quinta-feira, 11 de julho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XIX)


 

                                           X  I  X        

 

 

        Meu dileto Amigo Pedro,

 

        na penúltima carta eu me reportara ao compromisso assumido de verter o teu typescript para versão digitalizada, em condições de ser submetida a um eventual editor. Por vezes, nós, os intelectuais, nos detemos diante de falsos obstáculos, como o personagem de Kafka no Castelo. Em termos materiais, não via saída para o problema. E não fora a intervenção de Ana, até agora talvez estivesse a afligir-me, em face da manifesta impossibilidade de cuidar pessoalmente da digitação.

        Ana me desvelou a alternativa de valer-me de alguém que, por preço de mercado, batesse as cerca de duzentas páginas do ‘Animal Político’. Cruzado o círculo de giz as coisas ficaram mais fáceis. Assim, através de boa amiga no corpo diplomático logrei obter o estipêndio por lauda do tipo A 5 (ofício). Em seguida, ainda por sugestão de minha mulher, identificamos pessoa com a capacitação e a confiabilidade necessárias para transpor a um disquete a íntegra do typescript.

       Quando essa tarefa estiver concluída – e, pelo que sei, o trabalho já passou da metade – tratarei de rever o texto, à cata de algum lapso tipográfico ou de nota de pé de página que deva ser introduzida. Terminada esta parte, pretendo elaborar a bibliografia e, se encontrar o programa de software adequado, incluir um índice onomástico.  

        Completada a faina, redigiria pequeno exórdio, em que apresentaria a monografia e indicaria o que, sob minha responsabilidade, terei acrescentado. Só então, armado do imprescindível cd-rom, partirei para a empresa de tentar a publicação do teu livro.

       Mas deixemos esse campo, por ora longínquo, da realização do cometimento. Depois de escarafunchar os baús e de percorrer os esconsos socavões da tua existência, com os seus segredos, ora prosaicos, ora penosos e até deploráveis, gostaria também de abrir as janelas das mansardas para mostrar-te, sob a clara e generosa luz das manhãs ensolaradas, outras qualidades menos aparentes.

        Se alguém fosse julgar pelo conhecimento de livrarias e da respectiva localização,  certamente pensaria que serias o navegador na internet e não eu, pela quantidade de informações desencavadas a respeito do comércio livresco.  E, no entanto, como bem sabemos, não era assim. O enigma se complica se atentarmos para a circunstância de que, desde 1984, não viajaste além do modesto percurso entre Petrópolis e Rio de Janeiro.

       A indicação da livraria Cultura, em São Paulo, pode ser explicada pela sua relevância, instalada com seus inúmeros departamentos, em diversas e amplas lojas na avenida Paulista, esquina de rua Augusta. Mais difícil será, porém, entender  como havias encontrado a livraria Bucherstube Brooklin, em longínquo canto daquele imenso bairro.

        Em companhia paulistana, atravessei, em lerdo e resfolegante ônibus, muitos quilômetros de para mim desconhecidas ruas, até desembarcar em um ponto a três quarteirões da modesta casa, onde se achava o negócio de frau Úrsula e de sua auxiliar, Marion. Por meio delas encomendavas livros alemães. Tudo fazendo pelo correio, as duas simpáticas senhoras que conheci pessoalmente, para ti eram apenas nomes em correspondência comercial.

        Foi sem dúvida a teu pedido que, em 2003, guiado por quem conhece dos meandros da Paulicéia, atingi aquele recesso perdido em bairro de classe média.  Tinhas comprado dois volumes da tradução da Política de Aristóteles e querias informar-te se o terceiro tomo não estaria acaso disponível.

        Se na minha visita não adquiri nenhum livro nas acanhadas estantes, soube da publicação da terceira parte da tradução comentada da Politik. Pedi então a frau Úrsula que a mandasse vir para ti, enquanto encomendava para mim os três tomos já editados.

        Naquele tempo a depreciação do real, conjugada com o inflado câmbio praticado pelos livreiros, iria salgar bastante os preços. Confrontada com o irrealismo do ágio cobrado, frau Úrsula me produziria comprida exposição em que buscou convencer-me da necessidade do ajuste, face aos custos de transporte, seguro e taxas de armazenagem.

        Faltava, assim, o quarto e último tomo da tradução. Dada a qualidade dos volumes anteriores, aguardavas com certa ansiedade a conclusão do trabalho de Eckart Schütrumpf. Por três vezes, instado por ti, indaguei da livraria alemã se não estaria publicado. Como as respostas negativas se sucediam, por mais de uma feita conjecturaste se provavelmente a demora não se devesse a problemas de saúde de Herr Schütrumpf. Temias que por hipotéticas dificuldades advindas da idade do autor da tradução comentada, a série de volumes ficasse incompleta.

        Desse modo, nos derradeiros meses de 2006, quando de minha segunda viagem ao Brasil naquele ano, recebi de frau Úrsula a palavra de que afinal saíra o esperado quarto tomo, como não poderia recordar-me, com nostálgica tristeza, da tua longa, tenaz e vã expectativa por esse volume, com a tradução dos livros VII e VIII da Política de Aristóteles. Terás, a princípio, decerto pensado em aproveitá-la para a tua monografia, ou, pelo menos, diante do nível da obra de Schütrumpf, a aguardavas pelo simples prazer da leitura.

       Se Aristóteles recebera de Platão o epíteto de leitor, em tempos quando essa atividade  individual não era comum, creio que a denominação te assenta muito bem, logo a ti que de forma inequívoca dedicaste a existência à leitura. Ora, em tal condição, quantas vezes um livro específico, há muito perseguido, terá permanecido ao largo, a despeito das insistentes tentativas ?

