quinta-feira, 4 de julho de 2013

João XXIII e João Paulo II

                     
         Dois papas que chegaram ao sólio pontifício em épocas e idades distintas: o Cardeal de Veneza, Angelo Giuseppe Roncalli, em 1958, com 76 anos, e  Karol Wojtyla, Cardeal de Cracóvia, em 1978, com 58. O fato de que Wojtyla tivesse João em seu nome pontifício era reflexo de homenagem ao antecessor, João Paulo I, que reinara por 33 dias. Este último, por sua vez, cunhara o nome João Paulo para mostrar o apreço aos dois Pontífices do Concílio Vaticano II, i.e. Papa Giovanni e Paulo VI.
         João Paulo II, no entanto, tinha outra agenda, e com ela marcou o longo pontificado. Discípulo do Cardeal-patriarca de Varsóvia, Stefan Wizinski, não desmentiu a orientação conservadora da igreja polonesa. Se esta linha doutrinal foi chamada pelo teólogo do Concílio, Karl Rahner, S.J., como o inverno na Igreja, Papa Wojtyla, de conformidade com a vocação paulina, muito reservou de sua incansável energia – e a despeito dos graves ferimentos recebidos no atentado de 1981, e mais tarde, não obstante o avanço da enfermidade – às viagens apostólicas a todos os continentes.
          João Paulo II está estreitamente ligado à orientação doutrinal conservadora na Igreja. A tendência restauradora esteve presente em todo o seu longo pontificado. Se no início, se assinalara pelo empenho contra a teoria da libertação na América Latina, e seus expoentes, como o então Frei Leonardo Boff, OFM, assim como no combate a teólogos de nomeada, afastados de suas cadeiras, como Hans Küng e Edward Schillebeeckx, durante todo ele prestou apoio a organizações polêmicas como a Opus Dei, e a seu fundador e prelado, a quem canonizaria já no final de seu papado, não obstante sérias objeções existentes contra Josemaria Escrivá de Ballaguer, o fundador da citada Opus Dei.
        A outros como D. Hélder Câmara, além de não prestigiar com encargos que faria por merecer pelo empenho e dedicação, o renome internacional e a  pacífica luta pelos direitos humanos e contra a ditadura militar, coube a severa e amarga provação da  substituíção por prelado da linha ultra-conservadora,  D. José Cardoso Sobrinho no Arcebispado de Olinda e Recife. Com extremado afinco, D. José Sobrinho  se empenhou no desmantelamento da obra pastoral do notável sacerdote, que foi Dom Helder. Daí resultou enorme dano espiritual para a Igreja católica, as comunidades eclesiais de base e o laicado em geral. A tudo o arcebispo emérito suportou em silêncio, dando prova de virtude e de espírito de obediência. Dom Helder, esse gigante do episcopado brasileiro, não só sempre se mostrou pronto ao sacrifício, senão recomendou aos seus perplexos colaboradores a necessária obediência ao sucessor. Não se afastou de tal heróica postura,  mesmo diante do tratamento sofrido, com  características tão distintas das suas, porque afastadas da misericórdia, sua segunda natureza e imortal apanágio do grande apóstolo dos direitos humanos, que foi Dom Helder Pessoa Câmara.
          Se em nenhuma outra sede apostólica houve tão marcado e desavisado empenho, não há negar que a preferência dada à linha conservadora pelo Papa polonês teve a irônica consequência de reforçar o crescimento de o que antes se denominava as seitas evangélicas, que irromperam na América Latina, em operação aparentemente concertada e vinda do Norte, nas décadas de setenta e oitenta do século passado. A direita da Igreja, através de seus representantes, muitos dos quais mais próximos das elites e das classes mais aquinhoadas, terá facilitado pelo seu distanciamento e menor presença nos bairros populares o grande incremento na corrente evangélica. Se esses adeptos de Jesus são ainda minoria, se persistir a falta de empenho da hierarquia, o seu abandono das classes menos privilegiadas à pastoral dos dedicados agentes evangélicos, não é necessário ter o dom da profecia para antever a continuada progressão das igrejas de orientação protestante.
           Perdoe-me o leitor este longo introito. No entanto, ele se fez necessário para que melhor se entenda a minha surpresa com o rapidíssimo caminho de Papa Wojtyla para a santidade plena.
           Não me parece que tal velocidade se deva ao Papa Francisco. É fato conhecido que o seu imediato antecessor Bento XVI, que renunciou ao Papado, foi um estreito e importante colaborador de João Paulo II, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, onde interrogou, em diversas sessões a Frei Leonardo Boff e a Edward Schillebeeckx. Sucedendo a Papa Wojtyla como era esperado, Papa Ratzinger terá visto com favor que o seu imediato antecessor fosse elevado aos altares, com a sua beatificação. Tampouco outros prelados conservadores terão escatimado esforços com vistas a encaminhar-lhe com presteza a causa ao ápice da santidade.
