domingo, 30 de junho de 2013

Colcha de Retalhos A 23

                                   
O primeiro Ministro Enrico Letta

        Tradicionalmente, a Itália se tem caracterizado pelo regime parlamentarista radical, vale dizer, um sistema político caracterizado pelas alianças dos partidos, com maioria fracionada e condicionada pelo apoio de pequenos partidos. Nesse sentido, apesar dos intentos de montar esquemas mais sólidos, a União das Esquerdas, liderada por Pier Luigi Bersani, e a da direita, sob a direção do Cavaliere Silvio Berlusconi  (Povo da Liberdade), a agremiação por ele dirigida, mais a Liga do Norte, com laivos secessionistas e a Aliança Nacional, saída do MSI, partido neo-fascista)
        No passado, tanto a União das Esquerdas, sob Massimo d´Alema ou Romano Prodi, quanto a aliança da Direita, sob a liderança de Silvio Berlusconi, se alternaram no poder , com maior presença do Cavaliere.  Em qualquer outro país, a derrubada de Berlusconi, por um conjunto de escândalos, e uma série de condenações judiciárias  (dadas as peculiaridades do sistema itálico que semelham sempre admitir recursos e a possibilidade de uma saída) jamais se poderia admitir que o desfecho não fosse irreversível.
        Não se poderia, portanto, pronunciar a última palavra acerca da sorte política de Berlusconi, mesmo depois da enésima condenação pela prática de sexo pago, com uma então menor de idade. Como Bersani, o líder do partido mais votado (mas bem longe de uma maioria absoluta) não tinha condições políticas após as últimas eleições de formar um gabinete com apoio sólido, Giorgio Napolitano, que, apesar da idade, foi reconfirmado na presidência, logrou montar um ministério sob a direção de Enrico Letta, que é o segundo dirigente na hierarquia do Partido Democrático da Esquerda.
       Como o movimento de Beppe Grillo se recusa a participar do governo, Letta montou uma aliança, sustentada pela Esquerda de Bersani, a Direita de Berlusconi, e o Centro Cívico, do ex-primeiro Ministro Mario Monti.
       Há uma característica pessoal de Letta, e duas outras, relativas aos partidos, que acredito oportuno mencionar. Enrico Letta já se distinguira em postos ministeriais, mas nunca presidira um gabinete. A sua tarefa é, decerto, respeitável, porque tem na sua equipe de governo, ministro diretamente ligado a Berlusconi, a par de ele próprio estar, de certa forma, subordinado  a Bersani.
       Encontrar-se-á, no passado político italiano, exemplos bastantes da relativa autonomia de antigos presidentes do Conselho.  Na época do predomínio da Democracia Cristã, quando, malgrado serem chefes, ou de facções menores, ou de partidos secundários e,  viverem à sombra dos que, no passado,  eram chamados de cavalos de raça, vale dizer, os capitães das principais correntes da D.C., eles souberam manter-se por algum tempo e ainda por cima fazer algo de importante. Este será o paradoxal forte de Enrico Letta: a sua relativa fraqueza política.
      No que tange igualmente aos partidos, nunca o passado, em que os presidentes de conselho mais fortes estavam  condicionados pela ínsita debilidade do esquema, sempre reminiscente da quarta república francesa – em que, apesar das enormes dificuldades do parlamentarismo radical, logrou luzir em Pierre Mendès-France, talvez a última estrela do regime do segundo pós-guerra – fornecerá tantas e tão poucas perspectivas a um político do nível de E. Letta. Dessarte, sem ter a cancha dos grandes comandantes, o atual primeiro-ministro, que é político hábil, saberá valer-se das aberturas que a sua condição de líder menor lhe oferece. Como presidente do Conselho, a sua permanência no Palazzo Chigi (a sede funcional dos primeiros ministros) dependerá de exaustiva  busca do consenso, fugindo sempre de grandes triunfos e de questões demasiado importantes, cuja eventual solução pudesse criar suspeições dei capi (dos chefes partidários). Nesse estreito desfiladeiro, sob as vistas suspicazes dos principais chefes, Letta deverá negociar a própria  progressão na encarregatura dos negócios de estado.
           Mutatis mutandi, a sua atitude deverá conformar-se às palavras do Senador brasileiro Pinheiro Machado (o principal líder político nas primeiras duas décadas do século XX na República Velha), em que respondeu à pergunta de seu chofer, que enfrentava manifestação pela frente: não tão depressa que pareça medo, e nem tão devagar que pareça provocação...

 
Notícias do Império do Meio      

 
         Não se vá esperar que a informação no jornal esteja em primeira página, ou que a ela se reserve espaço com destaque.
         Como se sabe, o país mais populoso da terra – no que arrosta a competição do seu grande vizinho ao sul, a União Indiana -  tem nos seus milhões de quilômetros quadrados, ao sul (o Tibete), a oeste  (o Xinjiang) e ao norte ( os mongóis), os quais são  territórios anexados que antes não faziam parte do grande Império do Meio.
        A etnia Han, que é a amplamente majoritária na China, participa de o que chamaria de invasões silenciosas, como a que sujeita os tibetanos – que não podem sequer exibir a foto do seu líder nacional, o Dalai Lama – a uma campanha incessante, através da qual se busca sufocar a nacionalidade do Tibet. Nos meses que correm, a reação contra esse afluxo de emboabas se assinala pelo desespero dos suicídios de monges e nacionais do Tibet. Pesa sobre eles o manto de silêncio, em que a força bruta da maioria imperial se une com o temor da repercussão negativa e irrespondível, de um gesto de que não se pode contestar a coragem, e que rasga, com a sua pertinácia, a máscara da repressão.
       De outra província do império chinês, chegam ao Ocidente novas de grandes distúrbios em a população amotinada atacou símbolos do poder imperial – o prédio da polícia e repartições do governo.  É mais um dos inexplicáveis distúrbios na terra de Xinjiang, que era dos uighurs.  Dado o caráter pugnaz dessa minoria – todo movimento em terra conquistada pela China se há de transformar necessariamente em minoritário, por força das direcionadas correntes migratórias da fiel etnia Han, que se transformam sob as benesses de Beijing e dos especiais funcionários para lá enviados, em majoritárias. Nas alturas do Tibete, tal ainda não ocorreu, mas não se deve subestimar a força e a paciência da China – as rebeliões sangrentas neste faroeste chinês não são incomuns, e têm decerto muito a ver com a dureza e a crueldade das condições impostas aos ex-nacionais da terra conquistada.
        Provocará acaso estranhável assombro que entre as causas dessa enésima insurgência, a hodierna minoria Uighur manifesta o seu extremo desconforto com a crescente e avassaladora presença da etnia Han, a que o poder imperial destina os melhores empregos e as terras mais prósperas.

