraçando volumes
a respeito do tema ! E, não obstante, apenas uma nesga dessa ilustração a
colocaste no papel, ao incluir a matéria em um dos excursos da tua obra sobre o
‘Animal Político’.
Já
transposto o milênio e, portanto, entrado na lenta descida para o Hades,
voltarias a exercer aquele papel propedêutico que assinalara a fase quitenha.
Às minhas instâncias, me recomendaste a aquisição pela Leonardo da Vinci de um
livro que me daria visão geral em disciplina da qual eras um especialista. Terá
sido a derradeira publicação que, informado por tua prévia experiência, me
seria dada ocasião de acrescentar à minha biblioteca.
Como se pode
conciliar esse empenho diuturno, esse interesse na progressão do homem, em uma
palavra, essa vocação para a ciência – que se refletia, de resto, na
ðïëõìáèßá
das estantes do teu gabinete de estudo – como se pode conciliar tudo isso,
repito, com a negação que diria quase raivosa do alcance da obra de Sigmund
Freud, e de tudo aquilo que se reportasse à psicanálise ?
Vamos por
partes. Refutavas tanto Marx, quanto Freud. A tua oposição a essas duas
personalidades tinha algo de visceral. Tenho a impressão de que, para ti, a
recusa de um pressupunha igualmente a do outro, como se fossem farinha do mesmo
saco. Francamente, não creio que hajas lido de forma sistemática a qualquer um
dos dois pensadores. Talvez o teu trato dos escritos de Marx se tenha limitado
a textos de opositores do marxismo, em que as teses do movimento fossem
supostamente rebatidas e invalidadas. No que tange a Freud, tampouco acredito
que a tua posição contrária haja demandado a leitura da Interpretação do Sonhos e de outras obras mestras do criador da
psicanálise. Ao invés do cuidado que dispensavas ao exame, v.g., da Política de Aristóteles e a trabalhos filosóficos, os teus
argumentos contra Freud me pareciam demasiado esquemáticos, partilhando das
férreas, abrangentes e incisivas certezas com que em geral se vestem os
preconceitos.
Quando
afloravam temas relativos ao doutor da Berggasse
19, a tua reação diferia radicalmente da postura costumeira, que prezava o
argumento lógico. Se podias expor de modo acalorado, não enjeitavas o aporte da
razão. Ora, diante de Freud reagias com os estrídulos, veementes clamores dos
que se crêem ameaçados. Temeria acaso a rigidez da tua moral oitocentista os
insidiosos desafios do divã ? Eis uma suspeita que sempre me acompanhou ao
deparar as tuas desabridas objurgatórias contra a prática da psicanálise. Por
vezes, desmerecias de alguém como T.R. (x) com um muxoxo de escárnio por referir o
tratamento com a naturalidade devida. Podia-se jurar que nessas circunstâncias
não julgavas necessário mais explicitar
a crítica, visto que supunhas pensarem do mesmo modo os demais à tua
volta.
Porque não
te contraditei ? Não terá sido decerto por temor reverencial. Desde cedo, com o
respeito que a amizade requer, defendi pontos de vista que sabia não
compartilhares. Em outras oportunidades, como na censura a posições
pequeno-burguesas, rocei os limites do tolerável. Calei-me, a despeito de não
concordar com o ranço filisteu dos motejos lançados contra a psicanalistas e
pacientes, por reputar ser demasiado tarde para convencer-te de quão equivocado
estavas.
Terás
crescido em ambiente no qual a prática psicanalítica era associada ao
desaire antes incorrido por quem
consultasse um alienista. As tuas inseguranças, preferiste confrontá-las com a
carapaça de alegados preceitos morais, que te ajudariam a não questionar
atitudes delas decorrentes. Dessarte, a tua hiperproteção de Therezinha, que
justificacas à conta da surdez, foi sempre, e por largo consenso, interpretada
como consequência do teu ciúme. Mesmo em Quito, farias questão de receber as
poucas delegações que por lá passavam em restaurante de hotel. A voz corrente,
que entre risotas se ouvia, não fazia segredo do real motivo do isolamento em
que mantinhas a tua mulher. A esse respeito, e em face dos precedentes,
constituíu objeto de espanto que o casal houvesse ido à nossa casa da Seis de Diciembre
para conosco comemorar – en petit comité,
é verdade – o Ano Novo de 1967.
