quarta-feira, 3 de julho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XVII)


                             

                                                  X V I I

 

 
          Meu estimado Amigo Pedro,

 

           se o tempo para ti se tornou irrelevante, os quarenta e poucos dias que medeiam da última carta mostram-lhe o poder e a consequente diferença para quantos, como eu, ainda estejam na área do contingente.  

          Três semanas de férias foram dedicadas a exames de laboratório, consultas médicas, viagens a São Paulo e Brasília – em céus ensombrecidos pelo caos aeronáutico – audiências com autoridades, e prazerosas visitas aos netinhos e filhos. Por fim, já nos restantes e derradeiros dias, muitas das atividades concerniam a questões pendentes da tua sucessão.

          Almocei com o Rezende na quinta-feira, trinta de novembro. Naquela manhã, fizera uma pesquisa na biblioteca do Itamaraty. Como nasceste em Cannes, pensava encontrar nos anuários do ministério alguma referência que me explicasse o porquê de vires à luz em terra estrangeira. Por motivos que então desconhecia, a busca foi infrutífera. A única menção havida se reportou a teu tio Octavio de Sá Neves da Rocha, auxiliar do Consulado em Lisboa.

         Transcorridos poucos meses, o teu amigo me pareceu mais alquebrado.Chegou um tanto atrasado, pois a jornada era chuvosa, daquelas que te faziam adiar o compromisso. A projetada audiência com o vice-reitor da PUC ainda não ocorrera. Rezende culpou a secretária pelo fato, mas para mim a má vontade se devia atribuir ao próprio. Escudando-se de hábito os poderosos nos auxiliares para dissimular as eventuais negativas, espantou-me a ingenuidade do Rezende, que não lograva entrever nas desculpas da subalterna a arrogância da autoridade. Ou será, pergunto-me, se para o seu ego se afiguraria mais aceitável a atribuição simplista à secretária ?

        Quanto aos livros, tinha notícias melhores. Por intermédio de uma filha, se soube do interesse do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN). Disse-me que se estava restaurando o Palácio Rio Negro e seus anexos, e que lá haveria lugar para alojar os teus dezessete e tantos mil volumes. O assunto teria progredido bastante, a ponto de se considerar para breve a transferência dos livros. Como sói ocorrer nesses casos, não pensei de imediato nas formalidades e implicações jurídicas. Cuidamos apenas de combinar o dia da viagem a Petrópolis, que ficou, em princípio, aprazado para segunda-feira, quatro de dezembro.

       Mas não ficamos só nisso. A propósito da minha passagem pela velha biblioteca do Itamaraty, e da falta de qualquer indicação acerca de teu pai, pedi ao Rezende que me desse mais detalhes sobre Carlos de Sá Neves da Rocha.

      O que ele então me contou, além de apagar umas tantas falsas noções, como poderia não surpreender-me ? Os fatos a respeito do teu progenitor, ao invés de trazê-lo para a fria realidade dos dados biográficos, pareciam transformá-lo em personagem de romance oitocentista.

      Entendi melhor a tua discrição e mesmo possível restrição mental quanto a eventuais precisões sobre o que efetivamente motivara o teu nascimento na Côte d’azur. Não sei como, mas fiquei com a impressão de que, ainda em Quito, quando me referi ao teu lugar natal, seja através de elipses, seja até por cincunlóquios, não me afastaste da ideia de que Carlos Neves da Rocha exercia alguma comissão estatal, o que, para um diplomata, semelhou explicação bastante. Fundada nesse vago pressuposto, quase memória diria, estava a minha confiança em encontrar nas páginas amarelecidas dos anuários itamaratianos da década de vinte o registro oficial de uma sua comissão governamental como adido ou mesmo simples agente consular.

        Nas palavras do Rezende, da união de Carlos de Sá Neves da Rocha e Dalila Ribeiro Neves da Rocha serias o único filho. Teu pai, que nunca teve cargo público ou exerceu profissão liberal, herdou um legado considerável. Também tua mãe Dalila trouxe muitos bens para o matrimônio. Tivesse o cabeça-de-casal bem administrado os haveres, teria pela frente existência confortável, não muito diversa dos padrões da classe alta daqueles tempos.

