domingo, 18 de janeiro de 2015

A Cleptocracia de Putin

                                          

          O novo livro da professora Karen Dawisha adota uma tese diversa daquela que até hoje prevalece sobre o fracasso da democracia e o crescimento de Vladimir Putin. Na introdução, a autora explica que ao invés de encarar a política russa como um nascente sistema democrático que é derrubado pela história, autocratas acidentais, a inércia popular, a incompetência burocrática ou a deficiente assessoria ocidental, ela conclui que desde o começo Putin e seu círculo buscara criar um regime autoritário dirigido por uma coesa cabala, que se valeu da democracia apenas com fins decorativos e não de direção.
         Em outras palavras, segundo o artigo de Anne Applebaum, a história mais importante dos últimos vinte anos pode não ser a do malogro da democracia, mas a da ascensão de nova forma de autoritarismo russo.  Dessarte, ao invés de tentar explicar os fracassos dos reformistas e intelectuais que tentaram implementar mudança radical, deveríamos ao invés concentrarmo-nos na espantosa história de um grupo de oficiais da KGB, convictos, sem-escrúpulos e determinados, horrorizados diante do colapso da URSS e da perspectiva de sua consequente perda de influência. Aliados com o crime organizado russo, e começando em fins dos anos oitenta, eles planejaram exitosamente a volta ao poder. Assim, com a assistência da inescrupulosa atividade de empresas internacionais bancárias offshore,  eles furtaram dinheiro que pertencia ao estado russo, o levaram para o exterior por motivo de segurança, e depois o reinvestiram na Rússia, e mais tarde, bocado por bocado, se apropriaram do Estado. Alcançado o mando, eles trouxeram de volta métodos soviéticos de controle político – os únicos que eles conheciam – só que atualizados para os tempos modernos.

          Que a corrupção fazia parte do sistema é algo conhecido há bastante tempo. Chrystia Freeland, no seu livro Venda do Século  (2000) nos descreve a sua descoberta do esquema. Ela percebeu que os regulamentos confusos e as leis contraditórias que manietavam os negócios russos nos anos noventa não eram problema temporário que seria logo afastado por administrador competente. Ao contrário, a elite russa desejava que todos operassem em violação de uma ou outra lei, porque dessa forma todos eram passíveis a qualquer tempo de prisão. As regras contraditórias não eram um equívoco, mas uma forma de controle.

           Dawisha vai além. Antes mesmo que tais abomináveis regras fossem escritas, o sistema já havia sido trucado em favor de certo número de pessoas e de grupos de interesse. Inexistia um campo aberto a todos, e o recurso a mercados competitivos nunca foi empregado.  Ninguém ficou rico pela própria inventiva, ou pela respectiva auto-ajuda. Ao invés, quem ficou rico o deve a favores concedidos ou furtados do estado. E na expressão de Applebaum, quando a poeira baixou, Vladimir Putin emergiu como o rei dos ladrões.

           Para enfrentar o desafio de estória de tais dimensões, a autora se vale de muitas fontes, inclusive provas apresentadas em juízo em causas que depois estancaram por motivos políticos; material coletado por repórteres investigativos; revistas de direito russas, muitas já não mais editadas (out of print).O livro também se vale de entrevistas com banqueiros e empresários, assim como de elementos trazidos por outras obras como “O homem sem face”(2012),, de Masha Gessen (já assinalado por este blog); “Mr Putin: Operador no Kremlin!” (2013), de Clifford Gaddy e Fiona Hill; e “Ascensão do Kremlin”(2005) de Peter Baker e Susan Glasser.

            Diante da quantidade de detalhes que Dawisha fornece sobre as operações criminosas (incluindo nomes, datas e números), a autora encontrou dificuldades em ter o livro publicado. A própria  Cambridge University Press preferiu não publicá-lo depois de estar inicialmente disposta a fazê-lo. Temia cair em violação das leis anti-difamatórias do Reino Unido.  

            Valendo-se desses elementos de prova, segundo a autora a volta ao poder do KGB começa não em 2000, quando Putin se torna presidente, mas no fim dos anos oitenta. Nessa época, os chefes do KGB, que não confiavam em Gorbachev, começaram a transferir dinheiro que pertencia ao Partido Comunista Soviético  fora da URSS e em contas offshore, aos cuidados de bancos suíços e britânicos. Pelo menos inicialmente, tais transferências foram feitas com a ciência do Partido. Funcionários do KGB que já tinham experiência de manejar contas em bancos estrangeiros passaram a encarregar-se disso.

            Depois do malogro do golpe dirigido pelo KGB contra Gorbachev, cerca de 4 bilhões de dólares que pertenciam ao Partidão foram distribuídos em centenas de bancos sob a direção do PC, do Konsomol e do KGB. Em momento no qual a economia funcionava precariamente e as reservas em divisas eram na prática inexistentes, tais fundos e as pessoas que os manipulavam tinham condições de tornar-se o fundamento real da economia na Russia pós-soviética. Assim, um pequeno grupo de pessoas se descobria enriquecido pelo Estado e passando a ter os meios de adquirir-lhe a propriedade.