        

A reação democrática no Egito

 
          O presidente do Egito, Mohamed Morsi, completa um ano de governo neste domingo. Este apparatchik da Fraternidade Muçulmana, excluídos alguns êxitos diplomáticos, como no conflito da Faixa de Gaza, tem decepcionado a sociedade civil egípcia.
          Apesar dos super-poderes auto-outorgados, ele se tem distanciado do povo egípcio, que chega a alvitrar a volta do Exército, o que não deixa de ser estranho em um país que, desde a derrubada do rei Faruk em 1952, viveu sob várias formas de ditadura militar.
         A falta de diálogo se acentuou depois do longuíssimo discurso de Morsi à nação (mais de duas horas) em que ele admitiu haver cometido erros, e prometeu convocar membros de todas as facções nacionais a ‘uma reconciliação nacional’, com o escopo de reescrever a Constituição.
         Dada a situação do país, provocaram perplexidade as desculpas pela falta de combustível, pelos apagões frequentes e por não conseguir engajar os jovens no processo político. Com o parlamento paralisado há um ano, e com o repique do desemprego e da inflação, a credibilidade desse alto funcionário da Fraternidade Muçulmana cai sempre mais.
         A praça Tahrir, este símbolo da luta contra a ditadura de Hosni Mubarak, volta a movimentar-se. No descontentamento e geral ceticismo, a ampla praça não perdeu a mágica e o encanto. Para lá acorrem levas de manifestantes que semelham sem outra opção do que a tentativa de reeditar o seu multitudinário protesto. Para onde irá a reação, e qual será a postura das Forças Armadas, de novo requestadas, são perguntas que não ficarão muito tempo sem resposta.
 

 
(Fontes: International Herald Tribune;  O Globo )

sábado, 29 de junho de 2013

Dilma foge da Crise ?

                                           
        Começa pela resposta da Presidente Dilma Rousseff às manifestações de rua. Atabalhoada, esboroou-se no dia seguinte. Quando a crise bate à porta, é chegada a hora de medir a liderança. Quem estiver à frente do Estado, será medido(a) pelos acontecimentos e pela maneira por que venha a reagir ao desafio.
       Em sua reação, a presidenta pôs à mostra o respectivo despreparo. Nessa hora, em que os assessores e os familiares titubeiam nas sugestões contrastantes, e em que à volta o silêncio timorato cresce, só se ouve o monótono ruído do velho relógio de pêndulo, que parece dizer para tensos  ouvidos: chegou a hora da reflexão para decidir.
       E se o  problema está na falta de experiência ? Tirada da algibeira pelo protetor, e sob a sua interessada orientação, soubera navegar os escolhos e arrecifes da campanha, chegar ao segundo turno, e ser eleita. Com um que outro escorregão menor, logrou vencer.
       Chegara lá. Em outras terras, talvez, o seu rival, teria outra sorte. Político tarimbado, com longa experiência  José Serra principia pela UNE, nos seus tempos heroicos e não a chapa-branca de hoje, e passa com brilho por todos os níveis do governo !- se apresenta e é derrotado ! O povo brasileiro elege a mulher do Lula, com a escolha facilitada por campanha mal-conduzida pelo candidato da oposição, associada à míope traição de um seu afoito correligionário.
       Indiscrições ora reveladas dizem que próximos tentaram dissuadir Nosso Guia da indicação. Ficou a impressão de que o torneiro mecânico consultara mais o próprio interesse do que o da Nação. Dizem, igualmente, as mesmas fontes que Dilma não é esperta.
      Difícil que a História, esta juíza sem pressa, nos vá trazer no calor da hora a própria sentença. Os contemporâneos em geral têm de tatear na penumbra das aparências e das impressões. De toda a maneira, quem lidera carece de experiência própria, porque os gratuitos conselhos, nos momentos difíceis, ou escasseiam, ou sequer logram pesar no prato.
       A resposta ou veio depressa demais, ou então foi lançada de forma irrefletida, sem que a Chefe da Nação tenha ponderado todas as variantes e condicionantes. Pois é este  o emprego do presidente ou do líder. É coisa que não se resolve com gritos.
      O seu padrinho considerou uma barbeiragem a sua resposta à crise. O que houve? A senhora, que chega a tomar avião para consultá-lo, na hora da onça beber água terá preferido ou desconsiderar-lhe a indicação, ou, então, sequer ouvi-lo ?
      Nesse círculo palaciano em que temos a impressão de se ter convertido a República, confesso o meu assombro. Custa crer que a presidenta tenha ignorado o parecer do seu mentor. No tribunal da História semelha difícil increpá-lo de falta de experiência política.
      A Senhora nos trouxe a inflação de volta. E não foi por falta de aviso. Na sua hubris, pensou afastar a carestia com ameaças retóricas. Como se o dragão ouvisse tais discursos.
       A vaia em Brasília, ao lado do gnomo da Fifa, foi o primeiro e sério aviso da fase dos finalmente. Logo em seguida, as manifestações do passe livre em São Paulo, que, com a colaboração prestimosa da violência policial, se estendem e se apossam das ruas por esses brasis afora. E hoje a Datafolha nos diz que a senhora despenca nas pesquisas, e está com 30% de aprovação, dos 57% de há três semanas. É uma queda e tanto.
       Nos tempos de crise, é hora de medir os líderes. A senhora, que estava na abertura da Taça das Confederações, agora não pretende aparecer no jogo de encerramento, com a jovem seleção do Brasil a enfrentar o escrete favorito pelo retrospecto, a equipe da Espanha.
       O Maracanã, recém-inaugurado, nos pregou uma peça em 1950. Quem sabe, o nosso povo sofrido terá amanhã uma grande alegria.  Repense, D. Dilma. O ofício de Presidente da República pede coragem. Esconder-se, não resolve.