        No entanto, e aí se acentua o traço novelesco desta realidade, Carlos de Sá era um jogador. Por causa desse vício, nasceste em Cannes. Lá estava o casal não a desfrutar de vilegiatura mas por força da paixão lúdica do candidato a pater familias, malbaratando o seu futuro no pano verde dos cassinos da Riviera. Com o passar dos anoss, toda a fortuna seria dilapidada.

        Sabedor que tua mãe precedera na sepultura a teu pai, e imaginando o sofrimento que lhe coube em função da conduta do marido, perguntei a Rezende que impressão dela guardara. Disse-me que era de natural afável. Se padecia, cuidava de não deixar transpirar o que porventura lhe afligisse.

        Sei o quão dolorosa ainda te será esta rememoração, que, pelas contingências do tempo, é decerto descarnada descrição de um cotidiano povoado de credores, carências e inquietudes. Já sem meios, teve Carlos Neves da Rocha a sorte de que um amigo lhe proporcionasse emprego de agente de seguros.

        A improvidência paterna, se terá causado muitos cuidados e decepções – como o do palacete em Santos que pensavas herdar e que fora vendido em hasta pública pelo não pagamento dos tributos municipais – não terminaria de forma trágica, a exemplo de tantas outras. Com efeito, nos seus últimos anos de existência, as tuas remessas como Secretário em Quito bastariam para sustentá-lo.

        Mas voltemos ao almoço no Urich. Ainda esclareci com o Rezende algumas dúvidas que nada têm a ver com o aspecto sombrio das informações acima. Assim, chamava-se Hotel Inglês a pensão em que vivias na rua do Catete, e onde nos recebeste a mim e outro colega inscrito no vestibular do Rio Branco – de que guardo na memória a já referida imagem da estante repleta de livros a recobrir as paredes do quarto. Por outro lado, o nome do decaído antigo companheiro de bancos escolares – e que por vezes importunava, com abruptos pedidos de empréstimo, aos participantes nos almoços do Bar Monteiro, como posso testemunhar – é F. P. N.

       Não me deterei nos ires-e-vires da marcação da data da visita a Therezinha. Afinal, ficou para a terça-feira, cinco de dezembro. Graças à boa vontade do Dr. Brito, seguimos para a Visconde do Uruguai no seu carro, partindo da Rodoviária às oito e cinquenta e cinco da manhã.

      Seria proveitosa a viagem. Alguns assuntos – e em especial o destino da tua biblioteca – teriam as perspectivas de certa forma melhor delineadas. Outros dados – nem todos alvissareiros – me ajudariam a conhecer um pouco mais o personagem Pedro Carlos Neves da Rocha e avançar no entendimento da tua crescente carência de meios.

       Meu amigo, em sendo delicado o tema, será decerto mais apropriado ir por partes.

      Sem o desconforto – e os temores que ora espreitam os viajantes nos transportes públicos – o deslocamento até Petrópolis transcorreu em amena conversa entre mim e o Dr. Brito. Rezende só interviria se requestado – e por isso guardou silêncio quase todo o tempo. Mas não desperdiçamos a prática. A referência dos pormenores da projetada doação dos livros me fez atinar para as formalidades jurídicas da transação que, pelo visto, haviam sido por inteiro ignoradas  até então.

       Therezinha pensava que bastaria simples autorização sua para que a biblioteca fosse transferida para a instituição beneficiada pelo ato de doação. Como hás de concordar, a coisa não é assim tão simples. Seria necessário um ofício de quem pleiteia o donativo, em que especifica as condições oferecidas, inclusive o local e a designação que lhe será dada. Com a resposta afirmativa da inventariante, de preferência elaborada por advogado, será a postulação submetida ao juiz competente. Somente através do requerido alvará judicial poderá ser legalmente autorizada a doação em apreço.

       Quando tínhamos mentalmente alinhavadas as especificações do processo que ensejará a transferência dos livros chegamos às vizinhanças do Palácio Rio Negro, onde veranearam e despacharam presidentes como Getúlio Vargas e outras personalidades mais obscuras. Com certa solenidade, o Dr. Brito anunciou ao guarda que adentrava o terreno o Embaixador Mauro Azeredo. Dada a presteza com que se abriu a cancela, dei-me conta uma vez mais da importância do título no universo luso-brasileiro, e da autoridade que sói transmitir.

