X V I I
Meu estimado Amigo Pedro,
se o tempo para ti se tornou irrelevante,
os quarenta e poucos dias que medeiam da última carta mostram-lhe o poder e a
consequente diferença para quantos, como eu, ainda estejam na área do
contingente.
Três semanas de férias foram
dedicadas a exames de laboratório, consultas médicas, viagens a São Paulo e
Brasília – em céus ensombrecidos pelo caos aeronáutico – audiências com
autoridades, e prazerosas visitas aos netinhos e filhos. Por fim, já nos
restantes e derradeiros dias, muitas das atividades concerniam a questões
pendentes da tua sucessão.
Almocei
com o Rezende na quinta-feira, trinta de novembro. Naquela manhã, fizera uma
pesquisa na biblioteca do Itamaraty. Como nasceste em Cannes, pensava encontrar
nos anuários do ministério alguma referência que me explicasse o porquê de
vires à luz em terra estrangeira. Por motivos que então desconhecia, a busca
foi infrutífera. A única menção havida se reportou a teu tio Octavio de Sá
Neves da Rocha, auxiliar do Consulado em Lisboa.
Transcorridos poucos meses, o teu amigo me pareceu mais
alquebrado.Chegou um tanto atrasado, pois a jornada era chuvosa, daquelas que
te faziam adiar o compromisso. A projetada audiência com o vice-reitor da PUC
ainda não ocorrera. Rezende culpou a secretária pelo fato, mas para mim a má
vontade se devia atribuir ao próprio. Escudando-se de hábito os poderosos nos
auxiliares para dissimular as eventuais negativas, espantou-me a ingenuidade do
Rezende, que não lograva entrever nas desculpas da subalterna a arrogância da
autoridade. Ou será, pergunto-me, se para o seu ego se afiguraria mais
aceitável a atribuição simplista à secretária ?
Quanto aos
livros, tinha notícias melhores. Por intermédio de uma filha, se soube do
interesse do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN). Disse-me que se estava restaurando o Palácio Rio Negro e
seus anexos, e que lá haveria lugar para alojar os teus dezessete e tantos mil
volumes. O assunto teria progredido bastante, a ponto de se considerar para
breve a transferência dos livros. Como sói ocorrer nesses casos, não pensei de
imediato nas formalidades e implicações jurídicas. Cuidamos apenas de combinar
o dia da viagem a Petrópolis, que ficou, em princípio, aprazado para
segunda-feira, quatro de dezembro.
Mas não
ficamos só nisso. A propósito da minha passagem pela velha biblioteca do
Itamaraty, e da falta de qualquer indicação acerca de teu pai, pedi ao Rezende
que me desse mais detalhes sobre Carlos de Sá Neves da Rocha.
O que ele
então me contou, além de apagar umas tantas falsas noções, como poderia não
surpreender-me ? Os fatos a respeito do teu progenitor, ao invés de trazê-lo
para a fria realidade dos dados biográficos, pareciam transformá-lo em
personagem de romance oitocentista.
Entendi melhor
a tua discrição e mesmo possível restrição mental quanto a eventuais precisões
sobre o que efetivamente motivara o teu nascimento na Côte d’azur. Não sei como, mas fiquei com a impressão de que, ainda
em Quito, quando me referi ao teu lugar natal, seja através de elipses, seja até
por cincunlóquios, não me afastaste da ideia de que Carlos Neves da Rocha
exercia alguma comissão estatal, o que, para um diplomata, semelhou explicação
bastante. Fundada nesse vago pressuposto, quase memória diria, estava a minha
confiança em encontrar nas páginas amarelecidas dos anuários itamaratianos da
década de vinte o registro oficial de uma sua comissão governamental como adido
ou mesmo simples agente consular.
Nas palavras
do Rezende, da união de Carlos de Sá Neves da Rocha e Dalila Ribeiro Neves da
Rocha serias o único filho. Teu pai, que nunca teve cargo público ou exerceu
profissão liberal, herdou um legado considerável. Também tua mãe Dalila trouxe
muitos bens para o matrimônio. Tivesse o cabeça-de-casal bem administrado os
haveres, teria pela frente existência confortável, não muito diversa dos
padrões da classe alta daqueles tempos.
No entanto,
e aí se acentua o traço novelesco desta realidade, Carlos de Sá era um jogador.