      

 (Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo )

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A Difícil Reforma Imigratória

                                     
         Em sessão solene, com a presença do Vice-Presidente Joe Biden – que preside o Senado e tem o voto de Minerva – os senadores votaram das respectivas carteiras (procedimento reservado às grandes ocasiões) o projeto de lei de reforma da imigração.
         Apesar de ter trinta e dois votos contra (vindos do GOP), a proposta foi considerada pelos padrões atuais como bipartidista, eis que contou com 68 a favor (incluídos catorze republicanos).  O último obstáculo do filibuster havia sido superado na véspera por votação idêntica (é necessária maioria de sessenta sufrágios para pôr termo a essa manobra dilatória, pelo regimento do Senado, e o que deveria ser recurso extraordinário virou rotina). Tal aprovação sinalizara que a passagem da medida pela Câmara Alta já era certa.
        Para colher o placet do Senado, e em particular do Partido Republicano, o Presidente Barack Obama e os democratas tiveram de pagar um alto preço. A despeito da maciça votação dispensada a Obama sobretudo pela comunidade latina (de origem hispânica) – que foi um dos fatores de sua vitória contra Mitt Romney, o GOP persiste na sua má-vontade contra os imigrantes. Dessarte, a discussão sobre a segurança nas fronteiras – como um limes romano, a fronteira sul (com o México) será reforçada, com o dispêndio de US$ 46 bilhões (dos US$ 8 bilhões originários), que se gastará não só na elevação da cerca, mas também em dobrar para 40 mil o número de agentes. Condições sine qua non incluem a finalização dos 1.170 km de muros.  Especifica-se, igualmente, que a dita reforma só poderá ser implementada quando tais medidas foram efetivamente realizadas.
        Como se verifica, é alto o preço do preconceito e da resistência etnocêntrica. Sem embargo, como nos ensinam Arnold Toynbee[1] e o próprio autor americano Robert D. Kaplan, a eficácia de tais medidas para proteger o limes[2] está votada ao malogro no médio prazo. Foi assim no Império Romano, e a história se repetirá com os EUA.
        A lei, se aprovada pela Câmara de Representantes, pressuporá um moroso caminho para a ambicionada legalização: o candidato começa pelo fim da fila, se submete a - prova de proficiência em inglês, - verificação de antecedentes criminais  - e pagamento de impostos atrasados.  Superadas as exigências da burocracia, os imigrantes poderão enfim legalizar o seu status, com a obtenção do ambicionado green card (visto de permanência) e, por fim, a cidadania ! As primeiras estimativas orçam o procedimento global em treze anos !
        Há outras especificações quanto à concessão de vistos (até duzentos mil por ano), abrangendo trabalhadores de alta e baixa qualificação (além dos vistos temporários para os bóias frias da agricultura).  Além disso, os patrões terão que verificar o status imigratório do contratado.
        Todas essas especificações, com os encargos suplementares impostos aos candidatos ao Eldorado, trazem o ranço de uma má-vontade que não pode disfarçar, no entanto, o quanto é desejado e necessário esse aporte do imigrante latino-americano. A dinâmica está em seu favor, malgrado as aparências, mas a trilha, por enquanto, será árdua.
         Tudo isso, é claro se a Câmara de Representantes quiser entrar nesse barco. A pressão política será forte, e a pujança inercial do processo posto em marcha pelo Senado não pode ser ignorada.
         No entanto, não se pode tampouco esquecer que, em função da incompetência política do novel Presidente Barack Obama no seu primeiro biênio, foram criadas as condições por que os democratas fossem batidos na eleição de 2010 pelo famigerado ‘shellacking’ (tunda). A direita radical do movimento Tea Party (financiado pelos irmãos petroleiros Koch), junto com o GOP montaram a maioria republicana na Câmara. Essa predominância, graças ao gerrymandering[3] realizado por muitas assembleias estaduais, sobreviveu à vitória democrata na reeleição de Obama. O artificialismo da maioria republicana na Câmara - que encolheu um pouco, mas não o bastante em 2012 - permite a permanência de John Boehner, como Speaker, e toda a estrutura da Casa de Representantes nas mãos dos conservadores e radicais do GOP.
        Daí, não surpreende que Boehner tenha reagido com ameaças à votação no Senado. A dependência da bancada republicana da vontade da Nação está condicionada ao dito artificialismo das respectivas condições relativas à sua eventual recondução, mas essa aparente rigidez não é imune ao bom senso, e à eventual realização de que a sua responsabilidade em ditar o fracasso da proposta aprovada pelo Senado poderá ter as consequências do chamado quanto pior, melhor,  expondo a responsabilidade do GOP em ditar um eventual malogro na questão imigratória, o que por sua vez implicará em dissídio ainda maior das comunidades latinas e asiáticas, levando ao apoio sempre maior para o partido Democrata.  
        A esperança de efetiva cooperação da Casa de Representantes – o que pressupõe apoio à proposta do Senado, e não uma contraproposta desfigurada da Reforma Imigratória, ou mesmo a sua rejeição – parte do princípio de que a maioria do GOP na Câmara pode ser radical pela própria origem, mas, se presume, não deve ser burra. Terá, por conseguinte, diante de si o desafio de uma resposta construtiva a esse desafio nacional, se ela pretende agarrar-se às precárias condições responsáveis pelo seu controle da dita Casa de Representantes.
 

 
(Fontes:  O Globo,  International Herald Tribune )



[1] A.J.Toynbee,  Um Estudo da História.
[2] Limite romano.
[3] Modificação nos limites dos distritos eleitorais de forma a conferir vantagem indevida a um dos partidos.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Picadinho de Notas e Comentários

                                    
Um basta ao Recursismo ?