       Recebeu-nos Laura Bahia, sorridente e simpática funcionário do IPHAN. Pelas atenções com que nos prodigou, ficou patente o interesse do Patrimônio Histórico em abrigar os teus dezessete mil volumes. A pobreza da cidade serrana em bibliotecaa nos foi aduzida, enquanto a robusta arquiteta se afastava do Rio Negro, e nos explicava que, por exigência do próprio IPHAN, não se poderiam afixar estantes nas paredes do palácio presidencial.

        A dizer-te verdade, a observação me pareceu pender mais para desculpa especiosa do que para critério técnico. Envolvidos pelas profusas palavras que sem cessar saíam de sua boca, nos dirigimos para a localização proposta da futura biblioteca “Conselheiro Pedro Carlos Neves da Rocha”. É uma construção anexa ao Palácio, de que dista uns vinte metros, e dispõe à sua frente de largo espaço para o parqueamento de carros.

       Como foi muito desfigurada pelo locatário anterior, a casa de dois andares carece de extensas obras. No entanto, será restaurado o estilo petropolitano dos primeiros anos da república. Verifiquei que haverá lugar suficiente para a disposição dos livros por assunto. E, por outro lado, concordei com a sugestão da funcionária de que a biblioteca se situasse no rés-do-chãao, o que lhe facilitaria o acesso, e dispensaria os consulentes de galgar elegante escada de época em ferro forjado.

       Empós ter itemizado todos os pormenores do procedimento que deverá ser cumprido pela entidade candidata à doação, e ouvido, com a natural reserva, as garantias de que as dotações respectivas seriam creditadas e os prazos da obra respeitados, como ela só a mim se dirigisse, achou oportuno o Dr. Brito assinalar que, no futuro, se tornaria ele o interlocutor para cuidar do andamento do processo e dirimir qualquer eventual dúvida.

       Do restante da visita, não há muito o que dizer. Depois de render-se à necessidade de fumar um cigarro, Laura Bahia nos conduziu a ampla – e recém-reformada – cozinha do Rio Negro, onde nos serviram o ritual cafezinho.

      Já passara do meio-dia quando afinal seguimos para a Visconde do Uruguai. Entrementes, o Dr. Brito me atualizou quanto à situação dos empregados e outros detalhes relativos à casa. Osvaldo, o híbrido de chofer e jardineiro, não vingara, por desagradar à patroa; voltou, assim, o velho Odir, que goza das simpatias de Thérèse. Já a Carla foi mantida, ora como cozinheira-arrumadeira. Despedido o Hermes (x)  que, a despeito da multa rescisória, saíu ameaçando com entrar na justiça. Segundo soube, aproveitou a  indenização de quatro mil reais para montar um bar. Posto que se deva gostar da própria atividade profissional, o meu temor é quanto à sua excessiva estima pela classe de produtos com que pretende operar, e os decorrentes perigos de não distinguir da fronteira entre pessoa jurídica e usuário.

        A incrível boa vontade e paciência do Dr. Brito logrou recuperar o carro da linha Volkswagen do ano 1986, que graças ao sólito Hermes (x) se achava em condições lastimáveis. Feita a difícil travessia até Niterói, o conserto se realizou em oficina de confiança, e a baixo custo. Ao invés de vendê-lo e, dessarte, desfazer-se de inútil carga, Therezinha alimenta a pretensão de comprar e dirigir um carro novo. O incansável procurador tudo tem feito para dissuadi-la de tal projeto, que agride ao bom senso em diversos aspectos, a começar pela surdez da motorista, e a consequente inabilitação para a licença de direção.

        Conhecendo a pertinácia de tua esposa, não me aventuro a prognósticos na matéria. Entrementes, a reaparelhada viatura – cuja cotação de mercado oscila pelos sete mil reais – aguarda paciente na garagem que a façam rodar.

         A pensão, se não chega aos seis mil reais, tem bastado para atender aos gastos de residência e criadagem. Para tanto, o desvelo e a correção do Dr. Brito constituem decerto o fator principal. Os dois empregados passaram a cumprir o horário legal e não aquelas  magras quatro horas que tinhas determinado. Conserva o procurador dois livros para os dispêndios e, consoante pude entender, em um deles estão registrados os seus adiantamentos ainda não quitados (montam a cerca de cinco mil reais).

        A par da constante atenção em livrar a Therezinha da exploração a que estão expostas as viúvas recentes – e contarei abaixo exemplo ilustrativo – o Dr. Brito marca consultas em dentista para remediar os efeitos da longa negligência que, custa-me crer, terão surgido em função da tua negativa em arcar com despesas odontológicas.

