A morte do embaixador J.
Christopher Stevens, a dez de setembro de 2012, ainda não foi processada
politicamente em todas as respectivas conexões. Acontecida às vésperas da
eleição presidencial, o candidato republicano tentara inserir esse grave fato
político entre as questões (issues) a
serem debatidas nos comícios de novembro. Por uma série de circunstâncias, no
entanto, esse trágico evento não teve maior peso no pleito, e não afetou a
vitória de Barack Obama sobre Mitt Romney,
tanto na eleição indireta (a que conta), quanto no cômputo geral dos votos.
O candidato
republicano não dispôs de argumentos para implicar diretamente o presidente
Obama em eventual responsabilidade com o desaparecimento de seu embaixador em Benghazi. No que tange à então
Secretária de Estado Hillary Clinton,
tampouco havia elementos relevantes no levantamento feito acerca da ocorrência,
e sobretudo no que concerne às implicações de segurança.
No que tange
aos embaixadores da superpotência, o último a sucumbir a serviço foi John Gordon Mein, alvejado por guerrilheiros das Forças Armadas Rebeldes (FAR) em plena avenida da Reforma, na
cidade da Guatemala, a 28 de agosto
de 1968. A intenção dos revolucionários era o sequestro do embaixador, para a
posterior negociação com os generais no governo, com vistas a sua liberação em
troca de certo número de prisioneiros. Gordon Mein, no entanto, ao tentar
fugir, foi atingido e morto.
Esse formato seria decerto o exemplo para o
posterior sequestro do Embaixador Charles
Elbrick, em Humaitá, no Rio de Janeiro, a quatro de setembro de 1969, com a
exigência de libertação de quinze presos políticos. Com a chegada ao México do
grupo, o comando guerrilheiro liberou o embaixador (retido em Santa Teresa) a
seis de setembro. Elbrick permaneceria como embaixador no Rio mais alguns meses, para em seguida regressar a
Washington. Estamos em 2014, e o assassínio de J. Christopher Stevens, na noite de terça-feira, dez de setembro de 2012, continua a ser objeto de uma série de procedimentos em Washington D.C. Como semelha óbvio, tais procedimentos têm o escopo específico de produzir análise tão completa quanto possível dos antecedentes, tanto burocráticos, quanto in loco, do acontecimento, assim como das implicações em termos de responsabilidade funcional e, porventura, pessoal, que sejam acaso suscetíveis de enquadramento.
Muitas dessas
ações possuem a qualificação de ‘classified’,
vale dizer de acesso restrito às instâncias oficiais. Sem embargo, por confidencial
ou secreto ou ultra-secreto que um tópico seja,
as consequências serão eventualmente do conhecimento público, se as
responsabilidades forem determinadas de modo inequívoco.
O Washington
oficial – aquele que é circundado pelo anel rodoviário – se tem ocupado de
forma sistêmica e progressiva do post-mortem
do evento, dirigido para a determinação de responsabilidades.Na investigação de 2013, realizada pelo ex-embaixador Thomas Pickering e o Almirante Mike Mullen (antigo presidente dos Chefes do Estado Maior), no respectivo relatório se culpou o Departamento de Estado por “falhas sistêmicas e deficiências de liderança e de gerenciamento”.
Antes de chegar ao relatório bipartidário do Comitê
de Inteligência do Senado, a chaga aberta do assassinato de J. Christopher
Stevens já provocara perdas colaterais na Administração Obama. Com efeito, a
mensagem de indicação de Susan Rice,
até então Embaixadora junto às Nações Unidas (posto que nos EUA tem nível ministerial) foi afinal
retirada do Senado, eis que a indicada de Barack Obama, com base em notas para
efeito de divulgação (talking points)
por redes de tevê a cabo, fora objeto de questionamentos de congressistas
republicanos. A ênfase política das críticas – tanto da Casa de Representantes
(com maioria do GOP) – e de senadores
também republicanos mostrara a virtual inviabilidade da posição da embaixadora,
questionada por uma apresentação julgada não-satisfatória dos eventos de Benghazi.
Por tal motivo, o Presidente preferiu designá-la sua Assessora de Segurança
Nacional, um posto executivo que independe de autorização do Congresso, ainda
que de grande importância (Henry Kissinger, v.g.,
foi assessor de segurança nacional de Richard Nixon).
De acordo com
os múltiplos elementos recolhidos pelo Relatório do Comitê de Inteligência,
pode-se asseverar que o problema ou a ‘crise’ que afetou a Missão estadunidense
em Benghazi era algo antes anunciado. Consoante o resumo do New York Times a
que me reporto, o comitê assinala centenas de análises da comunidade de
inteligência, com a advertência de que milícias e grupos terroristas e
afiliados detinham a capacidade e o propósito de atacar o pessoal e as
instalações (facilities) americanas e ocidentais, na Líbia. |Uma semana antes
do ataque, o Comando dos EUA para a África advertiu acerca de crescente ameaça
para americanos, especialmente no nordeste da Líbia.
