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Meu dileto Amigo Pedro,
na penúltima carta eu me reportara
ao compromisso assumido de verter o teu typescript
para versão digitalizada, em condições de ser submetida a um eventual
editor. Por vezes, nós, os intelectuais, nos detemos diante de falsos
obstáculos, como o personagem de Kafka no Castelo. Em termos materiais, não via
saída para o problema. E não fora a intervenção de Ana, até agora talvez
estivesse a afligir-me, em face da manifesta impossibilidade de cuidar
pessoalmente da digitação.
Ana me desvelou a alternativa de valer-me de
alguém que, por preço de mercado, batesse as cerca de duzentas páginas do
‘Animal Político’. Cruzado o círculo de giz as coisas ficaram mais fáceis.
Assim, através de boa amiga no corpo diplomático logrei obter o estipêndio por
lauda do tipo A 5 (ofício). Em seguida, ainda por sugestão de minha mulher,
identificamos pessoa com a capacitação e a confiabilidade necessárias para
transpor a um disquete a íntegra do typescript.
Quando essa tarefa estiver concluída – e, pelo
que sei, o trabalho já passou da metade – tratarei de rever o texto, à cata de
algum lapso tipográfico ou de nota de pé de página que deva ser introduzida.
Terminada esta parte, pretendo elaborar a bibliografia e, se encontrar o
programa de software adequado,
incluir um índice onomástico.
Completada a faina, redigiria pequeno exórdio,
em que apresentaria a monografia e indicaria o que, sob minha responsabilidade,
terei acrescentado. Só então, armado do imprescindível cd-rom, partirei para a empresa de tentar a publicação do teu
livro.
Mas deixemos
esse campo, por ora longínquo, da realização do cometimento. Depois de
escarafunchar os baús e de percorrer os esconsos socavões da tua existência,
com os seus segredos, ora prosaicos, ora penosos e até deploráveis, gostaria
também de abrir as janelas das mansardas para mostrar-te, sob a clara e
generosa luz das manhãs ensolaradas, outras qualidades menos aparentes.
Se alguém fosse julgar pelo conhecimento de
livrarias e da respectiva localização,
certamente pensaria que serias o navegador na internet e não eu, pela quantidade de informações desencavadas a
respeito do comércio livresco. E, no
entanto, como bem sabemos, não era assim. O enigma se complica se atentarmos
para a circunstância de que, desde 1984, não viajaste além do modesto percurso
entre Petrópolis e Rio de Janeiro.
A indicação
da livraria Cultura, em São Paulo, pode ser explicada pela sua relevância,
instalada com seus inúmeros departamentos, em diversas e amplas lojas na
avenida Paulista, esquina de rua Augusta. Mais difícil será, porém,
entender como havias encontrado a
livraria Bucherstube Brooklin, em longínquo canto daquele imenso bairro.
Em companhia paulistana, atravessei, em lerdo
e resfolegante ônibus, muitos quilômetros de para mim desconhecidas ruas, até
desembarcar em um ponto a três quarteirões da modesta casa, onde se achava o
negócio de frau Úrsula e de sua
auxiliar, Marion. Por meio delas encomendavas livros alemães. Tudo fazendo pelo
correio, as duas simpáticas senhoras que conheci pessoalmente, para ti eram
apenas nomes em correspondência comercial.
Foi sem dúvida a teu pedido que, em 2003,
guiado por quem conhece dos meandros da Paulicéia, atingi aquele recesso
perdido em bairro de classe média.
Tinhas comprado dois volumes da tradução da Política de Aristóteles e querias
informar-te se o terceiro tomo não estaria acaso disponível.
Se na
minha visita não adquiri nenhum livro nas acanhadas estantes, soube da publicação
da terceira parte da tradução comentada da Politik.
Pedi então a frau Úrsula que a
mandasse vir para ti, enquanto encomendava para mim os três tomos já editados.
