Em Moscou, assistiu-se a um ofensivo anacronismo judiciário. Desde muitos séculos, na Europa, a justiça não mais coloca suspeitos de delitos penais no banco dos réus se eles estiverem mortos. De qualquer forma que se encare o ajuizamento – seja o punitivo, seja o educativo – salta aos olhos que nos casos em tela seria uma medida inútil, além de descabida.
A Federação Russa, aonde o poder de gospodin Vladimir V. Putin está em toda a parte – e é melancólico que da debilidade terminal do governo de Boris Ieltsin, em que mesmo rota havia democracia, irrompeu sob seu sucessor (e indicado) a deformidade autoritária.
O procedimento adotado contra o cadáver de Sergei L. Magnitsky pode ser interpretado no seu formato essencial como birra de criança que, confrontada com problema que não pode resolver, afronta os maiores com atitude despropositada em que desafoga a própria agressividade contra eles.
Na essência foi o que aconteceu. Obrigando a um pobre juizeco de consumir mais de hora e meia para ler um veredito que talvez coubesse no teatro do absurdo, será que o presidente de todas as Rússias está mostrando autoridade ? Ou não estará, ao invés, se auto-incriminando em um crime mais grave – menosprezo ao cidadão, por incorrer em inúteis dispêndios, e, a fortiori, em atentar contra a respectiva imagem, ao ignorar o bom senso e cortejar o ridículo ?
Qual a serventia de incriminar um morto por uma suposta sonegação de impostos, quando a notória razão da penalização de Magnitsky foi a circunstância de haver ele exposto enorme fraude tributária pelo governo ? E a consequência dessa iniciativa – meritória em outras plagas - fora a prisão do denunciante e a sua consequente morte, provocada pela descarada falta de assistência médica ?
Dessarte, Freud explicaria porque a longa sentença contra Sergei Magnitsky, a cargo do juiz Igor B. Alisov, tenha sido lida pelo dito magistrado de forma quase inaudível, e isto durante hora e meia ! Seria acaso a única forma encontrada por gospodin Alisov de protestar contra a constrangedora sujeição ?
Entrementes, na Flórida, a absolvição de todas as acusações contra o guarda contratado George Zimmerman, pelo júri de Stanford, pela morte do jovem Trayvon Benjamin Martin, desnudou uma vez mais o preconceito racial sulista.
A suspicácia desse guarda branco se fundou em que o adolescente Trayvon era negro. Ele estava desarmado. O reverendo Raphael Warnock, pastor em igreja batista de Atlanta, colocou muito bem a questão: “Trayvon (...) está morto porque ele e outros homens e jovens negros, não são vistos como uma pessoa, mas como um problema”.
A descarada absolvição de Zimmerman acontece pouco depois da sentença pela Suprema Corte (ainda com maioria conservadora) que destroçou (gutted) a Lei do Direito de Voto, uma das iniciativas (e conquistas) dos anos sessenta em favor das minorias no Sul, contra as tentativas nesses estados de impedi-las de votar. Nunca uma ficção conservadora foi desmascarada tão rapidamente.
Outro triste evento que a absolvição do guarda branco Zimmerman traz à tona está no brutal espancamento, em 1991, de Rodney King, em Los Angeles, por agentes policiais, mostrado em vídeo. A subsequente absolvição desses guardas desencadeou nos Estados Unidos uma onda de motins raciais de protesto.
No que respeita ao infeliz Trayvon, o presidente Barack Obama, cujo primeiro mandato findava, expressara a sua simpatia pelo adolescente negro: “Se eu tivesse um filho, ele se pareceria com Trayvon”.
Os dois pesos e duas medidas apareceram logo no início do processo, quando o comissariado de polícia decidira não prender Mr. Zimmerman. O procedimento penal, com o julgamento, decorreu da pressão pública, e notadamente pela ação nacional de líderes pelos direitos humanos.
Trayvon estava desarmado, enquanto ía no caminho de sua casa. Nas palavras do promotor “aquele jovem tinha todo direito de ficar com medo de um estranho que o estava seguindo, a princípio de carro, e depois a pé. E não tinha por acaso aquele jovem o direito de defender-se ?"
O júri se compunha só de mulheres, sem nenhuma de raça negra, e quando apareceu para informar o juiz que chegara a um veredito, tinham o ar tenso e carregado.
Como se sabe, o agressivo comportamento do guarda Zimmerman se baseou em uma lei da Flórida que dá aos civis o poder de ‘tomar medidas extraordinárias para se defenderem quando sentirem as suas vidas ameaçadas, mesmo quando tenham a opção de recuar'.
Não há dúvida que o tema continuará em pauta. A lei da Flórida pode ser derrogada ou emendada. O processo contra Zimmerman deverá continuar, agora aos cuidados do Governo Federal. Nesse sentido, se manifestaram o Líder da maioria do Senado, Harry Reid (Nev./Dem) e o Sr. Jealous, da ‘N.A.A.C.P’ (Associação Nacional das Pessoas de Cor). As autoridades do Departamento de Justiça lhes afiançaram a respeito que a questão será examinada com todo o cuidado.
Já houve protestos públicos em várias cidades americanas, e o Presidente Obama pediu calma à população.
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