Por causa desse vício, nasceste em Cannes. Lá estava o casal não a desfrutar de
vilegiatura mas por força da paixão lúdica do candidato a pater familias, malbaratando o seu futuro no pano verde dos
cassinos da Riviera. Com o passar dos anoss, toda a fortuna seria dilapidada.
Sabedor que tua mãe precedera na sepultura a
teu pai, e imaginando o sofrimento que lhe coube em função da conduta do
marido, perguntei a Rezende que impressão dela guardara. Disse-me que era de
natural afável. Se padecia, cuidava de não deixar transpirar o que porventura
lhe afligisse.
Sei o quão dolorosa ainda te será esta
rememoração, que, pelas contingências do tempo, é decerto descarnada descrição
de um cotidiano povoado de credores, carências e inquietudes. Já sem meios,
teve Carlos Neves da Rocha a sorte de que um amigo lhe proporcionasse emprego
de agente de seguros.
A improvidência paterna, se terá causado
muitos cuidados e decepções – como o do palacete em Santos que pensavas herdar
e que fora vendido em hasta pública pelo não pagamento dos tributos municipais
– não terminaria de forma trágica, a exemplo de tantas outras. Com efeito, nos
seus últimos anos de existência, as tuas remessas como Secretário em Quito
bastariam para sustentá-lo.
Mas
voltemos ao almoço no Urich. Ainda esclareci com o Rezende algumas dúvidas que
nada têm a ver com o aspecto sombrio das informações acima. Assim, chamava-se
Hotel Inglês a pensão em que vivias na rua do Catete, e onde nos recebeste a
mim e outro colega inscrito no vestibular do Rio Branco – de que guardo na
memória a já referida imagem da estante repleta de livros a recobrir as paredes
do quarto. Por outro lado, o nome do decaído antigo companheiro de bancos
escolares – e que por vezes importunava, com abruptos pedidos de empréstimo,
aos participantes nos almoços do Bar Monteiro, como posso testemunhar – é F. P.
N.
Não me deterei nos ires-e-vires da marcação
da data da visita a Therezinha. Afinal, ficou para a terça-feira, cinco de
dezembro. Graças à boa vontade do Dr. Brito, seguimos para a Visconde do
Uruguai no seu carro, partindo da Rodoviária às oito e cinquenta e cinco da
manhã.
Seria proveitosa a viagem. Alguns assuntos – e
em especial o destino da tua biblioteca – teriam as perspectivas de certa forma
melhor delineadas. Outros dados – nem todos alvissareiros – me ajudariam a
conhecer um pouco mais o personagem Pedro Carlos Neves da Rocha e avançar no
entendimento da tua crescente carência de meios.
Meu amigo, em sendo delicado o tema, será
decerto mais apropriado ir por partes.
Sem o desconforto – e os temores que ora
espreitam os viajantes nos transportes públicos – o deslocamento até Petrópolis
transcorreu em amena conversa entre mim e o Dr. Brito. Rezende só interviria se
requestado – e por isso guardou silêncio quase todo o tempo. Mas não desperdiçamos
a prática. A referência dos pormenores da projetada doação dos livros me fez
atinar para as formalidades jurídicas da transação que, pelo visto, haviam sido
por inteiro ignoradas até então.
Therezinha pensava que bastaria simples
autorização sua para que a biblioteca fosse transferida para a instituição beneficiada
pelo ato de doação. Como hás de concordar, a coisa não é assim tão simples.
Seria necessário um ofício de quem pleiteia o donativo, em que especifica as
condições oferecidas, inclusive o local e a designação que lhe será dada. Com a
resposta afirmativa da inventariante, de preferência elaborada por advogado,
será a postulação submetida ao juiz competente. Somente através do requerido
alvará judicial poderá ser legalmente autorizada a doação em apreço.
Quando tínhamos
mentalmente alinhavadas as especificações do processo que ensejará a
transferência dos livros chegamos às vizinhanças do Palácio Rio Negro, onde
veranearam e despacharam presidentes como Getúlio Vargas e outras
personalidades mais obscuras. Com certa solenidade, o Dr. Brito anunciou ao
guarda que adentrava o terreno o Embaixador Mauro Azeredo. Dada a presteza com
que se abriu a cancela, dei-me conta uma vez mais da importância do título no
universo luso-brasileiro, e da autoridade que sói transmitir.