            A participação de Putin nesse processo vai muito além de sua indicação para Primeiro Ministro e a posterior substituição de Boris Ieltsin. Este é o parecer de Dawisha. Em Dresden, no fim dos anos oitenta, ele era um funcionário do KGB, que via com apreensão o processo em curso, com o desfazimento da União Soviética e de seu império. Esse período, segundo o biógrafo alemão de Putin, Alexander Rahr, está coberto por ‘espesso nevoeiro de silêncio’.  Mas a par do empenho desse funcionário de queimar os maços da sede do KGB em Dresden, talvez ele se tenha empenhado em preparar a agência para a temida dissolução do império soviético. Nesse sentido, a contra-inteligência alemã iniciou investigação para determinar se Putin havia ou não recrutado agentes que permaneceriam leais ao KGB mesmo depois do colapso do governo comunista. A principal preocupação alemã era, segundo a autora, que Vladimir Putin houvesse engajado uma renda de quinta-colunas dentro da Alemanha unificada.

            É ignorada a escala – e o relativo êxito – desse esforço in extremis, mas alguns dos contatos de Putin em Dresden tiveram ótima progressão nas décadas seguintes a 1989. Dessarte, Matthias Warnig, funcionário da Stasi[1] e colega de Putin, abriu em 1991 a primeira sucursal do Dresdner Bank em São Petersburgo (justamente na época em que Putin lá vivia). Em 2000, Warnig chefiava toda a operação do banco na Rússia. Dando sequência à estreita colaboração com o agora presidente Putin, em 2003, o banco participou alacremente do desmembramento da Yukos, companhia petrolífera então de propriedade do magnata Mikhail Khodorkovsky[2], preso e condenado ao encarceramento, com direito a nova sentença pela dócil justiça russa.

            Por outro lado, desde 2006, Warnig é o diretor-executivo do Projeto de Oleduto da Corrente Norte Russo-Alemã. Essa companhia recebeu licença para operar  no mandato do Chanceler alemão Gerhard Schröder, a qual, mais tarde, engajaria o ex-Chanceler Schröder para servir na respectiva Junta diretiva. Warnig continuou, por sua vez, a ser prestigiado pelo governo Putin: em 2012 se tornou membro da junta de diretores do Banco Rossiya, um dos bancos atualmente sob sanção pelos EUA.

           Sobre a participação de Putin no governo municipal de São Petersburgo, o livro de Masha Gessen, recenseado pelo blog, já dá suficientes detalhes. Aí ele foi processado por Marina Salye, edil  no conselho citadino, com a acusação de ter exportado, com contratos dolosos, centenas de milhões de dólares em produtos de base, em troca de alimentos (que nunca chegaram). Apesar do conselho ter votado a sua destituição, nada aconteceu. Como tinha protetores em nível superior,  escapou indene, enquanto Salye, assustada pelas ameaças, fugiu e desapareceu da política russa.

           Segundo indica Dawisha, com os fundos comunistas de Putin e mais o crime organizado, diversas empresas surgiram, como o Bank Rossiya e a Ozero Dacha Cooperativa de Consumidores. Esta última apesar de constituir um pequeno grupo, ao disponibilizar quantias imprecisas de misteriosas fontes de recursos, logo transformaria os membros da cooperativa em milionários e até bilionários.

           A atuação de Putin não se restringiu a tais companhias. A SPAG, um holding de propriedades de raiz em São Petersburgo é uma terceira empresa a ele ligada. A Agência Federal Alemã de Inteligência (BND) investigou a SPAG e publicou relatório que a acusava de lavar dinheiro para criminosos russos e colombianos. Quando Schröder foi Chanceler alemão, a investigação foi retardada. De qualquer forma, não constava o nome de Putin. Muitos de seus membros foram indiciados pelos tribunais do Liechtenstein.

           A próxima fase da carreira de Putin teve a presença determinante de um dos favoritos de Boris Ieltsin, Boris Berezovsky. Após transferir-se de São Petersburgo para Moscou e assumir (até agosto de 1999) a chefia da sucessora do KGB, a FSB, Vladimir Putin convenceu – em episódio bem conhecido – o oligarca Berezovsky (e outros compadres de Ieltsin) a apadrinhá-lo, e colocá-lo no posto do já impopular e doente Ieltsin.  Ele Putin – e seus colegas do FSB – seriam os garantes da fortuna de Berezovsky e dos demais oligarcas.

           O grupo em torno de Ieltsin, minado pela bebida e doente, cometeram o ‘erro’ que é tão comum na história. Pensaram que através de um homo novus poderiam continuar a controlar a política russa, atravessando a salvo a fase da crescente impopularidade de seu antigo chefe.

           Putin, desde logo, no entanto, foi mostrando que não viera para ser um títere. A própria defenestração de Khodorkovsky – por mostrar pretensões políticas – iria indicar, sem sombra de dúvida, quem estava nos controles.