 
         O Deputado Natan Donadon (PMDB-RO), condenado em 2010 a mais de treze anos de prisão por formação de quadrilha e desvio de fundos da Assembleia de Rondônia, continua em liberdade, graças ao subterfúgio  de recursos interpostos pelos seus advogados, com único propósito protelatório.
         Até o presente, o Supremo Tribunal Federal tem feito o que sempre fez, na vigência da Constituição Cidadã de cinco de outubro de 1988. Em outras palavras, admitia a utilização ilimitada do chamado recursismo, avaliando cada proposição como se ela tivesse algum outro objetivo que não a postergação indefinida da aplicação da pena.
        Agora, enquanto se ouve o clamor das ruas, o Supremo, por intermédio da Ministra Carmen Lúcia, decidiu que tais recursos estão sendo utilizados “indevidamente”.
        Assim, poder-se-á então esperar que o deputado Natan Donadon vá para cadeia, e por primeira vez, sob esta Constituição ? A Câmara de Deputados abriu processo de cassação de mandato.  Enquanto isso, com expressão similar daquela do advogado da médica-chefe da UTI do Hospital Evangélico de Curitiba, Virginia Soares de Souza, o defensor do deputado disse que havia interposto outro recurso...
        Por sua vez, o Procurador-Geral  da República, Roberto Gurgel observou que a decisão do STF pode ter repercussão na decretação de prisões no processo da Ação Penal 470. Gurgel defende a prisão imediata dos condenados.  O STF entende que os réus só podem ser presos quando não houver mais possibilidade de recurso, o que é água para o moinho dos advogados com seus arrazoados protelatórios.
       Quanto ao caso do Mensalão, é oportuno não esquecer dois fatores supervenientes: (a) os chamados embargos infringentes, que dariam aos condenados uma enésima possibilidade de reverter as penas (malgrado o fato de a Ministra do STJ Eliana Calmon considerar que o embargo infringente não cabe para ação da competência exclusiva do Supremo – é um recurso aplicável em corte superior, quando a ação tem votação não-unânime em corte inferior ); (b) a circunstância de ingressarem no Supremo, por força de aposentadorias, dois novos ministros, Teori Zavascki e Luis Roberto Barroso. Se estes últimos participarem da votação, será que vão mudar o resultado das condenações do Mensalão? E se se confirmar a salvação in extremis, que repercussão terá nas manifestações de rua?  

 
A Principesca Sucessão no Emirado do Qatar

 
          O anúncio pelo atual Emir do Qatar, o Xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, de sessenta e um anos de idade, de que  passará a coroa para o quarto filho, o Xeque Tamin bin-Hamad al-Thani, com trinta e três anos, trouxe algum rebuliço para esse riquíssimo pequeno país no Golfo Pérsico, cujo regime político não há de diferir muito por ora do absolutismo dos pequenos estados italianos, de que trata Stendhal no romance A Cartuxa de Parma.
          Outro aspecto a que o noticiário pundonorosamente não alude foi que a atual sucessão anunciada difere radicalmente da anterior, em que o Xeque Hamad, através de golpe palaciano, derrubou a seu pai, o Xeque Khalifa al-Thani, exatamente há 18 anos atrás, no dia 27 de junho de 1995.
           Se no aspecto político a situação pouco mudou, em termos financeiros, a importância do Qatar cresceu, com um PIB per capita de US$ 18,400.  Além disso, o emirado é  proprietário da rede mundial televisiva al-Jazeera, e será  anfitrião da Copa do Mundo em 2022.
          A par disso, e não apenas diplomaticamente, o Qatar é um dos aliados da Liga Rebelde Síria, e tem contribuído com fornecimento de armas, nos presentes parcimoniosos limites, aos que  lutam contra o regime alauíta de Bashar al-Assad.        
 

Baleias: a quota de ‘pesquisa’ do Japão

 
          O apetite nipônico pela carne de baleia – notadamente as espécies ‘mink’ e ‘fin’ – é o que está por trás da alegada quota de pesquisa de mil baleias por ano para a frota baleeira do Japão.
          Na Convenção internacional da Baleia, de que o Brasil é parte, a delegação japonesa obteve, a título de suposta quota de pesquisa, a autorização de abater mil baleias por ano. Essa pesquisa é uma estória da carochinha, que só existe para permitir que o Japão destine a carne do animal para consumo humano.
          A Austrália entrou com ação na Corte Internacional da Haia – a Nova Zelândia é a sua litisconsorte – contra o Japão. A justificativa se baseia na prática ilegal da caça da baleia, com fundamento  na acusação de que a ‘quota de pesquisa científica’, em verdade não passa de  fraude à Convenção, pois a aludida caça tem objetivos comerciais e não científicos. Como assinala Bill Campbell, o chefe da equipe de advogados da Austrália: “estamos afirmando que o que o Japão está fazendo é  gritantemente comercial. Você não mata 935 baleias por ano para realizar pesquisa cientifica; na verdade, não se precisa matar nem uma só baleia para pesquisar.”
         Dos signatários da Convenção da Baleia, o Japão é o único a invocar razões de pesquisa para matar o maior mamífero da terra. Os outros dois ‘vilões’ no que tange ao extermínio da baleia são a Noruega e a Islândia, mas os seus motivos para a pouco simpática atividade são diversos.
         Na próxima quinzena, as representações da Austrália e do Japão exporão as respectivas posições para os dezesseis juízes da Corte Internacional da Haia. Ambas as Partes se comprometeram a acatar a sentença do Tribunal.
        Encontram-se na grande sala da Corte igualmente dois representantes de Sea Shepherd (Pastor dos Mares), que é um grupo conservacionista. Está a seu cargo o envio de pequenas embarcações que se empenham em manobras arriscadas para bloquear, atrapalhar  e acossar a frota baleeira nipônica. Essas manobras são feitas para impedir a caça, e colhem grande atenção na mídia.  Neste contexto releva notar que os baleeiros japoneses podem ser verdadeiras usinas flutuantes. Por vezes,  a ação de tais naves pode ser odiosa. Nesse sentido, há filmes das ações agressivas desses monstros nipônicos, tentando intimidar uma embarcação do Greenpeace, a ponto de ameaçar afundá-la.
        Presume-se que a tática da representação japonesa será a de contestar a jurisdição da Corte para conhecer da questão (o que parece linha de ação um tanto débil para quem já aceita o que o tribunal sentenciar).  O Japão tentará, igualmente, justificar a própria ação com base na Convenção de 1946  e a permissão da Comissão Internacional da Baleia  (IWC) em sacrificar tais mamíferos “para a pesquisa científica”.
      Não há dúvida que a justificativa da pesquisa científica  é a parte mais fraca da defesa do Japão, porque é manifesta a utilização dessa caça para fins comerciais de consumo.
      Outro aspecto positivo, no que concerne a esses simpáticos gigantes dos mares, é que o consumo japonês de carne de baleia tem decrescido. Já há críticos no Império do Sol Nascente a reclamar dos subsídios do Governo para a frota baleeira, diante da evidência do menor interesse do consumidor local e dos crescentes estoques de carne congelada de baleia.
 

