Muitas coisas têm sido ditas a respeito do Papa Francisco. Diante da surpresa de sua eleição pelos cardeais, certos comentários foram alimentados por antigos rancores, e por isso, para satisfazer a sede da imprensa pelo dúbio – talvez pelo desconforto que sinta diante da percepção espontânea do povo – tratou de vestir velhas suspicácias como se fossem certezas.
Pelo que faz e por sua proximidade com a massa dos fiéis, Papa Francisco me recorda – e não só a mim – Papa Giovanni, a quem acaba de determinar a próxima canonização. No longo pontificado de João Paulo II, por muito a ordem da Cúria era de não incentivar o culto popular a esse santo homem. Por isso – e não é a primeira vez que o menciono – as freirinhas tratavam de retirar-lhe da tumba, na cripta vaticana, as flores trazidas pelos fiéis. Tais singelas homenagens – trazidas por gente de toda extração – que cresciam como as flores do campo em torno do despojado jazigo de Papa Roncalli. Já na sepultura de Pio XII havia uma solitária rosa, em receptáculo de cristal, o que lhe traía a origem, muito diversa do anônimo culto devotado ao Papa do Concílio.
A pobreza de sua família camponesa não é piedosa ficção. Ela está para todos verem nas austeras paredes da morada em Sotto il Monte. Perguntado sobre a surpresa que João XXIII, a quem pensaram escolher como Papa de transição, um prelado disse o espanto posterior não existiria se tivessem atentado para o seu procedimento anterior. Saudado como um velho conservador, desde a sua indicação por Papa Paccelli para núncio em Paris, em período difícil, com a caça às feiticeiras do imediato pós-guerra, Monsenhor Roncalli continuaria surpreendendo àqueles que lhe haviam em baixa conta.
Recordei-me dessa presteza na leve censura de Frei Betto – a sutil volta ao latim na liturgia da Igreja – a ser empregado na bênção final por Papa Francisco. O latim, como instrumento, faz parte da história milenar da Igreja, o que a singulariza no que tange às tantas manifestações e heresias que deixou pelo caminho.
Há que distinguir entre forma e conteúdo. Se por vezes aquela cresce ao ponto de sufocar ou deturpar o sentido, é preciso ter presente que uma eventual homenagem ao latim não prejulga um pontificado. Que alguém tão carismático e comunicativo, julgue oportuno valer-se da antiga e sacra língua, de que se valeu a Igreja de Cristo em boa parte de sua jornada, é ao mesmo tempo uma homenagem e um aceno a toda comunidade cristã.
Não se irá considerar o Gaudet Mater Ecclesia – o júbilo da Igreja nossa mãe – palavras que marcam o discurso em latim de Papa Giovanni, na solene abertura do Concílio Vaticano II. E a sacra língua do Lácio, que “serviu amiúde a Igreja para condenar os erros com a máxima severidade, ora, ao contrário a Esposa de Cristo prefere utilizar a medicina da misericórdia, ao invés daquela da severidade”. A onze de outubro de 1962, na basílica de São Pedro, perante os bispos do Concílio, procedentes de todo o mundo, João XXIII lhes indicava assim o novo caminho a percorrer.
Mas ali estava a própria sinalização, que indicaria a rota a seguir, em que cabe a imagem joanina da abertura das janelas, por muito tempo cerradas aos novos tempos. Ele não terminaria o Concílio, eis que iria falecer no ano seguinte, a três de junho de 1963.
Não confundamos contingências ocasionais – como por exemplo o mau tempo que vem perseguindo a Jornada Mundial da Juventude – com traços mais perenes e animadores.
De toda parte e de todo o mundo, os jovens acorreram ao chamado de Francisco. Pela sua simplicidade e – porque não dizer ? – coragem, o Papa Francisco se comunica com as multidões e com a juventude de uma forma muito mais participativa do que as hieráticas cerimônias realizadas por seus antecessores.
Em um tempo no qual a segurança está habituada a prevalecer com seus férreos ditames, o Santo Padre mostra que o seu abraço aos fiéis não é simples figura de retórica, mas se corporifica em gestos simples e humanos – um abraço, uma benção e um beijo em um bebê oferecido por um pai ou uma mãe – que assinalam portentosa presença, que se nega a curvar-se diante de injunções da autoridade civil.
Como pastor, Francisco nos acostuma a conviver com a integralidade dessa sua entrega ao povo de Deus. Todos nós temos presente o que isso significa nos dias que correm.
Como o grande santo da Igreja a quem homenageou, Francisco abre os braços com confiança e grande simpatia ao povo de Deus. Não se escuda por trás de vetos ou exclusões, com a alegre entrega que caracterizou a seu não tão distante predecessor.
Rezemos com ele e por ele. É a grande dádiva que nos proporcionou o Conclave. Não confundamos a árvore com a floresta.
Fontes: Enchiridion Vaticanum 1 – Documenti Ufficiali
del Concilio Vaticano II (1962- 1965); -
Annuario Pontificio 1988.
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