      Nessa oportunidade, todavia, forçoso se afigura reconhecer, que a deusa Fortuna pecou por um fugaz, desnecessário toque  de caprichosa crueldade. Com efeito, eis que a famosa e aguardada quarta parte fora publicada em 2005, como verifico ao folhear ‘Aristoteles – Politik – Buch VII und VIII’. O próprio prefácio de Schütrumpf está datado de ‘Boulder, Colorado, April 2005’. Salta, portanto, aos olhos que, desde aquele ano, digamos no segundo semestre, o esperado livro se achava disponível. Sem embargo, lá para o final de 2005, a minha renovada consulta recebera a consueta resposta: não, a quarta parte do Aristóteles-Politik ainda não fora publicada e se ignorava previsão de lançamento.

       Dessarte, não creio que haja saída para a seguinte conclusão: ou houve cochilo do agente de frau Úrsula, ou negligência da própria livreira. Para mim, diria  que a verdade está, aristotelicamente, a meio caminho desses dois fatores. Dentro da modéstia dos meios das livraria, o acesso e a capacidade de seu agente serão necessariamente limitados. Nesses termos, o seu empenho na determinação do fato editorial não terá sido, para empregar modismo do jargão diplomático, muito proativo.

      Por isso, meu amigo, e não por causa de imaginados problemas de saúde  de Herr Schütrumpf, o fecho da tradução não te chegou às mãos !

     Se era considerável a tua rede de livrarias no estrangeiro, como já mencionei a propósito de nossa convivência na pequena chancelaria da embaixada em Quito, não creio que tenhas abandonado a correspondência com os livreiros, mesmo depois de haveres cancelado a conta em dólares na agência em New York do Banco do Brasil. A lista de endereços se estendia a diversas cidades europeias e se me passaste algumas, estou certo que, por circunstâncias várias, muitas terão ficado na tua algibeira.

         Continuo, portanto, a perguntar-me como terás ampliado o arquivo de contatos a partir da aposentadoria.  Presumo, aliás, que esse incremento se há de reportar ao Brasil, eis que não mais tinhas o incentivo de corresponder-te com agentes no exterior. Com efeito, queimaras os teus navios ao fechar a conta em Nova York. Passaste, então, a depender de livrarias no Brasil para as encomendas, cabendo como se sabe, à Leonardo da Vinci a parte do leão.

        Todavia, a sede aquisitiva D. Vanna não a podia saciar por completo. Daí, a incansável e incessante busca por novos (e velhos) títulos, como o demonstraria, por exemplo, a tentativa de convencer-me a participar de leilões de livros, se não me engano na Kosmos. Em princípios de 2000 – não chegara faz muito do exterior – acreditasses oportuno sugerir que eu me abalasse, já à tardinha, ao centro da cidade, para servir-te de intermediário na compra de livros oferecidos em hasta pública.

        No afã de vicariamente participar de tais pregões, não te detivesses muito em considerar as implicâncias e inconveniências envolvidas. Tinhas da indigitada ocasião livresca ideia bastante nebulosa. Ao telefone, me disseste que aí talvez bons livros aparecessem. Tampouco estavas certo quanto a datas e horários. Seria nas quintas-feiras, lá pelas cinco e meia ou seis horas. Assim, completaste, dá um pulo ao centro, porque Você compreende, para mim fica difícil.

        Quando a coisa me parece absurda, em geral prefiro o silêncio como resposta. Em verdade, a tua desenvoltura não me caíra bem. Hoje me relembro da maneira com que ignoravas as filas na rodoviária, indo direto para o guichê. Atrás, vinha o Rezende para apaziguar os ânimos. E se alguém te confrontava e te exigia o respeito a quem chegara primeiro, respondias com olhar atônito, de pessoa que não logra imaginar o porquê da atitude intempestiva do outro...

       Repensando o assunto, continuo a achar que certos pedidos é melhor deixá-los pairando no ar. Evitamos, desse modo, inúteis constrangimentos. Parafraseando Mario de Andrade, jacaré foi lá ?... Nem eu.

        Não desejaria, contudo, concluir esta carta em um tom quérulo. O teu empenho por encontrar bons endereços de livrarias – ou de canais para adquirir livros – não conhecia limites. Graças à irrequietude do temperamento, conseguias informações que, se não te conhecesse o odium devotado ao reles instrumento, te tornariam sem dúvida suspeito de  uso clandestino da internet.

       O nosso convívio de tantas décadas não me permitiria tal erro. Aqui e ali, o desejo de possuir um determinado volume te faria recorrer através de terceiros a uma encomenda da Amazon.com. Mencione-se, de paso, que, em outra feita, chegaste mesmo a alvitrar a minha intermediação em eventual transação  com esta empresa. Também naquele momento me fiz de desentendido.

        Na tua localizada avidez consumísta, não reservavas um instante para considerar da propriedade de uma ação quase maquinal. Se te cobrassem coerência, a tua reação, quem sabe, seria aquele mesmo olhar esgazeado da rodoviária.

       Infinito era o teu amor ao livro. Quem poderia dizer que faltam exemplos nas tantas linhas dessa correspondência sem esperança ?

      Ao ensaiar  mais uma cerimônia do adeus,  essa tão terrena contingência, em meio de inúmeras dúvidas, em sã mente não me atreveria decerto a ignorar a viga mestra da tua construção nesta nossa provisória condição.

      Creia, meu Amigo Pedro, na saudade e na cabisbaixa companhia dos sentimentos das sombras, da parte de quem te escreve na certeza de que, por ora, não há respostas. Se  as colhesse, mediadas pela linguagem confusa dos sonhos e dos signos, como dar-lhes crédito, se atribuíveis a quem se fiava no austero ceticismo de Pierre Bayle e dos tristes niilistas ? 

 

      Com o apreço e a amizade de sempre,

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