quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Revolução na Ucrânia (III)

                                      

         A Ucrânia entra em nova fase em sua revolução. A arrogância do Presidente Viktor Yanukovych se julgara com força bastante para contrariar o que parcela substancial da opinião pública aspirava: a concretização de acordo de associação com a União Europeia, longamente negociado com Bruxelas.
         Dividida em duas grandes regiões – a ocidental, de fala ucraniana, e voltada para a Europa de Bruxelas; e a oriental, em que o russo é língua franca, com simpatias pró-Rússia – a Ucrânia se desligou de Moscou com o desaparecimento da URSS, em princípios da década de noventa. É um país com 45 milhões de habitantes e a sua ambiguidade nacional se reflete na própria denominação, que significa região em torno ou próxima.

        Não é a primeira vez que Yanukovych bate de frente com a opinião pública ucraniana. Em 2004, a chamada revolução laranja, movida por aspirações democráticas, forçara a anulação de pleito acoimado de fraude. O paladino da causa democrática Viktor Yushchenko venceria a nova eleição.
        Na seguinte eleição, em 2009, de novo encontramos Viktor Yanukovych e o seu partido das regiões, que logrou superar a antagonista Yulia Timoshenko, então Primeiro Ministro. Yanukovych, de linha pró-Russia, foi favorecido pela impopularidade da gestão anterior de Yushchenko e pela recessão da economia.

       Ao assumir o poder, com a sua tendência autoritária, Yanukovych julgou oportuno recorrer à chamada judicialização na política, montando um caso contra a sua principal opositora. Através de juiz singular e de dúbias acusações, fez condenar à prisão a Timoshenko, líder da oposição. A despeito da fragilidade das imputações, da clara motivação política do processo, e da série de apoios, tanto na Ucrânia, quanto na Europa ocidental colhidos pela prisioneira Yulia Timoshenko,  o presidente a mantém trancafiada em um lazareto de Kharkov.
       Releva assinalar, a propósito, que Yanukovych é próximo do presidente Vladimir Putin, de quem imita os métodos autoritários, incluído o emprego de dócil magistratura para a intimidação e eventual neutralização dos adversários políticos.  O seu tratamento da antogonista Timoshenko é reflexo dessa postura. A despeito de repetidas promessas a líderes europeus de que ‘considera’ a sua liberação, prefere ganhar (ou perder, segundo o prisma do observador) tempo, e postergar para as calendas o indulto, enquanto permite que líderes oposicionistas menos importantes ganhem a liberdade.

       A atual revolução na Ucrânia irrompeu por conta de  mais uma postura autoritária de Yanukovych. Não hesitou em romper com Bruxelas, às vésperas da firma de amplo acordo, comercial e também político, em que boa parcela da população ucraniana depositava muitas esperanças. Com a húbris dos líderes autoritários – na linha Putin – jogou pela janela esse tratado longamente costurado com Bruxelas, trocando-o por ingresso na União Aduaneira com a Federação Russa.

       Derrotada no até então submisso parlamento, onde o partido situacionista, dito das Regiões, detém o controle, a opinião pública desceu às ruas e praças – notadamente a Maidan, da Independência, no centro de Kiev – e, dentro da mecânica das revoluções populares, encetou os protestos, de início pacíficos.

          No entanto, por força das circunstâncias – e do inverno boreal – o afluxo do povo se dirigiu a ocupações de prédios públicos – como a Prefeitura – em que se conjugasse o simbólico da posse com o relativo abrigo da intempérie.

         Na dinâmica das revoluções, do protesto moderado e quase-pacífico, a postura do poder (Yanukovych), por valer-se de suposto fato consumado, contribuíu para o ulterior acirramento do ânimo da multidão – que passou a manter postura quase-militar nas suas formações, com a compactação dos grupos e a sua proteção por lâminas de metal.

         Por sua vez, o presidente pensou que a consolidação dos acordos com Putin – aquisição de quinze bilhões de dólares em títulos da dívida ucraniana (uma aposta ousada do presidente russo), além de redução no preço da energia (gás) adquirida de Moscou, sem falar na integração da União Aduaneira – desalentaria os populares de sua proposta europeia. Ao invés, a confrontação acirrou-se, com a ocasional derrubada de monumento (estátua de Lenin), em que a animosidade do patriota ucraniano se volta tanto contra o amo russo, quanto o aliado Yanukovych.