O
apelo à rigidez no comportamento terá sido a maneira escolhida para lidar com
essa óbvia insegurança. Tendo presentes a tua inteligência e a manifesta
impropriedade da ‘solução’ encontrada, só posso atribuir à emoção a reação
instintiva de tentar desacreditar o instrumento – no caso, a psicanálise – que
te ajudaria a entender as verdadeiras razões de tua conduta. Configurada como
‘ameaça’, para melhor abafar as dúvidas cumpria rotular a prática com os traços
preconceituosos do ‘feio’ e do ‘esquisito’. Por outro lado, a tua extrema
reserva quanto à vida privada – de que a ocultação da data do teu aniversário
ao amigo Rezende é exemplo – sempre me desencorajaria de levantar questões conexas a esse campo.
Internalizada
a rejeição à psicanálise e ao seu criador, desenvolveste todo um conjunto de
posturas em que essa contestação se estruturava e se expressava. Diante da discussão entre ciência e arte, isso te bastava
para descer inda mais na apreciação da essência e das características deste
exercício terapêutico. Se depreciavas a prática, para ti a decorrência lógica
seria igualmente desmerecer de quem a ela recorresse, e nesse sentido, a tua
tua referência habitual seria a T.R.(x) sempre dentro de contexto de suposto
desdouro.
Ora, devo
confessar-te que não raro ouvia constrangido a essas observações.
Surpreendia-me que alguém da tua cultura pudesse verbalizar tais prejuízos,
encontradiços em gente de baixa extração. Continha-me, por vezes a custo; e só
me omitia pela certeza de que de nada adiantaria procurar mostrar-te o erro,
por tão engessado o comportamento, e tão entranhada a convicção. Se me
atrevesse a contradizer-te, a par do esforço inútil, apenas poderia aspirar à
tua desconfiança.
Se hoje me
decido a mencionar o delicado tópico, assim procedo em função do que me propus
já no primeiro parágrafo da primeira carta escrita não muito depois de que
baixaras à sepultura. É de esperar-se que lá onde estiveres tenhas visão mais
serena e, por conseguinte, mais destacada das contingências terrenas.
Nessas
páginas
post mortem, o que foi um
desejo de prolongar diálogo de amigos me terá conduzido a relembrar-te facetas
de tua personalidade e conduta. Em obediência à injunção da veracidade, de
traçar o quadro na sua inteireza,
warts
and all ,
se me afigurou necessário de ti apresentar um punhado de aspectos em que não
luzes com o consueto brilho. A hagiografia nunca esteve entre os teus gêneros
preferidos. E nada mais falso e sensaborão do que os retratos edulcorados pelos
solícitos retoques de quem se empenha em deles retirar uma das características
da condição humana.
Isto posto,
é hora de trazer a lume outras vistas mais condizentes com o Pedro, de cuja
prática e convívio tanto lamento a brusca interrupção.
Durante a tua
existência, malgrado o saber e a capacidade, que eu saiba só publicaste um
artigo, a que já me referi. Sem embargo, não despejavas no próximo a eventual
irritação em ver outros alcançarem nomeada a que poderias com justiça
pretender. Assim, não só me incentivavas a publicar meus trabalhos, senão
cuidavas de obtê-los, no caso de não me ser possível proporcionar-te uma cópia.