 
(Fontes:  Folha de S. Paulo, International Herald Tribune )

Cartas ao Amigo Ausente (XV)

     


                                                   X V

 
 

        Meu dileto Amigo Pedro,

 

        o mutismo a que me referia na última carta persiste. As aparências indicam, portanto, que as minhas intervenções não mais são necessárias. Se devemos saudar a normalidade, sempre resta o ambíguo sentimento, em que a satisfação do dever cumprido se mescla à sensação de indefinível vazio.

        Nesses três meses que estão por findar, me venho perguntando se a reparação desejada não mais se apresente nas vestes luzidias do galardão merecido. Do nada surgiram sombras, inda mais tenebrosas e horrendas do que as vagantes no Hades. Ao contrário das vistas por Ulisses, essas têm memória. A sua triste faina é incompreensível para os mortais, eis que, criaturas da injustiça, elas se propõem não só negar, mas, em escarnecendo, castigar o mérito com as armas cavilosas da prepotência. Enquanto cercado da geral indiferença, elas serão tua companhia de todas as horas. Às vezes refluem, noutras se entremostram, até de novo se adensarem, na dança cruel e volúvel, em que só a insana esperança, com a heróica e trêmula fímbria de luz, te faz prosseguir na caminhada. Será ôý÷ç[1] o verdadeiro nome da justiça ?

        Mas não te apoquentes por ora no intento de comigo partilhar o significado dessas linhas. Se a longa, iníqua, injuriosa noite acaso se desfizer, que fique o transe marcado nas crispadas palavras de solitário parágrafo.

       Tratemos, ao invés, de ensaiar mais alguns traços no esboço do personagem que encarnasses na tua existência terrena. Se já é difícil conviver com a ausência irremediável, tanto maior o será, se nos colhe no estrangeiro, em que não podemos recorer às muletas da remembrança. Refiro-me, por certo, aos lugares e espaços que cruzaste – como não hei de imaginar-te na sala maior da Leonardo da Vinci, ou junto ao do bar Capital, a remexer na moedeira, para pagar o cafezinho dos amigos ?

       Diplomata que foste, e no entanto, não gostavas de viajar. Assim, não te posso conceber na Acrópole, na distante Olímpia, ou, num turístico arroubo, na insular Santorini. Sem embargo, prezavas outro tipo de viagem, feita através das páginas dos livros, recriando paisagens, porém as mais das vezes silente auditor de doutas palavras, fixadas nas ordenadas letras das folhas dos volumes da tua biblioteca.

       Hoje, me animo a propor um périplo pela mente. Percorrendo tais esconsos domínios, a que ao outro só é dado apreender  através de incertos reflexos, pelo enganoso espelho das sensações refractadas, o juízo será sempre omisso, tentativo e indistinto.

        Não obstante, cotejando impressões dos primeiros tempos e dos últimos, me atrevo a dizer que, em termos de atitude e tolerância, ao contrário de muitos, melhoraste com o passar das décadas. Recordo-me da frase dita por volta dos anos sessenta, em que te referias a um rapaz teu vizinho, a quem havias censurado por cerrar as janelas do apartamento com pesadas cortinas de veludo. Entendias aquele desejo extremo de privacidade como reprovável e admitias, por conseguinte, o direito do olhar estranho a condicionar o comportamento de alguém, mesmo no recesso de sua morada.

       Pareceu-me preconceituosa a tua atitude, que mais semelhava ter a ver com a odienta curiosidade dos familiares da Inquisição. Ao deparar-te nessa rígida postura, resultava-me difícil aceitar que para ti representasse ameaça a íntima escolha de um pobre diabo, refugiado entre as próprias paredes. Mesmo naqueles anos plúmbeos em que a estreiteza mental de uns tantos intentava tanger a sociedade na marcha batida, sob as esquálidas luzes de suas poucas letras, para a existência vivida sob o bastão do medo, e as promessas de outra ordem unida, regida por tacanho, medíocre conformismo, como poderia supor que dos teus livros houvesses retirado lição tão pouco conforme à moderação do sábio e ao imanente respeito ao direito alheio de diferençar-se dos ditames do presídio ?

        Já nos anos noventa, relembro conversares sobre um cozinheiro que trabalhara na tua residência da Barão do Rio Branco. A despeito de te haver deixado o serviço, aduziste que sempre o procurava ajudar, por considerá-lo pessoa de boa índole. Mais além, se acrescentaste que ele era gay, terá sido em funçõ de que perceberas, enquanto falavas com o antigo empregado, avultarem sob a camisa os seios de silicone. Ao referir a descoberta, inda que a entonação não fosse a de uma simples constatação factual, tampouco o condenavas, com a acerba intransigência velho-testamenteira. Dei-me conta então que a chamada correção política, exprobada por muitos como a persona da hipocrisia, na verdade te influenciava o comportamento, nele mostrando a sua face tolerante e respeitosa da diversidade do outro.

        A tua preocupação social cresceria com o avançar do tempo. Ao invés de muitos, em que o enrijecer das artérias também se reflete no comportamento, se reforçariam as bases laicas e liberais da tua personalidade. Consoante o teu hèïò esse engajamento seria sempre individual. Se colimavas porventura expandir-lhe o efeito, jamais verbalizaste tal desígnio, como se preferisses deixar ao exemplo as eventuais consequências.

        Pertenceste àquela geração que julgou ter ‘perdida’a mocidade pela experiência do Estado Novo. Peculiar juventude essa, que admirava Gustavo Corção e os lenços brancos da U.D.N. Imperceptivelmente, boa parte dessa geração se viu empurrada para a direita, capitaneada a princípio pelo Brigadeiro Eduardo Gomes e, mais tarde, por Carlos Lacerda.

       Tenho presente artigo que escreveste em louvor de Corção. Se não me engano, publicado pela Revista Forense, nos foi mostrado com o disfarçado orgulho do pai de um único filho. O revisor, sobretudo nas páginas finais, decerto se ausentara, tal a pletora de erros tipográficos. Na oportunidade, formulei elogios de circunstância. Achei que exercício de franqueza seria gratuita crueldade, para quem lia a produção com os olhos do universitário. Hoje, entendo melhor porque não poderias repudiar, seja a criatura, seja o idolatrado pensador de uma época transata.