          Como se dispusesse de sólidas vantagens, o Presidente ucraniano permaneceu inamovível e, dentro do acirramento da tática repressiva, penalizou através da assembleia muitos dos procedimentos da oposição. Aumentou, outrossim,  a ação policial, reforçando o efetivo da capital com o das províncias. A par disso, determinou o  acirramento da violência – cinco mortes entre os manifestantes – , introduziu a tortura,  chegando, por fim, à proibição de manifestações políticas. Esta última, em meio a diversos outros casuísmos, foi aprovada pelo parlamento a dezesseis de janeiro corrente.

          Dentro do típico autismo político de ditador, diante da contestação, a sublevação cresceu, alimentada pelas provocações do poder. Sem decerto o desejar, a sua inabilidade conduziria ao aumento da tensão. Nesse instante, Viktor Yanukovych resolveria apelar para a concessão, posto que ainda limitada. Por primeira vez, reuniu-se com dois líderes oposicionistas – Vitali Klitschko (Udar) e Arseniy Yatseniuk (Pátria). Não foi chamado talvez o mais exaltado, Oleg Tyagnibok, do partido Liberdade (nacionalista).

         No afã de afastar os motivos do recrudescimento da indignação popular, o presidente mandou que seus líderes na assembleia desfizessem o pacote do arrocho, instituído a dezesseis. As ordens foram cumpridas, mas nas circunstâncias, o povo as julgou como não existentes, e não como eventuais créditos de Yanukovych para composição pacífica.

        Por outro lado, como ficou patente, a negativa dos dois políticos oposicionistas de participarem de uma acomodação com o poder correspondia a uma decisão para a qual não tinham alternativa.  Yatseniuk e Klitschko declinaram da oferta presidencial de formar gabinete, porque se anuíssem à proposição de Yanukovych seriam desautorados pelo movimento popular.

         Ao Primeiro Ministro Mykola Azarov, informado à distância de sua demissão, não restou outra opção senão a de apresentar o próprio humilhante pedido de uma exoneração já do geral conhecimento.       

         Desse modo, as concessões tardias de Yanukovych foram rejeitadas pelo sentir comum do movimento, que, em consequência, se fortaleceu, e, conforme a lógica adversarial do processo, acompanhado pelo correspondente enfraquecimento do poder. Nesse contexto, o desrespeito do timing que preside o evoluir da situação  pode – e muitas vezes tem – consequências que tendem a ir muito além das aparentes implicações envolvidas.

           Assim, após a usual insolente recusa de atender os reclamos iniciais dos populares pode repercutir mais além e ter consequências incomparavelmente mais graves para a autoridade denegadora.  A esse respeito, ao descobrir-se  refutado em propostas que teriam grandes possibilidades de serem aceitas e acolhidas em momentos anteriores, o presidente Yanukovych vê evidenciada a respectiva posição de um consequente isolamento progressivo.

         Ainda há muito caminho a percorrer e o poder de Yanukovych dispõe de trunfos, como o do suposto apoio dos chamados oligarcas, grandes bilionários que têm enorme influência nas bancadas do parlamento. Um deles – e o mais rico – Rinat Akhmetov, compreensivelmente inquieto diante dos distúrbios, divulgou a sua posição, na declaração seguinte: “o único caminho é sair de confrontos nas ruas e tentativas de acabar com eles, para negociações construtivas com o objetivo de atingir resultados”. Se não é pronunciamento oracular, como os da pitonisa de Delfos, a admoestação é inclusiva, ao abranger as duas formações que deveriam enveredar pela negociação de resultados. Não se vá esperar que o homem mais rico da Ucrânia queira ver o circo pegar fogo. A sua proposta será necessariamente conservadora, mas atenta ao bom senso.

          Yanukovych, que tem visto o seu poder diminuir, ainda não está no fim do caminho, mas, se não tiver juízo, em breve entrará em processo de aceleração da respectiva queda. Resta verificar se ainda tem margem de manobra, posto que reduzida.

 

(Fontes:  O Globo, CNN, The New York Times) 

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