A visão do vídeo do correspondente
especial do New York Times, Herszenhorn,
mostra, com os seus lúridos detalhes, a real situação em Kiev, a capital da
Ucrânia. A frágil trégua entre manifestantes e a polícia (incluída a violenta
tropa de choque) dissolveu-se na noite posterior ao anúncio pelos líderes da
oposição (Arseniy Yatsenyuk, do
partido Pátria, e Vitali Klitschko,
do Udar) de que rejeitavam a proposta do presidente Viktor Yanukovych.
Antes que essa
decisão fosse tomada, havia uma expectativa hostil das massas populares, que já
assinalava a extensão (e profundidade) de sua negação à tentativa de Yanukovych
de engodar com os ouropéis de posições de ilusório mando a liderança da reação
ao súbito afastamento pelo presidente da proposta da UE.
Dessarte, a
recusa de Yatsenyuk e de Klitschko foi saudada com renovado entusiasmo pela
multidão rebelada. Yatsenyuk, líder
em funções do Pátria, recordou a necessidade de anular a prisão injusta de Yulia
Timoshenko, a par da tomada de medidas que restabeleçam a negociação do
acordo com a União Européia. E, por seu lado, o popular líder do Udar, Klitschko, sublinhou que de outro
tipo de mudanças se batalhava nas ruas.
Rompida a
trégua, os choques entre revoltosos e as tropas policiais ocorreram nas
cercanias do estádio do Dínamo, assim
como na Praça da Independência. Há
pelo menos cinco manifestantes mortos – alguns com sinais de tortura – e cresce
a brutalidade nos embates. As tropas recorrem às famigeradas balas de borracha,
e outros petrechos ditos não-letais do arsenal da repressão. Por sua vez, os
rebeldes, servindo-se de placas de metal para proteção, a par de foguetes e
porretes, se defendem com o engenho das antigas barricadas nos becos da Paris
revolucionária[1] e também atacam,
condicionados pelos caprichos da situação.
Ai daquele manifestante que tombar nessa
arena, pois como aves de rapina os meganhas sobre ele se precipitam, com a
força cega dos golpes, e de preferência na cabeça. Os populares procuram, no
entanto, respaldar-se pela mobilidade de grupos, e na dura experiência havida
em embates desiguais recorrem à flexibilidade na reação defensiva, para cercar
o companheiro caído, tornando demasiado custosa a sanha de grupelhos da tropa
de choque, que vê a investida covarde contra o adversário caído de súbito
transformada em uma rixa em que os desleais golpes contra o compatriota por
terra atraem contra-ataques inesperados, que de repente jogam a confusão nas
hostes policiais.
Mais da metade
da Ucrânia – a que se encontra o oeste, confina com o Bielo-Rússia ao norte e a
Romênia ao sul, e onde se acha a capital Kiev – vê o futuro do país na
proposta europeia da U.E. A outra parte, a oriental, lindeia a norte e leste, com a antiga metrópole, hoje
Federação Russa. Ao sul, está o Mar Negro – o Ponto Euxino dos gregos – com a
Crimeia, em que mais se pratica o idioma russo.
O próprio
Primeiro Ministro Mykola Azarov – de
que Yanukovych pensou liberar-se nas recentes ofertas à oposição - mal fala
ucraniano.Não foi à toa que a tentativa de Viktor Yanukovych de contornar a fúria popular ao oferecer duas posições no gabinete, e acenar com mudanças liberais na Constituição, se dissipou rapidamente, como canhestra tentativa de eludir a verdadeira razão da cólera da multidão.
Os rebeldes
lutam por um ideal realizável e não arrefecerão o ímpeto por manobras de
circunstância.
Eles colocam
na mesa de negociação qual deva ser o destino da Ucrânia: se bastam os
penduricalhos de Vladimir Putin, com
linhas de crédito e descontos na conta energética (além do reingresso debaixo
da asa da águia do Kremlin, através
da entrada na União Aduaneira russa), ou se deva prevalecer, como vocação
nacional, a opção da Europa, com as suas conotações de liberdade e democracia,
na sua negação histórica do medíocre, esquálido e sufocante domínio russo.
A partida vai ficando cada vez mais
problemática para Viktor Yanukovych. A sua base política está no oriente
ucraniano, em que o idioma russo é língua franca. O seu padrinho, Vladimir V. Putin, lhe oferece o que
possa sair de seu baú (que tem a pesada limitação dos grilhões e da
mediocridade da opção nacional). E, sem embargo, tudo para ele, Yanukovych,
correria no melhor dos mundos, se na própria capital, e em grande parte de seu
reino, não houvesse gente rebarbativa, que acredita mais na liberdade e nos
horizontes mais amplos e promissores do Ocidente.
Como no
presente estado de coisas – notadamente aos olhos de Bruxelas e de Washington –
os malabarismos do atual presidente ucraniano sejam acompanhados atentamente,
semelha muito difícil que Yanukovych considere possível uma repressão violenta
para que tudo volte à santa paz dos movimentos trucidados, como ainda mais a
leste a RPC – a presente encarnação do
Império do Meio - logrou, para
opróbrio do respectivo regime, aplicar através do massacre de Tiananmen.
O povo
ucraniano, pela sua preponderante escolha por liberdade e democracia, pretende conviver
felizmente na Praça da Independência. Em Kiev, não há lugar para os amplos
espaços da Paz Celestial, pois bem
sabemos que ela pode ser a pacificação maldita que jaz nos cemitérios.
(Fontes: Folha de S.
Paulo, O Globo, The New York Times)
[1] Anterior ao Barão de
Haussmann, que a mando de Napoleão III pôs abaixo a Paris medieval, amiga
dileta das barricadas e da luta contra o poder real.
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