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Meu prezado Pedro,
na correspondência anterior, prometera voltar
ao assunto do ‘quarto de hóspedes’. É bom frisar que assim o chamei porque ipsis
verbis me foi mostrado pela própria Therezinha, na manhã de sexta-feira,
dezenove de maio, em nossa visita de pêsames.
Todo casal
tem direito à respectiva privacidade. No entanto, o infortúnio e, em especial,
a morte escarnece de segredos zelosamente guardados anos a fio. Hesito mesmo em
considerar a circunstância em apreço como um ‘segredo’. Parece-me dramatizar
demasiado simples arranjo entre marido e mulher para preservar um detalhe de sua
intimidade.
A
fatalidade ignora portas, fechaduras, muros e longos silêncios. Chamado às pressas, o Dr. Brito foi levado àquele
quarto, onde te encontravas tangido pelo que nossos avós chamariam de leve
ataque de apoplexia.
Na
verdade, a patranha do quarto de hóspedes dissimulava o fato de que não dormias
na cama do casal. Muito provavelmente acataras o desejo de Thérèse de que o
cachorrinho pequinês, eterno sobrevivente de diversas crises cardíacas, lá
dormisse.
De
qualquer modo, de boa vontade ou não, te recolhendo cedo ou tarde, buscarias o
sono naquele cômodo mal-arejado e desconfortável. O hábito faz esquecer ou
induz a tolerar as servidões do cotidiano. Assim, em uma casa sem visitantes –
se excetuarmos o Dr. Brito – te tocaria passar as noites em quarto supostamente
reservado para hóspedes que, como Godot, ali jamais chegariam.
A viagem de
regresso ao Rio, a par desses pequenos mistérios conjugais que as Parcas jogam
na via pública, me ensejou entender um pouco mais o claro enigma da
deterioração de tua situação financeira.
Ao
compreender o porquê de tua lenta e inexorável queda para uma crescente
impecúnia, como não condoer-me do sofrimento do amigo e não perguntar-me o que
poderia ter feito para ajudar-te ? De imediato, paira diante de mim a presença
de teu pai. Se foste um bom filho, provendo os recursos necessários para que
não pagasse ele em seu fim de vida pelas irresponsabilidades cometidas contra a
própria família, na mente persiste a dúvida se não terás herdado algum desvio
genético desse comportamento pródigo.
Sem o vício
do jogo, formado e doutorado em leis, desde a juventude destinaste boa parcela
dos teus haveres para a compra de livros, com ênfase em humanidades. Depois de
ter amealhado substancial quantia pela longa permanência no exterior e ademais
em posto não atribulado pela carestia, incorreste em diversos erros que te
foram progressivamente minando o patrimônio.
Ao sair definitivamente de Quito,
aposentado como Conselheiro aos sessenta anos, resolveste transferir para o
Brasil o montante total de teus haveres em dólares. Numa decisão apressada e
insensata, chegaste a fechar a conta na agência de New York do Banco do Brasil.
Desse modo, passavas a poupança de muitos anos em moeda forte e de curso
universal para cruzeiros diariamente sujeitos àquele tempo a desvalorização que
beirava índices hiperinflacionários. Teria sido mais prudente e vantajoso se, em chegando ao Brasil,
retirasses da conta nova-iorquina o necessário para adquirir o bem imóvel que o
casal escolhesse.
Outro prejuízo terás tido com a sucessiva
venda do apartamento na Joaquim Nabuco. Não sei quanto dinheiro despendeste
para instalar-te na mansão da avenida Rio Branco em Petrópolis. Não foi pelo
instrumento do usufruto, como antes imaginara, e sim por arrendamento, eis que,
por volta de 1997, tiveste de ceder a posse ao novo proprietário. Assim, essa
segunda mudança – desta vez dentro da mesma cidade, da Rio Branco para a
Visconde do Uruguai – não foi em caráter voluntário, por causa do assalto que
sofreste naquela residência em meados dos anos noventa.
Já no solar
português da Rio Branco mais avançaste no teu capital, não só por construir o
pavilhão dedicado à biblioteca, senão pelos gastos com a manutenção de um trem
de vida assaz superior ao permitido pelos teus vencimentos de aposentado.