            Agora a sua canonização, após o reconhecimento de outro milagre, completará em um espaço de tempo bastante curto a santificação plena do Papa polonês. E não há dúvida que muitos fiéis acorrerão à praça de São Pedro para a cerimônia de sua apoteose.
             Nesse contexto, apreciaria contrastar o tratamento dado a João XXIII, o Papa do Concílio, cujo falecimento a três de junho de 1963 seria acompanhado por boa parte da Humanidade com filial aflição e grande tristeza, abarcando a credos e religiões muito além do sólio pontifício.  Malgrado a sua inconteste fama de santidade, se parece ter observado o quanto me dissera antes o Cardeal Corrado Bafile, então Prefeito da Sagrada Congregação para a Causa dos Santos, que recomendava como prazo de espera para a beatificação  pelo menos cinquenta anos.  Não obstante a sua aparente proximidade do Papa do Concílio, Paulo VI nada faria pela sua causa, e João Paulo II só o elevaria aos altares, como beato, em março de 2000. Da morte de Papa Giovanni haviam transcorrido 36 anos e nove meses.
             Surpreende deveras que a despeito do culto dispensado ao Papa Buono, e o grande número de seus fiéis, João XXIII continue a ser esquecido quando se trata de reconhecer-lhe a santidade. Para o Papa João Paulo II, que faleceu há oito anos atrás, as etapas semelham muito mais rápidas. Forçado a uma longa espera pelo mesmo pontífice -  que apenas repetira o tratamento dispensado pelo seu contemporâneo Papa Montini, que fez ouvidos de mercador aos inúmeros pedidos pela beatificação de Papa Giovanni - Papa Wojtyla teve pelo menos a virtude de afinal elevar o grande papa do Concilio, em princípios do século XXI, à condição de beato.
              O Papa Francisco tem sido comparado pela atitude, a bonomia e a abertura ao seu distante predecessor, a princípio denominado pela idade avançada Papa de Transição[1], que trouxe o Concílio e abriu as janelas da Igreja para os novos tempos. O Papa Buono – é necessário visitar o  austero e paupérrimo casebre em que nasceu, no lugarejo de Sotto il Monte para que se conscientize o duro caminho de aprendizado de quem escolheu do apóstolo João o nome para o próprio pontificado.  Se ele já é santo no culto de larga devoção, que decerto não se limita à Lombardia e à Itália, como pude verificar pessoalmente, é muito importante trazer-lhe o nome para reforçar na fé a ampla e generosa corrente que se identifica com o exemplo e a existência desse grande homem de Deus.           Parece-me que é mais do que chegado o tempo de consagrar Papa Giovanni com o manto de uma santidade que larga comunidade católica não desconhece pertencer-lhe desde muito. É tempo de elevar o culto desse grande Pontífice, com a sua transbordante bondade e irrestrita abertura às gentes. Terá sido por isso que nunca houve necessidade na cripta vaticana de colocar flores junto ao derradeiro leito de Papa Giovanni, tal o número de fiéis, das mais diversas condições que se empenhavam em trazer a este grande santo o testemunho da própria admiração e devoção.
         Houve tempo, é verdade, em que os sinais do culto de tantos fiéis seriam metodicamente retirados. Com que objetivo, não sei. Seria talvez impróprio pensar que as freirinhas tirassem as flores para que  não se distinguisse em demasia das demais, a sepultura de um Pontífice tão amado?
       Papa Francisco, em muitos aspectos de seu pontificado, que para a felicidade da Igreja  apenas começa, há inúmeros traços que levam observadores a compará-lo com o Santo Papa João XXIII. Desde que assumiu a Sé de Pedro, Sua Santidade tem confirmado em amiudadas oportunidades tais impressões.
       Elevar Papa Giovanni, pela sua canonização, representaria para a Igreja um enorme e portentoso passo e grande felicidade para incontável multidão de fiéis, irmanados pelo culto a este grande homem de Deus, que pela palavra e pelo gesto tanto bem trouxe para a Igreja de N.S. Jesus Cristo.   

 

(Fontes:  Annuario Pontificio 1980, Annuario Pontificio 1988 )




[1] A ironia do cognome está na circunstância de que João XXIII seria realmente Papa de Transição, mas não no sentido estreito que lhe foi dado de imediato, e sim por ter aberto uma nova e importante era para a Igreja de Cristo.

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