Talvez a desastrada iniciativa do
Secretário-Geral das Nações Unidas, o discreto Ban Ki-moon, de convidar para a mesa de negociações o Ministro do
Exterior do Irã, Mohammad Javad Zarif, haja iluminado não só as difíceis condições
que cercam a conferência de paz relativa à situação na Síria, mas também a
fragilidade do projeto.
Dada a
circunstância de que o Ministro Javad Zarif se tenha recusado a endossar o comunicado
de 2012 – que estabelece como escopo da reunião o estabelecimento de
administração transitória por mútuo consenso do governo de Bashar al-Assad e da
Oposição Síria – o Secretário-Geral das Nações Unidas pôde retirar o convite,
que bem refletia a inépcia da atual direção da ONU.
A cólera do
Secretário de Estado John Kerry é
compreensível, embora a atual situação pouco tenha a ver com a presente realidade que não mais pressagia o
desmoronamento do regime alawita de Assad.
Entrementes há
uma série de circunstâncias, entre as quaise as indecisões de Barack Obama
decerto reclamam posto central nas
condicionantes das fundas modificações havidas no cenário da guerra civil
síria. Vai longe o tempo em que se tinha a queda (e a fuga para os braços do
Tribunal Penal Internacional) do tirano Bashar al-Assad.
A Guerra na
Síria desde muito ultrapassou a macabra marca dos cem mil mortos. À presente
conferência de paz – e que lugar mais próprio para reuni-la que em Genebra,
malgrado tantas iniciativas malogradas para aí resolver conflitos de média e
baixa intensidade – hoje se depara cenário assaz diverso do que o de 2012.
A despeito das
esperanças que esse tipo de exercício suscita, convém ter presente que ao sentar-se a mesa as várias partes, o
que cada uma traz para dar substância aos respectivos projetos muito pouco tem
a ver com o estado de coisas em 2012.
De início, o
Ministro Sergei Lavrov, da Federação Russa, representa o lado que reverteu a
tendência anterior (que sinalizava a queda do ditador Bashar), e que vai
amealhando ganhos no campo, com uma série de reconquistas (entorno de Damasco),
ou de reversão (como em Aleppo, com os sistemáticos bombardeios contra
objetivos civis da aviação de Bashar). A Liga Rebelde batalha não só contra o
exército do ditador, mas também com a milícia do Hezbollah (provida pelo corredor aéreo do Iraque, mantido por
cortesia do Primeiro Ministro xiita Nouri
al-Maliki [1] de Bagdá, com os
fornecimentos militares de Teerã). E os adversários da Liga Rebelde se estendem
a outros opositores de Bashar, i.e. os militantes da al-Qaida, em luta
intestina, que além de enfraquecer a parte (e a causa) revolucionária, trabalha
objetivamente para o reforço do campo adversário.
A Liga Rebelde,
se recebeu o apoio da Arábia Saudita e do Qatar, não teve de Washington senão
suporte muitas vezes verbal. Por outro lado, Barack Obama abusou do direito de
errar. Após vetar a recomendação recebida de Hillary Clinton (State Department)
e dos demais altos funcionários do estamento da defesa (Pentágono, CIA) com
competência na matéria de fornecer armas à oposição síria, embarafustou em confuso projeto de punir (por intermédio de Tomahawks, os mísseis de que Bill
Clinton se servira nas suas tentativas de eliminar Osama Bin-Laden) o regime
sírio, por conta de um floreio de ameaçada represália.
Em tal caso, o
que se viu foi Obama entrar em sinuosa linha – inclusive submetendo a questão
ao aval do Congresso – e tornar-se prisioneiro virtual da própria retórica. V. a respeito a ameaça ao governo de Bashar de
ultrapassar imaginária linha vermelha (na guerra química).
Na oportunidade,
Obama mostrou uma inexperiência de que não sofreram os seus predecessores, eis
que o lançamento de ameaças pode vir depois transformar-se em inoportuno
cobrador, se as circunstâncias descritas tornarem a inação demasiado
embaraçosa.
O que se viu foi
o ‘salvamento’ da posição de Barack Obama por Vladimir Putin. Com a inesperada liberalidade de gospodin Putin, o Presidente dos Estados
Unidos se viu despojado de sua
capacidade militar de retaliar contra o regime de Bashar al-Assad, e nessas
condições forçoso será reconhecer que a superpotência ora se senta em Genebra
na mesa de negociações em posição que está longe de ser a ideal.
Nesse mítico poker genebrino, John Kerry – o sucessor de Hillary
Clinton – ao olhar a sua mão de cartas, há de convir que dispõe de poucos e
magros elementos para arrancar concessões de um Bashar al-Assad redivivo.
A participação do
Irã na mesa de negociações seria uma afronta para a fragilizada Liga Árabe. Daí
a ameaça de seus líderes de abandonarem a reunião, se a presença iraniana fosse
mantida. Na sua guerra paralela contra a esfera sunita, o Irã dos ayatollahs, através do seu presidente
Hassan Rohani concordou em não participar da reunião de Genebra, para que
tampouco tais questões invadissem (e eventualmente condicionassem) as
conversações nucleares, que visam a reinserção de Teerã em outro e mais amplo
horizonte.
Não foi à toa que
o calejado Ministro do Exterior da Federação Russa, Sergei Lavrov, tem batalhado
desde muito por uma conferência de paz acerca da guerra civil síria. Como a orientação desse conflito mudou – com
a crescente vantagem tática de Bashar e seus aliados – não será mistério que a fortiori Lavrov tenha pleiteado a
oportunidade desse encontro.
Nesta
quarta-feira, 22 de janeiro, a conferência se abre em Montreux. Na sexta-feira,
24 de janeiro, ela se transfere para Genebra e
o Palais des Nations, para o
primeiro encontro entre a oposição síria e o governo de Bashar. O grande refém
nesse embate são os infindáveis acampamentos de refugiados da guerra (que
existem na Jordânia, no Líbano e na Turquia).
Resta saber se
tais primeiros contatos – muita vez instrumentalizados pelas partes litigantes
para ostentarem as respectivas ‘Verdades’ e ‘Direitos’ – terão presentes a
perigosa situação médico-sanitária dos enormes ajuntamentos de infelizes sem
mínimas condições de higiene, alimentação e vacinação indispensável (por força
do caos, aumentam enfermidades como a poliomielite que muitos pensavam extinta).
Em geral, as
conferências de paz carimbam a situação no campo e não criam vencedores, mas
sim reconhecem situações de força maior e refletem no papel predominâncias
estabelecidas pelo próprio conflito.
Delas não se devem esperar milagres.
O que, no entanto, seria de desejar – a
par de fazer mesuras para personalidades que antes semelhavam votadas a Sunset Boulevard – seria evitar que as
estatísticas avancem para as sinistras metas ladeadas por hediondos portais que
sinalizam entre 150 mil e 200 mil mortos.
[1] Que a guerra de George
Bush Jr., que arruinou boa parte dos Estados Unidos, tenha contribuído na sua
‘vitória’ contra Sadam Hussein para que o Iraque, de aliado americano passasse
para parceiro do regime xiita de Teerã, é outra pesada ironia daquela malsinada
expedição contra as armas de destruição de massa (WMD)...
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