Não será sensato das instâncias do poder – o que, no plano federal, abrange tanto o Planalto, quanto o Congresso - desconhecer as reivindicações do movimento do passe-livre.
Não nos enganemos com elogios superficiais, a fingirem concordâncias, que, ao primeiro obstáculo, serão deixadas pelo caminho. Tampouco julguem que uma andorinha faz o verão, como se vê na pressurosa aprovação de medidas que estavam maduras e pouco exigem de Senado e Câmara, como o voto em aberto nos processos de cassação de mandato.
O presunçoso erro de Lula – que a sua popularidade lhe permite eleger ‘postes’ nos planos federal, estadual e municipal – começa a cobrar a sua libra de carne, e não só dos obsequiosos partidários, com a esteira maldita da incompetência.
Não quero tardar-me na apreciação de o que implica esta renúncia da cidadania em aceitar, como rebanho de carneiros, as determinações do Líder Máximo a impingir para os poleiros do mando suas alegadas cópias-xerox.
No caso da respectiva Chefe de Gabinete, Lula da Silva se valeu do despreparo de grande parte do eleitorado – decerto engodado pelo desvairado assistencialismo pago com as falsas prioridades do Erário que, entre outras, sistematicamente recusa o saneamento básico – para realizar a façanha de colocar na sua cadeira uma apedeuta política. A vitória de Dilma se sustentou nesta viga fundamental, embora não lhe tenha faltado ajuda da miopia de próceres do principal partido de oposição, que na prática cristianizaram[1] o antagonista da indicada pelo líder petista. Por mais doloroso e irônico que seja, não aproveita ao Brasil deter-se em erros passados, por muito que eles deponham contra o interesse nacional.
Assistimos a um longo despertar de ilusões que a impaciência da cidadania – com a explosão menos de reivindicações do que da consciência crítica do autismo do poder instituído – veio quebrar o longo torpor da presidenta, governadores e prefeitos. Quando os piquetes do Povo aparecem – na eterna imagem da Revolução Francesa – não se iludam aqueles, seja da turma do lenço, seja dos governos da Paulicéia, com a desdenhosa e estúpida recusa inicial de tratarem com esses bandos de rua.
A própria Presidente julgou possível pôr-se ao largo com elogios genéricos. Se a vaia do estádio Mané Garrincha iniciaria curso acelerado de uma brutal queda na real – seguida pelo despencar nas pesquisas, que nem o marqueteiro, nem os aspones dos órgãos da pretensa segurança haviam sequer entrevisto – os resultados continuam a ser pífios.
Dilma Rousseff não é do ramo e, para nosso infortúnio, ela nos desvela a cada dia esta sua condição. O grande historiador Arnold Toynbee nos ensina que nesses tempos – que os chineses chamam de interessantes – quem não está à altura do desafio, ao invés de sobrepor-se aos acontecimentos, é levado pela corrente. Que outra impressão nos terá dado a presidenta ao recuar em questão de horas de medidas ditas salvadoras por ela apresentadas, como a constituinte exclusiva e, mais tarde, um confuso plebiscito ou referendo, que mal chega à antecâmara do Congresso, já vem enfraquecido por marchas e contramarchas.
Nunca chefe de estado gritou tanto para ser tão pouco ouvido. Quiçá Dilma Rousseff seja um produto dos tempos. Saída da algibeira de Lula e de sua húbris, ela pensa que a autoridade se impõe aos gritos. Gente pequena se reunirá à sua volta. E sem embargo, por mais que intimide, não agregará forças, porque a persuasão se fundará sempre na respectiva capacidade, na bagagem da experiência, e no respeito ao próximo. O verdadeiro líder na verdade é um fenômeno compósito, que se alevanta não pelo berro ou a intimidação, mas pelo convencimento e a congregação de aportes alheios.
Olhem para Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas e até Pedro II. O significado de suas trajetórias tem pouco a ver com a deusa Fortuna. O fato de terem mal terminado a própria caminhada não depõe contra eles, pela relevância da obra que nos deixaram. E por isso a sua memória, além de preservada, nos traz desconforto se a compararmos com a estirpe de Lilliput com que ora nos defrontamos.
(Fontes: O Globo, Folha
de S. Paulo)
[1] Cristianizar - neologismo
que se refere a votar em outro candidato que não o do próprio partido.
Origina-se da eleição presidencial de 1950 quando o candidato do PSD era
Cristiano Machado. Os chefes do PSD (Benedito Valadares e outros) mandaram
sufragar a Getúlio Vargas, candidato do PTB, e não em Cristiano.
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