Recebeu-nos
Laura Bahia, sorridente e simpática funcionário do IPHAN. Pelas atenções com que nos prodigou, ficou patente o
interesse do Patrimônio Histórico em abrigar os teus dezessete mil volumes. A
pobreza da cidade serrana em bibliotecaa nos foi aduzida, enquanto a robusta arquiteta
se afastava do Rio Negro, e nos explicava que, por exigência do próprio IPHAN, não se poderiam afixar estantes
nas paredes do palácio presidencial.
A dizer-te
verdade, a observação me pareceu pender mais para desculpa especiosa do que
para critério técnico. Envolvidos pelas profusas palavras que sem cessar saíam
de sua boca, nos dirigimos para a localização proposta da futura biblioteca
“Conselheiro Pedro Carlos Neves da Rocha”. É uma construção anexa ao Palácio,
de que dista uns vinte metros, e dispõe à sua frente de largo espaço para o
parqueamento de carros.
Como foi
muito desfigurada pelo locatário anterior, a casa de dois andares carece de
extensas obras. No entanto, será restaurado o estilo petropolitano dos
primeiros anos da república. Verifiquei que haverá lugar suficiente para a
disposição dos livros por assunto. E, por outro lado, concordei com a sugestão
da funcionária de que a biblioteca se situasse no rés-do-chãao, o que lhe
facilitaria o acesso, e dispensaria os consulentes de galgar elegante escada de
época em ferro forjado.
Empós ter
itemizado todos os pormenores do procedimento que deverá ser cumprido pela
entidade candidata à doação, e ouvido, com a natural reserva, as garantias de
que as dotações respectivas seriam creditadas e os prazos da obra respeitados,
como ela só a mim se dirigisse, achou oportuno o Dr. Brito assinalar que, no
futuro, se tornaria ele o interlocutor para cuidar do andamento do processo e
dirimir qualquer eventual dúvida.
Do restante
da visita, não há muito o que dizer. Depois de render-se à necessidade de fumar
um cigarro, Laura Bahia nos conduziu a ampla – e recém-reformada – cozinha do
Rio Negro, onde nos serviram o ritual cafezinho.
Já passara do
meio-dia quando afinal seguimos para a Visconde do Uruguai. Entrementes, o Dr.
Brito me atualizou quanto à situação dos empregados e outros detalhes relativos
à casa. Osvaldo, o híbrido de chofer e jardineiro, não vingara, por desagradar
à patroa; voltou, assim, o velho Odir, que goza das simpatias de Thérèse. Já a
Carla foi mantida, ora como cozinheira-arrumadeira. Despedido o Hermes (x) que, a despeito da multa rescisória, saíu
ameaçando com entrar na justiça. Segundo soube, aproveitou a indenização de quatro mil reais para montar
um bar. Posto que se deva gostar da própria atividade profissional, o meu temor
é quanto à sua excessiva estima pela classe de produtos com que pretende
operar, e os decorrentes perigos de não distinguir da fronteira entre pessoa
jurídica e usuário.
A incrível
boa vontade e paciência do Dr. Brito logrou recuperar o carro da linha
Volkswagen do ano 1986, que graças ao sólito Hermes (x) se achava em condições
lastimáveis. Feita a difícil travessia até Niterói, o conserto se realizou em
oficina de confiança, e a baixo custo. Ao invés de vendê-lo e, dessarte,
desfazer-se de inútil carga, Therezinha alimenta a pretensão de comprar e
dirigir um carro novo. O incansável procurador tudo tem feito para dissuadi-la
de tal projeto, que agride ao bom senso em diversos aspectos, a começar pela
surdez da motorista, e a consequente inabilitação para a licença de direção.
Conhecendo a pertinácia de tua esposa, não me
aventuro a prognósticos na matéria. Entrementes, a reaparelhada viatura – cuja
cotação de mercado oscila pelos sete mil reais – aguarda paciente na garagem
que a façam rodar.
A
pensão, se não chega aos seis mil reais, tem bastado para atender aos gastos de
residência e criadagem. Para tanto, o desvelo e a correção do Dr. Brito
constituem decerto o fator principal. Os dois empregados passaram a cumprir o
horário legal e não aquelas magras
quatro horas que tinhas determinado. Conserva o procurador dois livros para os
dispêndios e, consoante pude entender, em um deles estão registrados os seus
adiantamentos ainda não quitados (montam a cerca de cinco mil reais).
A par da constante atenção em livrar a
Therezinha da exploração a que estão expostas as viúvas recentes – e contarei
abaixo exemplo ilustrativo – o Dr. Brito marca consultas em dentista para
remediar os efeitos da longa negligência que, custa-me crer, terão surgido em
função da tua negativa em arcar com despesas odontológicas.