Lembro-me do
artigo em Vozes sobre a Revolução Guatemalteca, que lograste comprar em
Petrópolis, e do meu estudo sobre a política externa dos Estados Unidos, de que
leste com presteza as 180 páginas. Os teus comentários, cuja franqueza
conhecia, os recebia com prazerosa expectativa. Não ignorava que apontarias as
lacunas e os defeitos, e não te enredarias em elogios, se não os julgasses
cabíveis. Tinha gosto em conversar contigo acerca de minhas produções, pois o
bom leitor será sempre bem-vindo para quem se aventura a ter impressa a própria
palavra. De nada serve a inane lisonja, que para mim está no mesmo plano do
silêncio dos preguiçosos e indiferentes.Com todas as escusas para dissimular a
falta de vontade na raiz do fato de não
haver lido, tu, ao invés, te abalaste ao centro para desencavar a publicação
que estampara o trabalho do amigo.
Compreendi
igualmente o destempero na tua reação diante da manifesta não-leitura pelo velho companheiro dos bancos acadêmicos
dos diversos fascículos que nos distribuías, na fase derradeira da elaboração
do livro “Crítica do Animal Político – O significado de uma expressão sem
sentido”. Concentraras na monografia muito mais do que te propuseras ao
encetar-lhe a preparação. Mesmo sem entrar nos óbvios motivos que te induziam a
assim proceder, desejavas recolher a opinião e os comentários dos teus poucos
leitores iniciais, inda que não tivesses dúvida acerca da qualidade da obra. O
escritor, por melhor que seja, jamais se sentirá realizado diante da calada
passividade da gaveta. Daí, as sentidas censuras, que presenciei, a quem não
encontrou tempo para perlustrar-lhe as páginas, como demonstrara, ao longo de
tantos meses, a absoluta ausência de qualquer comentário ou observação crítica.
Se te faço
reparos, é importante não esquecer o quanto as nossas opiniões convergiam.
Acerca das matérias as mais díspares, brotava a nossa concordância com a
espontaneidade das águas em fontes de montanha. Dessa harmonia, que coloca em
contexto adequado as esporádicas discrepâncias, darei exemplo no campo das apreciações
subjetivas sobre personalidades de nossa faixa de conhecimento.
Dessarte, se
me afigura a calhar o que transcrevo a seguir. Bastava aparecer na imprensa
mais uma contribuição de pessoa já mencionada nessas laudas, e não tardávamos
em cruzar nossas apreciações.
“ Leste
ontem o artigo de ... ?”
“ Li. O quê
V. achou ?”
“ Hmmm...”
“ Eu
também.”
Em geral,
Pedro me pedia que fosse mais específico. As reservas feitas tinham a ver com a
double allegiance do autor, que
gostava de parecer uma coisa, quando na verdade advogava uma outra. Como o
conhecíamos bem, não era difícil desconstruir o seu arrazoado.
“ Então não
gostaste ?”
“ É
complicado... mas acredito que desta forma se pode resumir a minha impressão.”
“ Algo lá não
me cheira bem...”
“ É, meu
velho... Você aí disse tudo.”
Pouco depois
a chamada se concluía. Os diálogos, à primeira vista crípticos, na verdade eram
a condensação de opiniões há muito discutidas e esclarecidas. Como as
restrições fossem a condicionantes já sabidas, muita vez não se sentia a
necessidade de explicitá-las.
Meu amigo Pedro,
por primeira vez ao acercar-me do
fecho da correspondência – e não posso servir-me das fórmulas clássicas
vale ou
hññùóï ,
porque poderias atribuí-las a humor um tanto macabro – preocupa-me não o que vá
dizer agora, mas o súbito vazio do que tenciono escrever na próxima carta. Se
esse vazio difere daquele a que me reportei no primeiro parágrafo desta, pois
abarca a uma área tão imprecisa, quanto extensa, de algum modo os dois se
confundem e mutuamente se reforçam.
Como para ti
o tempo nada mais significa, quem sabe não hás de notar se o espaço a
intermediá-las for maior.
Com a funda
estima de quem se empenha, apesar de tudo, em reviver o passado, nesta empresa
sem esperança, que insanamente acredita não só em poder ouvir o pétreo silêncio,
senão com ele dialogar,