Naquele
tempo a depreciação do real, conjugada com o inflado câmbio praticado pelos
livreiros, iria salgar bastante os preços. Confrontada com o irrealismo do ágio
cobrado, frau Úrsula me produziria
comprida exposição em que buscou convencer-me da necessidade do ajuste, face
aos custos de transporte, seguro e taxas de armazenagem.
Faltava, assim, o quarto e último tomo da
tradução. Dada a qualidade dos volumes anteriores, aguardavas com certa
ansiedade a conclusão do trabalho de Eckart Schütrumpf. Por três vezes, instado
por ti, indaguei da livraria alemã se não estaria publicado. Como as respostas
negativas se sucediam, por mais de uma feita conjecturaste se provavelmente a
demora não se devesse a problemas de saúde de Herr Schütrumpf. Temias que por hipotéticas dificuldades advindas
da idade do autor da tradução comentada, a série de volumes ficasse incompleta.
Desse modo, nos derradeiros meses de 2006,
quando de minha segunda viagem ao Brasil naquele ano, recebi de frau Úrsula a palavra de que afinal
saíra o esperado quarto tomo, como não poderia recordar-me, com nostálgica
tristeza, da tua longa, tenaz e vã expectativa por esse volume, com a tradução
dos livros VII e VIII da Política de Aristóteles. Terás, a princípio, decerto
pensado em aproveitá-la para a tua monografia, ou, pelo menos, diante do nível
da obra de Schütrumpf, a aguardavas pelo simples prazer da leitura.
Se Aristóteles recebera de Platão o epíteto
de leitor, em tempos quando essa
atividade individual não era comum,
creio que a denominação te assenta muito bem, logo a ti que de forma inequívoca
dedicaste a existência à leitura. Ora, em tal condição, quantas vezes um livro
específico, há muito perseguido, terá permanecido ao largo, a despeito das
insistentes tentativas ?
Nessa oportunidade, todavia, forçoso se
afigura reconhecer, que a deusa Fortuna pecou por um fugaz, desnecessário
toque de caprichosa crueldade. Com
efeito, eis que a famosa e aguardada quarta parte fora publicada em 2005, como
verifico ao folhear ‘Aristoteles – Politik – Buch VII und VIII’. O próprio
prefácio de Schütrumpf está datado de ‘Boulder, Colorado, April 2005’. Salta,
portanto, aos olhos que, desde aquele ano, digamos no segundo semestre, o
esperado livro se achava disponível. Sem embargo, lá para o final de 2005, a
minha renovada consulta recebera a consueta resposta: não, a quarta parte do
Aristóteles-Politik ainda não fora publicada e se ignorava previsão de lançamento.
Dessarte, não creio que haja saída para a
seguinte conclusão: ou houve cochilo do agente de frau Úrsula, ou negligência da própria livreira. Para mim,
diria que a verdade está,
aristotelicamente, a meio caminho desses dois fatores. Dentro da modéstia dos
meios das livraria, o acesso e a capacidade de seu agente serão necessariamente
limitados. Nesses termos, o seu empenho na determinação do fato editorial não
terá sido, para empregar modismo do jargão diplomático, muito proativo.
Por isso, meu
amigo, e não por causa de imaginados problemas de saúde de Herr
Schütrumpf, o fecho da tradução não te chegou às mãos !
Se era
considerável a tua rede de livrarias no estrangeiro, como já mencionei a
propósito de nossa convivência na pequena chancelaria da embaixada em Quito,
não creio que tenhas abandonado a correspondência com os livreiros, mesmo
depois de haveres cancelado a conta em dólares na agência em New York do Banco do Brasil. A lista de
endereços se estendia a diversas cidades europeias e se me passaste algumas,
estou certo que, por circunstâncias várias, muitas terão ficado na tua
algibeira.