        Essa condenável desídia – ainda menos explicável porque dispunhas do seguro dentário do Itamaraty que cobria a despesas de até mil dólares por ano, e a que, para meu imorredouro espanto, jamais recorreste – provocou na amada Thérèse uma vintena de cáries, ora enfim sob tratamento.

        Mas o desvelo do amigo in pectore não se cinge a tais cuidados que, não fora a idade, se diriam mais próprios do filho que o casal nunca pôde ter. Therezinha resolveu pintar o muro circundante de verde musgo ou quase. Procurou um pintor conhecido, que quis impingir-lhe o preço de dois mil e oitocentos reais. Sabedor do orçamento, o Dr. Brito fê-lo baixar para mil e duzentos...

        Ele nos contava de mais essa cobrança abusiva que lograra afastar, quando chegamos à residência. Lá a dona de casa nos aguardava ansiosa. Depois de distribuir-nos uns tantos elogios, a mim e ao Rezende, pelos auxílios prestados, levou-nos para a sala de visitas. Desta feita o aposento, malgrado o pé-direito baixo e atravancamento dos móveis, me pareceu algo mais arejado, não tão úmido e bolorento quanto o encontrara em maio. Talvez, por haver a senhoria, em descerrando as cortinas com mais frequência, permitido a benfazeja intrujice dos temidos raios solares. Tampouco, quem sabe, caiba excluir a hipótese de que, vencido o momento crítico da fatalidade e correndo adiantado o processo de reabsorção de seus efeitos pela rotina do cotidiano, também se rarefaçam as enlutadas sombras a envolver o mistério de Caronte.

         De qualquer forma, e para mim em particular, seja por prosaicas causas materiais, seja por inaferráveis motivações subjetivas, a atmosfera principiava a desanuviar-se, o que decerto já me bastava.

         Dali passamos para outros cômodos, sempre guiados por Thérèse. Atravessadas as duas salas de visita, e depois do inevitável tropeço no pequeno e inútil degrau que as separa de outra ala da residência, ela nos mostrou novo aposento, onde se achava espremida a sua biblioteca. Ao vê-la, como não poderia recordar-me do armário na chancelaria quitenha, aonde guardavas a reserva de livros da Pléiade, destinados a aplacar os reclamos da cara-metade com as tuas contínuas aquisições livrescas ?

         Na verdade, saberia mais tarde que aquela visita guiada visava a mostrar-me uma tela de Guyasamin, quiçá o mais famoso pintor equatoriano. Therezinha soubera de exposição retrospectiva no Rio de Janeiro e, como deseja vender o quadro, queria obter de suas fontes habituais informações quanto ao modus faciendi. Tanto eu, quanto o Dr. Brito não podíamos adiantar muita coisa. Sugeri, a propósito, que ela me desse  as dimensões da pintura.

        Afinal, adentramos o que em carta anterior eu mencionar como o ‘quarto de hóspedes’, onde passaras os teus últimos dias, antes da brevíssima estada no hospital. Lá estava o quadro, que fora comprado por ti do próprio pintor, em princípios dos anos setenta. Não é o caso de minuciosa descrição de um óleo que não me agradou em demasia – um vaso com uma planta, em cores surrealistas e mesmo agressivas, que mais semelhavam produto da ingestão de fungos alucinógenos – porém de tardar-me um pouco no que este cômodo realmente representou para ti.

        Em tal contexto, será oportuno transcrever trecho da citada correspondência: “No punhado de dias que te prenunciavam a viagem, sozinho em lúgubre quarto quiçá jamais utilizado, respirando atrás das venezianas cerradas o ar úmido, carregado de mofo e ácaros, deitado em vetusta cama, a cabeça pousada sobre amontoados travesseiros, enquanto sentias no corpo o desconforto da falta de um leito hospitalar, em que te faria pensar o súbito AVC que te imobilizara a perna esquerda[1] ?”

        Quando o vi por primeira vez, se me afigurou a própria imagem da inadequação de local  para recuperação de enfermo. Tinhas afetado o lado direito do corpo[2]. Sem embargo, aferrava-me à opinião de que te haviam colocado ali para tua maior comodidade. Julguei ver prova desse propósito no intento de imitar leito de hospital com a pilha de travesseiros na cabeceira. E, no entanto, não lograva atinar como alguém pudesse enganar-se a tal ponto. Penosa impressão me transmitiam o ambiente opresso, o colchão deformado, a recobrir o que mais parecia um catre. Naquele tugúrio deparava o triste arremedo de um cuidado especial, pressaga antecâmara de sorte já selada.