Essa condenável desídia – ainda menos
explicável porque dispunhas do seguro dentário do Itamaraty que cobria a
despesas de até mil dólares por ano, e a que, para meu imorredouro espanto,
jamais recorreste – provocou na amada Thérèse uma vintena de cáries, ora enfim
sob tratamento.
Mas o desvelo do amigo in pectore não se cinge a tais cuidados que, não fora a idade, se
diriam mais próprios do filho que o casal nunca pôde ter. Therezinha resolveu
pintar o muro circundante de verde musgo ou quase. Procurou um pintor
conhecido, que quis impingir-lhe o preço de dois mil e oitocentos reais.
Sabedor do orçamento, o Dr. Brito fê-lo baixar para mil e duzentos...
Ele nos contava de mais essa cobrança abusiva
que lograra afastar, quando chegamos à residência. Lá a dona de casa nos
aguardava ansiosa. Depois de distribuir-nos uns tantos elogios, a mim e ao
Rezende, pelos auxílios prestados, levou-nos para a sala de visitas. Desta
feita o aposento, malgrado o pé-direito baixo e atravancamento dos móveis, me
pareceu algo mais arejado, não tão úmido e bolorento quanto o encontrara em
maio. Talvez, por haver a senhoria, em descerrando as cortinas com mais
frequência, permitido a benfazeja intrujice dos temidos raios solares.
Tampouco, quem sabe, caiba excluir a hipótese de que, vencido o momento crítico
da fatalidade e correndo adiantado o processo de reabsorção de seus efeitos
pela rotina do cotidiano, também se rarefaçam as enlutadas sombras a envolver o
mistério de Caronte.
De qualquer forma, e para mim em particular,
seja por prosaicas causas materiais, seja por inaferráveis motivações
subjetivas, a atmosfera principiava a desanuviar-se, o que decerto já me
bastava.
Dali passamos para outros cômodos, sempre
guiados por Thérèse. Atravessadas as duas salas de visita, e depois do
inevitável tropeço no pequeno e inútil degrau que as separa de outra ala da
residência, ela nos mostrou novo aposento, onde se achava espremida a sua
biblioteca. Ao vê-la, como não poderia recordar-me do armário na chancelaria
quitenha, aonde guardavas a reserva de livros da Pléiade, destinados a aplacar os reclamos da cara-metade com as
tuas contínuas aquisições livrescas ?
Na verdade, saberia mais tarde que aquela
visita guiada visava a mostrar-me uma tela de Guyasamin, quiçá o mais famoso
pintor equatoriano. Therezinha soubera de exposição retrospectiva no Rio de
Janeiro e, como deseja vender o quadro, queria obter de suas fontes habituais
informações quanto ao modus faciendi.
Tanto eu, quanto o Dr. Brito não podíamos adiantar muita coisa. Sugeri, a
propósito, que ela me desse as dimensões
da pintura.
Afinal, adentramos o que em carta anterior eu
mencionar como o ‘quarto de hóspedes’, onde passaras os teus últimos dias,
antes da brevíssima estada no hospital. Lá estava o quadro, que fora comprado
por ti do próprio pintor, em princípios dos anos setenta. Não é o caso de
minuciosa descrição de um óleo que não me agradou em demasia – um vaso com uma
planta, em cores surrealistas e mesmo agressivas, que mais semelhavam produto
da ingestão de fungos alucinógenos – porém de tardar-me um pouco no que este cômodo
realmente representou para ti.
Em tal
contexto, será oportuno transcrever trecho da citada correspondência: “No
punhado de dias que te prenunciavam a viagem, sozinho em lúgubre quarto quiçá
jamais utilizado, respirando atrás das venezianas cerradas o ar úmido,
carregado de mofo e ácaros, deitado em vetusta cama, a cabeça pousada sobre
amontoados travesseiros, enquanto sentias no corpo o desconforto da falta de um
leito hospitalar, em que te faria pensar o súbito AVC que te imobilizara a
perna esquerda[1] ?”
Quando o vi
por primeira vez, se me afigurou a própria imagem da inadequação de local para recuperação de enfermo. Tinhas afetado o
lado direito do corpo[2].