       Das ambiguidades, muitos dos partidários do encanecido tenente não lograram escapar. Não é hora, porém, de increpar-te erros, eis que te apuraste com os anos. A tua visão democrática, informada pelos princípios herdados do ideal republicano do século XIX, e os antagonismos ideológicos do período de entre-guerras, não poderia prescindir das premissas das elites, muita vez contrapostas, mas não necessariamente diversas. E se ata for requerida, estou pronto a reconhecer-te coerência, de cujos parâmetros se poderia divergir, mas não menoscabar, como se foram meras construções do passado.

       Não creio que discordarás se te situar no centro, em termos políticos, com um discreto viés de simpatia para determinados temas propugnados pela esquerda moderada, desde que certos requisitos de capacitação e colocação forem respeitados.

       A suposta superação da divisão doutrinal entre direita e esquerda é uma falácia a que recorrem amiúde os líderes de direita e centro-direita. Dentro do quadro dinâmico da política, tal contraposição – tipificada mas não criada pela assembleia na Revolução francesa – há de persistir. Contudo, no chamado arco constitucional, as posições ideológicas dos diferentes movimentos tendem a evoluir ou involuir, de acordo com as ideias-força de cada momento histórico. A crônica do partido radical na França é, a esse respeito, exemplo da mutabilidade política, sempre dentro desse quadro de fluxo e de condicionamento da associação  às contingências ditadas pela sociedade. Empurradas por exigências não atendidas e por contrastes não solucionados, as tendências liberais otocentistas e mesmo novecentistas caminham para a subordinação ou absorção pelas forças conservadoras da direita. Nessa curva, onde o vácuo inexiste, os espaços progressistas, nos diversos avatares do processo, serão ocupados por uma nova esquerda. Apenas leve adendo ao dito evangélico – dize-me com quem andas (e o que propões) e eu te direi quem és – me parece suficiente para expor e desnudar todos os aranzéis da denominada terceira via.

        Da tua vocação udenista, apenas dela me inteirei por assim dizer de segunda mão. Na época de nosso convívio em Quito, a U.D.N. já tinha sido engolida pela “revolução de 31 de março” – cuja falsidade começa pela data – e os seus principais líderes cooptados pela Arena. Ainda não falávamos muito de política, não fosse pela necessidade de tentear o terreno em momento propício à la chasse aux sorcières[2]. Dava-me conta, todavia, por frases e atitudes esparsas, de tua inclinação liberal moderada. Mais tarde, te encontraria lotado na D.S.I.[3] – que se ocupava da parte ostensiva da política de segurança nacional. Para mim, foi uma surpresa, cuja ocorrência prefiro atribuir às relações com o então chefe, o Ministro João Luiz Areias Neto. A presença na D.S.I. indicava, porém, um certo isolamento na Casa, que te levaria a trabalhar em lugares não condizentes com a tua capacidade e, quero crer, com o próprio enfoque político.

       Muitos anos depois, na década dos oitenta, o ambiente se desanuviara, e a conversa no bar Monteiro, poderia desembocar para questões políticas. Eras leitor do Globo e da Veja, e no domingo compravas a Folha de S.Paulo, por causa do suplemento Mais!.Nas discussões, te pilhava amiúde em posições que chamaria de liberais-conservadoras, em que estavam mui presentes as posturas da tua geração, inclusive nos pendores pró-americanos. Na verdade, como verificaria após a virada do milênio, vias com o ceticismo de longos anos de diplomacia de alinhamento automático quaisquer iniciativas que se propusessem contrariar a potência hegemônica. Assim, sacudias a cabeça, atavicamente incréu, diante das campanhas anti-Alca, que eu e o Rezende defendíamos com vigor. Não descreio do teu patriotismo, mas provinhas de um tempo em que a contestação às iniciativas de Washington seria impensável em determinados círculos.

        Tampouco entendias como o contemporâneo Rezende se abalançasse agora a aventuras contra força que, a teu juízo, esmagaria qualquer resistência. A todas as veleidades de independência olhavas com vistas cansadas e enfastiadas, de quem havia por desarrazoadas e quixotescas essas vãs empreitadas de arrostar o poderio estadunidense.

         Comigo parecias mais paciente, como se atribuísses à minha relativa juventude o motivo de tais despropósitos. Já do Rezende, professor universitário e simpatizante do denominado PT igrejeiro, aceitavas a custo as extravagâncias, que a teu ver, acredito, não condiziam com alguém da sua experiência.

        Na última eleição presidencial em que votaste – a de outubro de 2002 – a tua declarada hesitação quanto à eventual inclinação pela candidatura de Lula poderia talvez fazer pensar a um estranho ser prenúncio alvissareiro de sufrágio para o candidato do P.T.  Conhecendo-te bem, não colhi essa impressão. Pareceu-me, em verdade, que a tua suposta dúvida seria simples aceno em homenagem à manifesta maioria então existente em favor de Luiz Inácio Lula da Silva.

        Toda a tua a formação e, em especial, a exigência do nível universitário, tornava assaz improvável o voto para o ex-operário metalúrgico, que abandonara os bancos escolares após o quarto ano primário. Assim, no segundo turno, na hora da decisão, votarias em José Serra, o contendor que já entrava derrotado.

        E à medida que irrompiam os escândalos na presidência de Lula, cresceram em estridência as tuas críticas, que lançavas com mal disfarçado gosto contra o pobre Rezende. A mim, tomavas o meu silêncio como tácita aprovação das tuas verrinas. Embalado pelo que lias na revista Veja e nas páginas de O Globo, encantado pelo desconcerto do Rezende, e contando com o meu presumido silente apoio, davas rédea solta à veemência das invectivas contra o governante que fora eleito sem o teu voto, a ponto de levares um pouco além dos limites da conveniência o ardor tribunício.

        Então te ocorria o que sói acontecer aos pelotões de cavalaria que se adentram demasiado nas hostes inimigas. Esmorecido o ímpeto, as palavras perdiam a força, envoltas e quase abafadas pela persistência de um silêncio que do embaraço passara à mudez sisuda e contrafeita, reservada àqueles que se enlearam nos próprios excessos.

