O processo contra Alexei Navalny poderá marcar uma inflexão na cínica manipulação da justiça de parte do homem forte de todas as Rússias, o presidente Vladimir Putin. Não é de hoje que o ex-chefe da KGB instrumentaliza os fracos magistrados de uma subserviente justiça. No seu primeiro mandato, chamou brutalmente à ordem o oligarca do petróleo Mikhail Khodorkovsky, que até hoje apodrece em masmorras, após ter tido a condenação oportunamente prorrogada por juiz que chegava a submeter os respectivos despachos à autoridade superior do Kremlin. E quando esse magistrado leu a sentença que prorrogava a longa prisão de quem ousara afrontar Putin, suportou em silêncio a maldição que lhe increpou, na sala do tribunal, a mãe do condenado.
Acostumado ao exercício impune da subversão da justiça para dispor de seus adversários políticos, talvez gospodin Putin tenha cometido um erro a que os tiranos sóem ser propensos.
Reporto-me ao caso de Alexei Navalny, o carismático antagonista do presidente, cuja popularidade crescera pela sua coragem em asseverar que o senhor presidente é um ladrão. A sua candidatura à prefeitura de Moscou terá parecido a Putin e seu círculo ameaça inaceitável. Havendo colecionado tantos êxitos pela judicialização, o presidente terá determinado que tal seguro método de dispor de incômodos oposicionistas fosse mais uma vez utilizado.
Para que se montasse a paródia de justiça, os homens do Kremlin não se detiveram diante da circunstância de que o processo em Kirov contra Navalny já tivesse sido abortado por falta de provas. Como a vingança presidencial não se deteve, e o mais alto funcionário da promotoria federaç determinou a retomada do processo, não restavam muitas dúvidas do tipo de justiça que seria servida para quem ousara enfrentar Putin.
Dada a usual subserviência do magistrado – que negava todas as moções da defesa e acolhia as da promotoria – a opinião pública já esperava a sentença condenatória. A injustiça, mesmo aquela esperada, será sempre traumática. E nas fotos que correram mundo, a consternada e revoltada surpresa do réu marca a um tempo, a afrontosa insolência da justiça e a obstinada reação de quem se apega, apesar de tudo, à possibilidade da manifestação de respeito aos autos do processo. Será uma reação humana e compreensível, pela teimosa tendência de acreditar no inacreditável, desde que fundado na equidade e no bom senso.
Decerto Vladimir Putin não computara a reação de protesto de milhares de pessoas na praça Manezhnaya, defronte do Kremlin. Malgrado as leis repressoras de manifestações não-autorizadas – com a aplicação de pesadas multas àqueles que protestam - esse comício espontâneo clamou pela liberdade de Navalny, enquanto chamava de ladrão quem organizara todo o arremedo de justiça. Duzentas pessoas foram detidas e liberadas mais tarde, e mais de metade delas deverá pagar multa. Além disso, houve manifestações em São Petersburgo, com a detenção de 50 pessoas, além de outras menores, por várias cidades da Federação.
O relaxamento da prisão de Alexei Navalny – sob o pretexto do recurso impetrado pelos advogados do réu – até que a sentença pronunciada em Kirov seja confirmada não iludirá a ninguém. Dada a inesperada eclosão da raiva popular contra a manipulação da justiça e o castigo imposto ao opositor, a liberdade condicional concedida ao pré-candidato à prefeitura de Moscou é uma maneira de esvaziar as manifestações de protesto, e ganhar tempo, na sovada tática que os governantes da cepa de Putin acreditam poder instrumentalizar em proveito próprio, com o auxílio que crêem providencial do tempo.
( Fonte: Folha de S. Paulo )
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