Sem embargo, aferrava-me à opinião de que te haviam colocado ali para tua maior
comodidade. Julguei ver prova desse propósito no intento de imitar leito de
hospital com a pilha de travesseiros na cabeceira. E, no entanto, não lograva
atinar como alguém pudesse enganar-se a tal ponto. Penosa impressão me
transmitiam o ambiente opresso, o colchão deformado, a recobrir o que mais
parecia um catre. Naquele tugúrio deparava o triste arremedo de um cuidado
especial, pressaga antecâmara de sorte já selada.
Adiante
tornarei ao denominado quarto de hóspedes. Agora, Therezinha nos convida para o
almoço. Ao centro da mesa, posta para quatro talheres, uma terrina de quiche lorraine. Se bem que encomendada
de padaria do bairro, a atenção demonstra a melhoria no passadio da casa. Da
primeira vez, nos tempos difíceis logo após a tua morte, nem cafezinho havia
disponível. Desta feita, a quiche
regada a suco de uva, com direito a repetição, e como sobremesa, salada de
frutas. Se a refeição não era decerto lauta, dava para retemperar a energia dos
viajantes.
Reportamos
então a conversa com a funcionária do IPHAN, sobretudo para que Therezinha
captasse as indispensáveis formalidades exigidas para a doação da biblioteca.
Não se tratava de uma simples mudança, que se possa concertar entre as duas
partes interessadas. Os livros eram um patrimônio do de cujus, e somente com alvará do juiz a transferência seria
factível.
Dada a sua
dificuldade de audição não é fácil determinar se Thérèse apreendeu a noção
básica que desejávamos transmitir-lhe. Esperemos que sim, embora a sua
insistência quanto à empresa encarregada do transporte não podia deixar de
infundir-nos uma certa dúvida. Impossível não pensar nos problemas da
comunicação, que já motivam tantas pilhas de teses e tratados, se acrescentamos
à análise a dificuldade adicional da prática com deficiente auditivo. Desde
muito entendera sempre tiveste alteado o timbre da voz. Para dialogar com a tua
esposa, não tinhas outra escolha. E por isso, com frequência usavas tal
diapasão com teus amigos.
Agravando-se,
com o passar dos anos, a surdez de Therezinha, tinhas que falar-lhe aos berros.
Subiam os decibéis e os vizinhos mal interpretavam a tua ânsia de conversar com
a companheira. Chegaram mesmo a comentar com o Dr. Brito, por conta dos
clamores que lhes vinham ao ouvido, que o casal brigava muito. Se o teu amigo in pectore pôde explicar o porquê dos
gritos, à falta de um aparelho não terias outro meio de induzi-la a baixar a
voz.
Ao final da refeição, me dispus a assumir um
encargo. Como o Rezende nada conseguira no que tange à publicação do ‘Animal
Político’ – nem sequer logrou ser recebido pela primeira pessoa que pensara
pudesse ajudá-lo nesse propósito; e havendo eu determinado que não seria
tecnicamente factível transpor o texto do typescript
seja para disquete, seja para cd-rom,
só restava a alternativa de digitar as 195 páginas, para que se pudesse
gravar uma versão escoimada dos erros tipográficos e das pequenas omissões ora
existentes. Nos dias que correm não é realista pensar que trabalho nas condições
do teu typescript tenha alguma
probabilidade de ser examinado por uma editora.
É uma faina
longa. Ainda por cima, dadas as características do computador na residência, a
transcrição só será possível no da chancelaria. Como lá estou por tempo
limitado, na sua maior parte tomado pelas tarefas inerentes à chefia da missão,
se afigura manifesto que as quotas horárias porventura disponíveis não tenderão
a ser das mais elásticas, nem generosas.
Tenho dúvidas, por conseguinte, quanto ao meu
bom senso no momento em que me declarei disposto a encarregar-me da digitação.
Disse para Therezinha, na presença do Dr. Brito e do Rezende, que o faria,
precisando: (a) só realizaria as correções indispensáveis, sem qualquer
modificação substancial no texto; (b) se houvesse necessidade de notas de pé de
página adicionais, ficaria claro que seriam de minha responsabilidade; e (c)
redigiria introdução para aduzir observações pessoais relativas ao livro, assim
como a minha colaboração para a edição. Concluí, dizendo que, uma vez publicado,
todos os direitos sobre a monografia seriam da viúva; e que, somente se viesse
por acaso ela a faltar, tais direitos passariam então para mim. A tudo, Thérèse
me pareceu escutar com atenção. Quando
tinha eu reservas acerca do seu cabal entendimento, cuidava de repetir as
frases respectivas. Ao final, sem denotar qualquer indecisão, ela me significou
a própria concordância, de forma simples e inequívoca.