Ainda segundo a
mesma fonte, não haveria indicação de que a CIA e outras agências (de
informação) tivessem ciência do tempo e do lugar de um ataque específico. O
ataque é descrito como ‘oportunístico’ e não ‘uma conspiração (plot) altamente
coordenada’.
É aqui que
entra o alegado móvel para o ataque, colocado pela indignação provocada por um
vídeo anti-islâmico.
Quanto ao
papel da CIA no episódio, ele parece mais demonstrativo da virtual
descoordenação dos diversos serviços estadunidenses. Com a deterioração da
situação na Líbia nos meses que precederam o ataque, a CIA reforçou a segurança
nas suas instalações, que dista um quilômetro e meio da missão
diplomática. Por sua vez, dentro da
descoordenação que caracteriza o processo, o Departamento de Estado não adotou
precauções similares no que respeita à proteção de seu complexo.
Dentro do
quadro da descoordenação entre as agências de segurança (a despeito das
injunções dos ataques terroristas contra New York e Washington de 11 de
setembro de 2001), avulta o comportamento do Chefe da Missão, J.Christopher
Stevens. A sua atitude deve ser vista, no entanto, em quadro abrangente.
Stevens era um arabista e especialista nas questões do mundo árabe. Tinha uma
visão simpática aos árabes, e à Líbia em particular. Sentira inclusive
particular prazer em voltar a atuar em Benghazi.
Não deve ser
esquecido que postos em situações especiais (como era a Líbia) colocam
responsabilidade maior no chefe da missão, responsabilidade esta eventualmente
acrescida por eventual carência de pessoal qualificado. Stevens, dentro de um contexto de relativa
solidão (no que tange à assessoramento paralelo e de nível superior) encaminhou
ao Departamento de Estado solicitações de mais recursos de segurança, pedidos
esses que mereceram poucas melhorias significativas.
Quando a
situação se agravou em junho, ele recomendou o treinamento de guardas líbios
locais como equipe de segurança em Tripoli e Benghazi. Ao tramitar essa
solicitação, Stevens demonstrava confiança no pessoal local – conexa à própria
simpatia pelo posto e sua gente – mas é forçoso reconhecer as implicações de
tal decisão, que teria consequências desastrosas na noite do ataque.
Por outro lado,
é difícil não questionar o acerto da decisão do Embaixador Stevens que negou por duas vezes o
oferecimento do General Carter, líder do Comando da África, que perguntou por
duas vezes se a missão diplomática precisava de mais pessoal militar. Stevens
declinou, também por duas vezes, o oferecimento.
Diante desse
cenário, se o Departamento de Estado tem alguma responsabilidade, fica muito
difícil acentuá-la. Por sua formação, o Embaixador J.Christopher Stevens terá
confiado de forma excessiva no que poderia ter de uma base local em matéria de
segurança, como o demonstra a sua preferência pelo treinamento de líbios para
fornecer segurança. Por outro lado,
recusando a presença de pessoal militar qualificado, o embaixador, sem o
saber, enfraquecia ainda mais a capacidade da missão de resistir a um ataque,
como as efetivas condições na noite azíaga de dez de setembro o demonstrariam.
Nesse quadro,
não convence demasiado o argumento de que o Departamento de Estado é o culpado
da vez. A Casa de Representantes, com maioria do GOP, recusara verbas para
missões diplomáticas. Dessarte, o State Department não disporia de fundos para
situações de postos difíceis, como a missão na Líbia.
Com a tragédia,
muitas das alegadas fraquezas no Departamento estão sendo corrigidas, inclusive
a criação de uma posição de maior responsabilidade (e força burocrática) para
supervisionar as missões em países com maior ameaça política. A par disso, com
a casa arrombada, o Congresso apoiou a contratação de 151 postos funcionais de pessoal
de segurança diplomática. Quanto aos fundos, ainda não chegaram, mas estariam a
caminho.
Dado o exame
minucioso das causas de o que infelizmente ocorreu naquela terça-feira, dez de
setembro de 2012, muita coisa pode e deverá melhorar. Como toda grande
organização burocrática, o State Department não está imune aos erros. O
processo de correção é, por vezes, doloroso e, em algumas oportunidades, tem
causas macabras, que teria sido melhor evitar.
Por causa da
minudência do levantamento – de o que já é conhecido e de tudo o que o tempo
ensejará no futuro aprofundar - das
muitas certezas que se possa colher está a circunstância de que a então
Secretária de Estado Hillary Clinton não pode ser responsabilizada por uma
análise isenta e não eivada de interesse partidário por ser, de alguma forma,
responsabilizável pela morte do Embaixador J. Christopher Stevens.
(Fonte: The New York Times)
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