Tampouco se
deve esquecer que, na virada dos anos noventa, o famigerado Plano Collor veio
congelar as contas bancárias daqueles que se enquadravam dentro do incrível
critério do cara ou coroa estabelecido pela novel Ministra da Fazenda. Tal
plano, tão iníquo quanto esdrúxulo, a sua manifesta inconstitucionalidade não
foram bastantes para que os outros poderes da república ousassem derrogá-lo. O
historiador futuro contará das muitas desgraças que provocou em nossa sofrida
gente. No que te concerne, viste desaparecer nesse ávido ralo dos cruzados mais
uma parcela das tuas economias.
Em torno do
citado ano de 1997, em conversa com o Dr. Brito – cujo conhecimento fizeste
quando te interessaste pela casa da Visconde do Uruguai – lhe confiaste ainda
dispor de cerca de trezentos mil reais no banco.
Dessarte,
parece difícil não encarar com estranheza que, menos de dez anos depois,possuías
apenas dez mil na poupança da Caixa, e uma conta no Unibanco, com saldo
negativo em cheque especial ?
Ainda no
exterior, tiveste um procurador desonesto, que desviou parte dos rendimentos de
um bem de raiz de que posteriormente te desfarias. De volta ao Brasil,
prescindiste dos seus serviços. De toda maneira, portanto, não foi ele um fator
para a virtual perda dos trezentos mil.
Será forçoso,
por conseguinte, procurar alhures a fim de encontrar-se válida explicação para
o malbaratar desse cabedal. Tinhas na residência plantel de quatro empregados:
um motoriste bêbedo e desonesto, jardineiro, cozinheira e arrumadeira. Por
horários de quatro horas, pagavas aos criados salários acima do mercado. A tua
generosidade também se refletia nas gratificações pelas férias.
Segundo soube, a munificência não parava por
aí. A pedido do próprio, que não se pejava de fazê-lo amiúde, concedeste vários
empréstimos ao Hermes (x), todos eles a fundo perdido. Não contente com isso,
condoído pelas lamúrias dos fâmulos, muita vez pagavas igualmente os aluguéis
dessa gente.
Se o casal vivia modestamente, sem gastos em
viagens e vestuário, não refreavas as encomendas de livros, em geral feitas por
intermédio da Leonardo da Vinci, embora também recorresses a outras livrarias.
Acresce notar que, em não tendo mais conta no estrangeiro, não podias mais
ordená-los diretamente, sem pagar ágio aos livreiros daqui. Como há trinta
anos, segundo me disseste, não consultavas médico – olvidaste, a propósito, de
mencionar o amigo in pectore, Dr.
Brito – e havendo proibido, para tua vergonha, que Therezinha fosse a dentista,
as tuas despesas com medicamentos seriam negligenciáveis. Em suma, não será
pela sede de livros e publicações, nem pelos dispêndios com lazer e saúde, que
iremos deparar com o fautor da tua ruína.
Esqueceu-me acrescentar outro gasto, decerto
substancial, que foi a construção sobre a garagem do teu refúgio, sob a égide
de Humanitas. Ali levantaste um
sobrado, com pelo menos três salas, alpendre e escadaria externa, onde alojaste
a querida biblioteca. Longe de mim censurar-te por tal despesa. Era, no
entanto, a segunda vez que fazias reforma para abrigar os livros e, desta
feita, tenho entendido que a obra foi bem maior do que a realizada no casarão
da avenida Rio Branco.
Se alinharmos os repetidos erros em termos de
investimentos, de obrigações assumidas e no dinheiro emprestado a maus
pagadores, só pode ser definida como ruinosa a gestão do capital acumulado em
função do exercício no exterior.
Muitas
atitudes que antes me causaram perplexidade, agora, inseridas em um quadro de
inquietude e escassez, me confrangem, porque nada mais são senão expedientes de
alguém que se descobre progressiva e inelutavelmente acuado pelo espectro da
pobreza.
Em
minhas viagens a Paris ou New York, não te furtavas de me pedir um punhado de
livros. Na medida do possível, buscava atender-te, conquanto me parecessem
excessivas as encomendas, pelas limitações de bagagem das companhias aéreas.
Em geral, minguava a lista por força de
requestares volumes há muito esgotados. O que encontrasse, no entanto,
costumava trazer-te. O preço, calculado ao câmbio do dia, era bem inferior às
cotações extorsivas de D. Vanna e outros que tais. E, não obstante, para minha
surpresa, me passavas cheque em quantia abaixo do montante por mim estipulado.