Talvez
realizando a magnitude do que me propunha, este compromisso terá sido expresso
com certa solenidade. Rememorando hoje o que avancei, tendo presente que ainda
não iniciei o prometido, te confesso sentir um ressaibo de desconforto. Terei
sido apressado ou até leviano em procurar por essa sarcina que ninguém pensara em cometer-me ?
Só o futuro
poderá responder. Sem falsa modéstia, a intenção é decerto boa. Olhando à
volta, serei o único em condições de tentar a empresa. O bom Rezende, com seus
oitenta e sete anos, me pareceu fragilizado pela idade para levar adiante a
ingrata campanha de sensibilizar a algum editor, armado apenas do teu typescript que pela atual servidão da
informática não se insere no paradigma corrente. Por sua vez, o Dr. Brito, a
par de sua clínica, já cuida de inúmeros assuntos ligados à tua sucessão, para
que lhe confiemos mais este encargo em terreno um tanto alheio à sua área de
atividade.
De toda
maneira, ao empenhar-me nesse projeto – que talvez venha a concluir, na
hipótese otimista, já de retorno ao Rio de Janeiro – vivi a estranha impressão
de naquele justo momento como que pudesse transportar-me para fora de meu
corpo, e assistir meio incrédulo, qual fosse espectador privilegiado, o anúncio
de obrigação assumida sponte mea e
obviamente extrapolando da minha disponibilidade de tempo.
Estaria inconscientemente
desejando valer-me do ensejo para trazer à tua monografia boa parcela das
sugestões que por uma posição de princípio sempre recusaste considerar ? Não
creio. Desde a longínqua leitura na mesa do Falcone, em Petrópolis,do que
pensavas seria o primeiro capítulo do ‘Animal Político’, eu acompanhara a tua
jornada, a princípio do exterior (Guatemala e Argel), e mais tarde, no Rio. Não
havendo o Rezende, por várias razões, se disposto a perlustrar todos os
capítulos da monografia – a ponto de incorrer na tua sanhuda reprimenda, ao nos
entregares a cópia do typescript
definitivo, da qual, nas suas próprias palavras, saíu ‘arrasado’ – e com base
no teu testemunho, que nos singulariza como público recebedor dos diversos
fascículos, a inarredável conclusão é que fui o único leitor extra muros do livro.
Sabia da
qualidade de tua obra e da relevância do laborioso levantamento bibliográfico
realizado. Diante da erudição de uma vida que lhe permeia as páginas, sem falar
do aturado sacrifício de mais de quinze anos de coleta, ordenação e redação da
matéria, não via sentido que a tua criatura fosse, como tantas outras,
consignada ao amorfo depósito dos escritores inéditos.
A dizer
verdade, portanto, eu realmente não tinha opção. Se bem que insensato em termos
materiais, o oferecimento de tentar
criar condições para a publicação da ‘Crítica do Animal Político’ se me
afigurava o recurso extremo de quem se recusa a considerar o teu esforço como
vão e estéril.
E foi
pensando nesse cometimento que me despedi de Therezinha. Em breve, conduzidos
pelo Dr. Brito, amigo dedicado que tanto vem contribuindo para que a viúva
tenha um trem de vida adequado, não mais povoado de angústias e carências,
tomaríamos a estrada da volta. No trajeto de cerca de uma hora, interrompido na
descida da serra por uns poucos minutos a fim de adquirir um cacho de
bananas-ouro, muito aprenderia do peso de um componente psicológico na tua
trajetória existencial, cuja relevância, infelizmente, só tenderia a crescer
nos anos da velhice.
Mas isto será
assunto da próxima carta.
Querendo
armar-se de compreensão para entender-te as sombras e os eventuais desvãos,
creia no apreço de um amigo, perplexo às vezes, porém sempre resoluto,
* *
2 comentários:
Prezado Mauro:
Chamo-me Carlos Augusto Neves da Rocha e sou parente distante do seu tão amigo Pedro Carlos Neves da Rocha. Tenho informações importantes sobre a vida do pai dele (meu quase homônimo) e gostaria de compartilhar contigo.
Qual o teu endereço eletrônico ?
O meu é caugust@uol.com.br
abraço,
Peço responder para meu e-mail da UOL.
Postar um comentário