        Em geral, sugeria eu que mudássemos de assunto. A  álacre concordância de Rezende selava o destino do teu estouvamento. E se mal participavas da discussão do novo tema, seria menos por falto de energia do que por remoer as razões da inopinada peripécia.

        Se me permites, gostaria de levantar outro tópico, em que tenho batalhado para chegar a um juízo acerca da tua postura. Longe de mim submeter-te  a uma  espécie de sabatina ideológica. Hás de convir, no entanto, que é oportuno esclarecer alguns pontos, mormente aqueles que, à primeira vista, semelham contradizer personalidade voltada para o progresso da ciência e a um consequente maior compromisso com a expansão do saber humano.

        Por um lado, foste homem preocupado em aprofundar o conhecimento no que concerne à evolução da própria espécie. Nos teus últimos anos, serias leitor incansável de livros e publicações dedicados a tal estudo. Quantas vezes não te vi sobraçando volumes a respeito do tema ! E, não obstante, apenas uma nesga dessa ilustração a colocaste no papel, ao incluir a matéria em um dos excursos da tua obra sobre o ‘Animal Político’.

        Já transposto o milênio e, portanto, entrado na lenta descida para o Hades, voltarias a exercer aquele papel propedêutico que assinalara a fase quitenha. Às minhas instâncias, me recomendaste a aquisição pela Leonardo da Vinci de um livro que me daria visão geral em disciplina da qual eras um especialista. Terá sido a derradeira publicação que, informado por tua prévia experiência, me seria dada ocasião de acrescentar à minha biblioteca.

       Como se pode conciliar esse empenho diuturno, esse interesse na progressão do homem, em uma palavra, essa vocação para a ciência – que se refletia, de resto, na ðïëõìáèßá[4] das estantes do teu gabinete de estudo – como se pode conciliar tudo isso, repito, com a negação que diria quase raivosa do alcance da obra de Sigmund Freud, e de tudo aquilo que se reportasse à psicanálise ?

       Vamos por partes. Refutavas tanto Marx, quanto Freud. A tua oposição a essas duas personalidades tinha algo de visceral. Tenho a impressão de que, para ti, a recusa de um pressupunha igualmente a do outro, como se fossem farinha do mesmo saco. Francamente, não creio que hajas lido de forma sistemática a qualquer um dos dois pensadores. Talvez o teu trato dos escritos de Marx se tenha limitado a textos de opositores do marxismo, em que as teses do movimento fossem supostamente rebatidas e invalidadas. No que tange a Freud, tampouco acredito que a tua posição contrária haja demandado a leitura da Interpretação do Sonhos e de outras obras mestras do criador da psicanálise. Ao invés do cuidado que dispensavas ao exame, v.g., da Política de Aristóteles e a trabalhos filosóficos, os teus argumentos contra Freud me pareciam demasiado esquemáticos, partilhando das férreas, abrangentes e incisivas certezas com que em geral se vestem os preconceitos.

        Quando afloravam temas relativos ao doutor da Berggasse 19, a tua reação diferia radicalmente da postura costumeira, que prezava o argumento lógico. Se podias expor de modo acalorado, não enjeitavas o aporte da razão. Ora, diante de Freud reagias com os estrídulos, veementes clamores dos que se crêem ameaçados. Temeria acaso a rigidez da tua moral oitocentista os insidiosos desafios do divã ? Eis uma suspeita que sempre me acompanhou ao deparar as tuas desabridas objurgatórias contra a prática da psicanálise. Por vezes, desmerecias de alguém como T.R. (x) com um muxoxo de escárnio por referir o tratamento com a naturalidade devida. Podia-se jurar que nessas circunstâncias não julgavas necessário mais explicitar  a crítica, visto que supunhas pensarem do mesmo modo os demais à tua volta.

        Porque não te contraditei ? Não terá sido decerto por temor reverencial. Desde cedo, com o respeito que a amizade requer, defendi pontos de vista que sabia não compartilhares. Em outras oportunidades, como na censura a posições pequeno-burguesas, rocei os limites do tolerável. Calei-me, a despeito de não concordar com o ranço filisteu dos motejos lançados contra a psicanalistas e pacientes, por reputar ser demasiado tarde para convencer-te de quão equivocado estavas.

        Terás crescido em ambiente no qual a prática psicanalítica era associada ao desaire  antes incorrido por quem consultasse um alienista. As tuas inseguranças, preferiste confrontá-las com a carapaça de alegados preceitos morais, que te ajudariam a não questionar atitudes delas decorrentes. Dessarte, a tua hiperproteção de Therezinha, que justificacas à conta da surdez, foi sempre, e por largo consenso, interpretada como consequência do teu ciúme. Mesmo em Quito, farias questão de receber as poucas delegações que por lá passavam em restaurante de hotel. A voz corrente, que entre risotas se ouvia, não fazia segredo do real motivo do isolamento em que mantinhas a tua mulher. A esse respeito, e em face dos precedentes, constituíu objeto de espanto que o casal houvesse ido à nossa casa da Seis de Diciembre para conosco comemorar – en petit comité, é verdade – o Ano Novo de 1967.

        O apelo à rigidez no comportamento terá sido a maneira escolhida para lidar com essa óbvia insegurança. Tendo presentes a tua inteligência e a manifesta impropriedade da ‘solução’ encontrada, só posso atribuir à emoção a reação instintiva de tentar desacreditar o instrumento – no caso, a psicanálise – que te ajudaria a entender as verdadeiras razões de tua conduta. Configurada como ‘ameaça’, para melhor abafar as dúvidas cumpria rotular a prática com os traços preconceituosos do ‘feio’ e do ‘esquisito’. Por outro lado, a tua extrema reserva quanto à vida privada – de que a ocultação da data do teu aniversário ao amigo Rezende é exemplo – sempre me desencorajaria de levantar  questões conexas a esse campo.

       Internalizada a rejeição à psicanálise e ao seu criador, desenvolveste todo um conjunto de posturas em que essa contestação se estruturava e se expressava. Diante da  discussão entre ciência e arte, isso te bastava para descer inda mais na apreciação da essência e das características deste exercício terapêutico. Se depreciavas a prática, para ti a decorrência lógica seria igualmente desmerecer de quem a ela recorresse, e nesse sentido, a tua tua referência habitual seria a T.R.(x) sempre dentro de contexto de suposto desdouro.