       Adiante tornarei ao denominado quarto de hóspedes. Agora, Therezinha nos convida para o almoço. Ao centro da mesa, posta para quatro talheres, uma terrina de quiche lorraine. Se bem que encomendada de padaria do bairro, a atenção demonstra a melhoria no passadio da casa. Da primeira vez, nos tempos difíceis logo após a tua morte, nem cafezinho havia disponível. Desta feita, a quiche regada a suco de uva, com direito a repetição, e como sobremesa, salada de frutas. Se a refeição não era decerto lauta, dava para retemperar a energia dos viajantes.

       Reportamos então a conversa com a funcionária do IPHAN, sobretudo para que Therezinha captasse as indispensáveis formalidades exigidas para a doação da biblioteca. Não se tratava de uma simples mudança, que se possa concertar entre as duas partes interessadas. Os livros eram um patrimônio do de cujus, e somente com alvará do juiz a transferência seria factível.

       Dada a sua dificuldade de audição não é fácil determinar se Thérèse apreendeu a noção básica que desejávamos transmitir-lhe. Esperemos que sim, embora a sua insistência quanto à empresa encarregada do transporte não podia deixar de infundir-nos uma certa dúvida. Impossível não pensar nos problemas da comunicação, que já motivam tantas pilhas de teses e tratados, se acrescentamos à análise a dificuldade adicional da prática com deficiente auditivo. Desde muito entendera sempre tiveste alteado o timbre da voz. Para dialogar com a tua esposa, não tinhas outra escolha. E por isso, com frequência usavas tal diapasão com teus amigos.

        Agravando-se, com o passar dos anos, a surdez de Therezinha, tinhas que falar-lhe aos berros. Subiam os decibéis e os vizinhos mal interpretavam a tua ânsia de conversar com a companheira. Chegaram mesmo a comentar com o Dr. Brito, por conta dos clamores que lhes vinham ao ouvido, que o casal brigava muito. Se o teu amigo in pectore pôde explicar o porquê dos gritos, à falta de um aparelho não terias outro meio de induzi-la a baixar a voz. 

       Ao final da refeição, me dispus a assumir um encargo. Como o Rezende nada conseguira no que tange à publicação do ‘Animal Político’ – nem sequer logrou ser recebido pela primeira pessoa que pensara pudesse ajudá-lo nesse propósito; e havendo eu determinado que não seria tecnicamente factível transpor o texto do typescript seja para disquete, seja para cd-rom, só restava a alternativa de digitar as 195 páginas, para que se pudesse gravar uma versão escoimada dos erros tipográficos e das pequenas omissões ora existentes. Nos dias que correm não é realista pensar que trabalho nas condições do teu typescript tenha alguma probabilidade de ser examinado por uma editora.

       É uma faina longa. Ainda por cima, dadas as características do computador na residência, a transcrição só será possível no da chancelaria. Como lá estou por tempo limitado, na sua maior parte tomado pelas tarefas inerentes à chefia da missão, se afigura manifesto que as quotas horárias porventura disponíveis não tenderão a ser das mais elásticas, nem generosas.

        Tenho dúvidas, por conseguinte, quanto ao meu bom senso no momento em que me declarei disposto a encarregar-me da digitação. Disse para Therezinha, na presença do Dr. Brito e do Rezende, que o faria, precisando: (a) só realizaria as correções indispensáveis, sem qualquer modificação substancial no texto; (b) se houvesse necessidade de notas de pé de página adicionais, ficaria claro que seriam de minha responsabilidade; e (c) redigiria introdução para aduzir observações pessoais relativas ao livro, assim como a minha colaboração para a edição. Concluí, dizendo que, uma vez publicado, todos os direitos sobre a monografia seriam da viúva; e que, somente se viesse por acaso ela a faltar, tais direitos passariam então para mim. A tudo, Thérèse me pareceu escutar  com atenção. Quando tinha eu reservas acerca do seu cabal entendimento, cuidava de repetir as frases respectivas. Ao final, sem denotar qualquer indecisão, ela me significou a própria concordância, de forma simples e inequívoca.