Preenchias o documento com gestos largos, quase ríspidos. Dir-se-ía que pagavas
com sobranceira relutância. Não vou negar que tal comportamento não me ficasse
atravessado, como se acaso pensasses que eu desejara me prevalecer de reles
conversão cambial. Hoje, sabendo da situação real, vejo a tua conduta como
simples efeito de problema maior.
Já te atenazava há muito o que a fatalidade
pôs a nu. A remuneração do Itamaraty não era mais suficiente para atender a
todos os compromissos, o que se refletia no recurso frequente ao cheque
especial, com a sua cauda de usura bancária. Tangido por carência do qual não
vias saída, terás engolido o orgulho para, em princípio de 2006, pedir ao Dr.
Brito que doravante pagasse os impostos da casa da Visconde do Uruguai. Enquanto usufrutuário, sabias bem que não
cabe ao nu-proprietário arcar com tais encargos. Sem embargo, acossado pelo
vermelho das contas bancárias, e com a poupança reduzida a dez mil reais, não
entreviste outra solução para a tua combalida situação financeira.
Nesse transe, terás acaso pensado em Carlos
de Sá Neves da Rocha, constrangido a valer-se da caridade de amigo abastado,
que por favor o colocara em modesto emprego de agenciador de seguros, a ele que
jamais trabalhara ?
Nesta hora extrema, que muito provavelmente
te apressou o fim, no esquálido quarto onde dormias, não terás buscado forças
para enfrentar o desafio ? Terá sido a carga da velhice que te toldou a vista,
para não veres o que ainda podia ser
feito ? Na garagem jazia o inútil carro de que o bom senso mandava desfazer-te
e, de cambulhada, te livrarias do também inútil Hermes (x), a que da razão não
se deve exigir o motivo para tão molesta presença.
Havia outros remédios para abater as
despesas. Thérèse vive hoje com a pensão que equivale a dois terços do teu
ordenado. Graças ao Dr. Brito, as perspectivas não são desfavoráveis.
No limiar dos oitenta e dois anos, forte
terá batido o cansaço.
Não foi o Pedro que bem conhecia, inda
lépido e disposto, a avançar com passos seguros, portando em bastas sacolas o
produto do seu apego aos livros. Em instante de desalento, recusaste o bom
conselho do teu amigo médico. E, teimoso, estultamente te apegaste à caturrice
sem sentido, ao negares dos cuidados clínicos a mão estendida, a prometer-te
quem sabe a sobrevivência com preservada qualidade existencial.
Nessa encruzilhada, refugaste a esperança e
mais por descorçoado que resoluto, te deixaste resvalar pela sombria, brumosa
vereda que leva ao Hades.
Obsedado pelas dívidas, cético por
convicção, temeroso das despesas hospitalares, divisando o negro futuro da
insolvência, esquecido pelo aturado desuso de que dispunhas do seguro médico do Itamaraty,
terás escolhido a morte que te esperava naquele úmido e lúrido recanto,
Pensando-se enjeitado pela vida, julgando-se ameaçado pela pobreza da
decadência, preferiste esperar pelo barqueiro, como se hóspede foras em anônimo
quarto de pousada, enquanto crescia à tua volta o silêncio. Em algum momento
ouvirias o marulho das águas do Acheron, chegada enfim a tua hora de pisar na
barca de Caronte.
Ah, meu bom amigo Pedro, não há breves
passagens para o misterioso reino, de que tanto falam a mitologia e as
religiões. A funda angústia deste trajeto nos acompanhará a todos, não importa
a vez e o caminho. Já Eurípedes nos sussurra:JÇí dããò iëèw èÜíáôïò, ïäårò âïýëåôáé èíóêåéí[1]. Se a reserva que te impuseste, a
tivesses descartado, quiçá poderíamos ajudar-te a por então eludir este
encontro.
Desgraçadamente, não foi assim. Rompeu-se a corda. Como as desmemoriadas
sombras do Hades, o eterno sono dos campos santos, ou seja lá onde for, a tua
presença há de vagar nas mentes de quem te conheceu, e nas páginas do livro
ainda inédito que nos legaste.
Será este o
único consolo que teremos ? Escrever-te, ou melhor intentar descrever-te, é um ersatz, que não raro pode saber amargo.
Inexistindo escolha, fiquemos com a vicária lembrança, enquanto na nossa
folhinha tivermos marcada a sucessão dos dias, dos meses e dos anos.
Com
revigorado apreço, renascido do conhecimento e da compreensão, acredite-me teu
saudoso amigo,
* *
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