       Ora, devo confessar-te que não raro ouvia constrangido a essas observações. Surpreendia-me que alguém da tua cultura pudesse verbalizar tais prejuízos, encontradiços em gente de baixa extração. Continha-me, por vezes a custo; e só me omitia pela certeza de que de nada adiantaria procurar mostrar-te o erro, por tão engessado o comportamento, e tão entranhada a convicção. Se me atrevesse a contradizer-te, a par do esforço inútil, apenas poderia aspirar à tua desconfiança.

        Se hoje me decido a mencionar o delicado tópico, assim procedo em função do que me propus já no primeiro parágrafo da primeira carta escrita não muito depois de que baixaras à sepultura. É de esperar-se que lá onde estiveres tenhas visão mais serena e, por conseguinte, mais destacada das contingências terrenas.

        Nessas páginas post mortem, o que foi um desejo de prolongar diálogo de amigos me terá conduzido a relembrar-te facetas de tua personalidade e conduta. Em obediência à injunção da veracidade, de traçar o quadro na sua inteireza, warts and all [5], se me afigurou necessário de ti apresentar um punhado de aspectos em que não luzes com o consueto brilho. A hagiografia nunca esteve entre os teus gêneros preferidos. E nada mais falso e sensaborão do que os retratos edulcorados pelos solícitos retoques de quem se empenha em deles retirar uma das características da condição humana.      

        Isto posto, é hora de trazer a lume outras vistas mais condizentes com o Pedro, de cuja prática e convívio tanto lamento a brusca interrupção.

       Durante a tua existência, malgrado o saber e a capacidade, que eu saiba só publicaste um artigo, a que já me referi. Sem embargo, não despejavas no próximo a eventual irritação em ver outros alcançarem nomeada a que poderias com justiça pretender. Assim, não só me incentivavas a publicar meus trabalhos, senão cuidavas de obtê-los, no caso de não me ser possível proporcionar-te uma cópia.

       Lembro-me do artigo em Vozes sobre a Revolução Guatemalteca, que lograste comprar em Petrópolis, e do meu estudo sobre a política externa dos Estados Unidos, de que leste com presteza as 180 páginas. Os teus comentários, cuja franqueza conhecia, os recebia com prazerosa expectativa. Não ignorava que apontarias as lacunas e os defeitos, e não te enredarias em elogios, se não os julgasses cabíveis. Tinha gosto em conversar contigo acerca de minhas produções, pois o bom leitor será sempre bem-vindo para quem se aventura a ter impressa a própria palavra. De nada serve a inane lisonja, que para mim está no mesmo plano do silêncio dos preguiçosos e indiferentes.Com todas as escusas para dissimular a falta de vontade na raiz do fato de não haver lido, tu, ao invés, te abalaste ao centro para desencavar a publicação que estampara o trabalho do amigo.

       Compreendi igualmente o destempero na tua reação diante da manifesta não-leitura  pelo velho companheiro dos bancos acadêmicos dos diversos fascículos que nos distribuías, na fase derradeira da elaboração do livro “Crítica do Animal Político – O significado de uma expressão sem sentido”. Concentraras na monografia muito mais do que te propuseras ao encetar-lhe a preparação. Mesmo sem entrar nos óbvios motivos que te induziam a assim proceder, desejavas recolher a opinião e os comentários dos teus poucos leitores iniciais, inda que não tivesses dúvida acerca da qualidade da obra. O escritor, por melhor que seja, jamais se sentirá realizado diante da calada passividade da gaveta. Daí, as sentidas censuras, que presenciei, a quem não encontrou tempo para perlustrar-lhe as páginas, como demonstrara, ao longo de tantos meses, a absoluta ausência de qualquer comentário ou observação crítica.

       Se te faço reparos, é importante não esquecer o quanto as nossas opiniões convergiam. Acerca das matérias as mais díspares, brotava a nossa concordância com a espontaneidade das águas em fontes de montanha. Dessa harmonia, que coloca em contexto adequado as esporádicas discrepâncias, darei exemplo no campo das apreciações subjetivas sobre personalidades de nossa faixa de conhecimento.

        Dessarte, se me afigura a calhar o que transcrevo a seguir. Bastava aparecer na imprensa mais uma contribuição de pessoa já mencionada nessas laudas, e não tardávamos em cruzar nossas apreciações.

        “ Leste ontem o artigo de ... ?”

        “ Li. O quê V. achou ?”

        “ Hmmm...”

        “ Eu também.”

        Em geral, Pedro me pedia que fosse mais específico. As reservas feitas tinham a ver com a double allegiance do autor, que gostava de parecer uma coisa, quando na verdade advogava uma outra. Como o conhecíamos bem, não era difícil desconstruir o seu arrazoado.

       “ Então não gostaste ?”

       “ É complicado... mas acredito que desta forma se pode resumir a minha impressão.”

       “ Algo lá não me cheira bem...”

       “ É, meu velho... Você aí disse tudo.”

       Pouco depois a chamada se concluía. Os diálogos, à primeira vista crípticos, na verdade eram a condensação de opiniões há muito discutidas e esclarecidas. Como as restrições fossem a condicionantes já sabidas, muita vez não se sentia a necessidade de explicitá-las.

      

       Meu amigo Pedro,  

     

         por primeira vez ao acercar-me do fecho da correspondência – e não posso servir-me das fórmulas clássicas  vale  ou  hññùóï [6], porque poderias atribuí-las a humor um tanto macabro – preocupa-me não o que vá dizer agora, mas o súbito vazio do que tenciono escrever na próxima carta. Se esse vazio difere daquele a que me reportei no primeiro parágrafo desta, pois abarca a uma área tão imprecisa, quanto extensa, de algum modo os dois se confundem e mutuamente se reforçam.

       Como para ti o tempo nada mais significa, quem sabe não hás de notar se o espaço a intermediá-las for maior.

      Com a funda estima de quem se empenha, apesar de tudo, em reviver o passado, nesta empresa sem esperança, que insanamente acredita não só em poder ouvir o pétreo silêncio, senão com ele dialogar,



[1]  A Deusa Fortuna
[2] à caça às bruxas
[3] Divisão de Segurança e Informação
[4] erudição, polimatia
[5] com verrugas e tudo
[6] saúde (fechos de carta em latim e grego clássico)   
(x) Iniciais pseudônimas.