Continuo, portanto, a perguntar-me como
terás ampliado o arquivo de contatos a partir da aposentadoria. Presumo, aliás, que esse incremento se há de
reportar ao Brasil, eis que não mais tinhas o incentivo de corresponder-te com
agentes no exterior. Com efeito, queimaras os teus navios ao fechar a conta em
Nova York. Passaste, então, a depender de livrarias no Brasil para as encomendas,
cabendo como se sabe, à Leonardo da Vinci a parte do leão.
Todavia, a
sede aquisitiva D. Vanna não a podia saciar por completo. Daí, a incansável e
incessante busca por novos (e velhos) títulos, como o demonstraria, por
exemplo, a tentativa de convencer-me a participar de leilões de livros, se não
me engano na Kosmos. Em princípios de 2000 – não chegara faz muito do exterior –
acreditasses oportuno sugerir que eu me abalasse, já à tardinha, ao centro da
cidade, para servir-te de intermediário na compra de livros oferecidos em hasta
pública.
No afã de
vicariamente participar de tais pregões, não te detivesses muito em considerar
as implicâncias e inconveniências envolvidas. Tinhas da indigitada ocasião
livresca ideia bastante nebulosa. Ao telefone, me disseste que aí talvez bons
livros aparecessem. Tampouco estavas certo quanto a datas e horários. Seria nas
quintas-feiras, lá pelas cinco e meia ou seis horas. Assim, completaste, dá um
pulo ao centro, porque Você compreende, para mim fica difícil.
Quando a
coisa me parece absurda, em geral prefiro o silêncio como resposta. Em verdade,
a tua desenvoltura não me caíra bem. Hoje me relembro da maneira com que
ignoravas as filas na rodoviária, indo direto para o guichê. Atrás, vinha o Rezende
para apaziguar os ânimos. E se alguém te confrontava e te exigia o respeito a
quem chegara primeiro, respondias com olhar atônito, de pessoa que não logra
imaginar o porquê da atitude intempestiva do outro...
Repensando o
assunto, continuo a achar que certos pedidos é melhor deixá-los pairando no ar.
Evitamos, desse modo, inúteis constrangimentos. Parafraseando Mario de Andrade,
jacaré foi lá ?... Nem eu.
Não desejaria, contudo, concluir esta carta em
um tom quérulo. O teu empenho por encontrar bons endereços de livrarias – ou de
canais para adquirir livros – não conhecia limites. Graças à irrequietude do
temperamento, conseguias informações que, se não te conhecesse o odium devotado ao reles instrumento, te
tornariam sem dúvida suspeito de uso
clandestino da internet.
O nosso convívio de tantas décadas não me
permitiria tal erro. Aqui e ali, o desejo de possuir um determinado volume te
faria recorrer através de terceiros a uma encomenda da Amazon.com. Mencione-se,
de paso, que, em outra feita,
chegaste mesmo a alvitrar a minha intermediação em eventual transação com esta empresa. Também naquele momento me
fiz de desentendido.
Na tua
localizada avidez consumísta, não reservavas um instante para considerar da
propriedade de uma ação quase maquinal. Se te cobrassem coerência, a tua
reação, quem sabe, seria aquele mesmo olhar esgazeado da rodoviária.
Infinito era
o teu amor ao livro. Quem poderia dizer que faltam exemplos nas tantas linhas
dessa correspondência sem esperança ?
Ao
ensaiar mais uma cerimônia do
adeus, essa tão terrena contingência, em
meio de inúmeras dúvidas, em sã mente não me atreveria decerto a ignorar a viga
mestra da tua construção nesta nossa provisória condição.
Creia, meu
Amigo Pedro, na saudade e na cabisbaixa companhia dos sentimentos das sombras,
da parte de quem te escreve na certeza de que, por ora, não há respostas. Se as
colhesse, mediadas pela linguagem confusa dos sonhos e dos signos, como
dar-lhes crédito, se atribuíveis a quem se fiava no austero ceticismo de Pierre
Bayle e dos tristes niilistas ?
Com o apreço e
a amizade de sempre,
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