       Talvez realizando a magnitude do que me propunha, este compromisso terá sido expresso com certa solenidade. Rememorando hoje o que avancei, tendo presente que ainda não iniciei o prometido, te confesso sentir um ressaibo de desconforto. Terei sido apressado ou até leviano em procurar por essa sarcina que ninguém pensara em cometer-me ?

       Só o futuro poderá responder. Sem falsa modéstia, a intenção é decerto boa. Olhando à volta, serei o único em condições de tentar a empresa. O bom Rezende, com seus oitenta e sete anos, me pareceu fragilizado pela idade para levar adiante a ingrata campanha de sensibilizar a algum editor, armado apenas do teu typescript que pela atual servidão da informática não se insere no paradigma corrente. Por sua vez, o Dr. Brito, a par de sua clínica, já cuida de inúmeros assuntos ligados à tua sucessão, para que lhe confiemos mais este encargo em terreno um tanto alheio à sua área de atividade.

       De toda maneira, ao empenhar-me nesse projeto – que talvez venha a concluir, na hipótese otimista, já de retorno ao Rio de Janeiro – vivi a estranha impressão de naquele justo momento como que pudesse transportar-me para fora de meu corpo, e assistir meio incrédulo, qual fosse espectador privilegiado, o anúncio de obrigação assumida sponte mea e obviamente extrapolando da minha disponibilidade de tempo.

        Estaria inconscientemente desejando valer-me do ensejo para trazer à tua monografia boa parcela das sugestões que por uma posição de princípio sempre recusaste considerar ? Não creio. Desde a longínqua leitura na mesa do Falcone, em Petrópolis,do que pensavas seria o primeiro capítulo do ‘Animal Político’, eu acompanhara a tua jornada, a princípio do exterior (Guatemala e Argel), e mais tarde, no Rio. Não havendo o Rezende, por várias razões, se disposto a perlustrar todos os capítulos da monografia – a ponto de incorrer na tua sanhuda reprimenda, ao nos entregares a cópia do typescript definitivo, da qual, nas suas próprias palavras, saíu ‘arrasado’ – e com base no teu testemunho, que nos singulariza como público recebedor dos diversos fascículos, a inarredável conclusão é que fui o único leitor extra muros do livro.

        Sabia da qualidade de tua obra e da relevância do laborioso levantamento bibliográfico realizado. Diante da erudição de uma vida que lhe permeia as páginas, sem falar do aturado sacrifício de mais de quinze anos de coleta, ordenação e redação da matéria, não via sentido que a tua criatura fosse, como tantas outras, consignada ao amorfo depósito dos escritores inéditos.

        A dizer verdade, portanto, eu realmente não tinha opção. Se bem que insensato em termos materiais, o oferecimento de tentar criar condições para a publicação da ‘Crítica do Animal Político’ se me afigurava o recurso extremo de quem se recusa a considerar o teu esforço como vão e estéril.

       E foi pensando nesse cometimento que me despedi de Therezinha. Em breve, conduzidos pelo Dr. Brito, amigo dedicado que tanto vem contribuindo para que a viúva tenha um trem de vida adequado, não mais povoado de angústias e carências, tomaríamos a estrada da volta. No trajeto de cerca de uma hora, interrompido na descida da serra por uns poucos minutos a fim de adquirir um cacho de bananas-ouro, muito aprenderia do peso de um componente psicológico na tua trajetória existencial, cuja relevância, infelizmente, só tenderia a crescer nos anos da velhice.

       Mas isto será assunto da próxima carta.

       Querendo armar-se de compreensão para entender-te as sombras e os eventuais desvãos, creia no apreço de um amigo, perplexo às vezes, porém sempre resoluto,

 

                                                 *                   *

 

 

 




[1] V. nota abaixo.
[2] Correção por informação médica do Dr. Brito: ‘A paralisia que acometeu Pedro foi do lado direito, sendo o AVC no hemisfério cerebral esquerdo, que antecedeu o infarto do miocárdio fatal.’
(x)  Pseudônimo.

2 comentários:

Unknown disse...

Prezado Mauro:

Chamo-me Carlos Augusto Neves da Rocha e sou parente distante do seu tão amigo Pedro Carlos Neves da Rocha. Tenho informações importantes sobre a vida do pai dele (meu quase homônimo) e gostaria de compartilhar contigo.
Qual o teu endereço eletrônico ?
O meu é caugust@uol.com.br

abraço,

Unknown disse...

Peço responder para meu e-mail da UOL.