           Assim, colocou na Gazprom dois cupinchas de São Petersburgo:  Dmitri   Medvedev, advogado e colega de Putin nos tempos da prefeitura, e Aleksei Miller, seu antigo substituto no Comitê de São Petersburgo para ligação externa. A nova direção da Gazprom sabia exatamente a quem devia a colocação, e forneceria a Putin os fundos necessários.

          Por outro lado, sob os ventos do onze de setembro de 2001, Putin decidiu estabelecer uma aliança tática com o Ocidente contra o radicalismo muçulmano na Ásia Central. Aberto a novas relações com a OTAN e os líderes europeus e americanos, em 2004 chegou a dizer que se a Ucrânia deseja associar-se à U.E. não veria impedimento, pelas relações especiais que mantinha com Kiev.

          Nesse sentido, abriram-se para Vladimir Putin e a Federação Russa as reuniões periódicas do G8, cujas regras foram alteradas para permitir a adesão de Moscou.

          Tampouco se deve minimizar o golpe de relações públicas do Presidente Putin permitindo a candidatura de Dmitri Medvedev a presidente (Putin continuou entre 2008 e 2012 como Primeiro Ministro). Por um tempo, persistiu o logro voluntário no Ocidente de que o moderado Medvedev poderia ser inclusive reeleito como Presidente, assegurando assim ao Kremlin uma aparência mais bem-comportada.

            Segundo Dawisha foi um extraordinário golpe de relações públicas. Forneceu ao Ocidente a visão de um presidente moderado, pró-ocidental e na aparência pró-normais relações de comércio. Fez valer o que essencialmente um títere como a oportunidade de uma virada (reset) nas relações com Moscou. O Ocidente teria sido engodado e embalado em aceitar um Estado bandido como um difícil porém legítimo parceiro. Dessarte, a suposta détente ensejou a diminuição na prontidão da OTAN, e as instituições financeiras ocidentais ficaram mais dependentes do dinheiro russo.

           Apesar do discurso sobre reformas, Putin não fez nenhum esforço para estimular o capitalismo empresarial a par de criar um sistema legal que permitisse o crescimento de pequenas empresas.  As Cortes de Justiça se tornaram cada vez mais dóceis e politizadas, e os mercados sempre mais distorcidos. Os oligarcas e empresários que não participavam consoante as regras do sistema seriam destruídos  (a vítima mais famosa foi Mikhail Khodorkovsky e a sua liquidada companhia Yukos, de que já tratei acima).

           O quadro econômico das relações com investidores ocidentais foi também convulsionado. Algumas empresas ocidentais floresceram, mas só na medida em que aproveitaram a Putin e seus cupinchas.  Ocidentais que incomodaram o regime, ou cujos negócios fossem cobiçados por russos poderosos seriam destruídos com cobranças tributárias, processos legais, sem excluir procedimentos ainda piores.

           Por outro lado, a ação de Putin no campo político foi a de sistematicamente destruir as nascentes instituições de uma sociedade liberal democrática. Nesse sentido, a dissidência e a oposição se tornou uma atividade perigosa, como o destino de Anna Politovskaya o indica. Ela foi abatida a tiros no hall de  modesto prédio moscovita, quando se aprestava a retornar a seu apartamento. A Politovskaya, jornalista de grande bravura, denunciara muitos atentados contra os direitos humanos na  Tchechenia. Vários processos legais para determinar os mandantes do assassínio não foram além dos capangas que a abateram.

           Depois de intimidar a mídia, especialmente as redes de tevê independentes, Putin lançou-se contra a ‘sociedade civil’, i.e. qualquer organização – seja de caridade, educativa ou advocatícia – sobre que ele não exerce controle direto. Nesse campo, é emblemática a sua ação contra Memorial, organização apolítica e histórica de direitos humanos que produziu estudos elogiados no Ocidente (crimes de Stalin, história do Gulag, e mais em geral a história da repressão na Rússia. Tomando o pretexto de que Memorial recebera fundos do estrangeiro – como a Fundação Ford -  ela foi informada de que deveria registrar-se como “agente estrangeiro”, uma frase que na Rússia carrega pesada insinuação de espionagem estrangeira. Prosseguindo na ação de pôr fim a Memorial,  recentemente o Ministério da Justiça russo entrou com ação legal que procura fechar o Memorial, sob espúrios pretextos administrativos.

               Em lugar de mídia independente e de autêntica sociedade civil, Putin e seu círculo puseram em funcionamento um sistema para faturar desinformação e mobilizar apoio em escala ambiciosa e até espetacular. Além do presumível ataque ao Ocidente, e a tentativa de subverter as instituições e o estamento ocidental, a Rússia de Putin apóia qualquer movimento que possa ter escopos ditos subversivos, como v.g. o Ocupe Wall-Street.  No seu afã destrutivo, a coerência não é o forte do regime russo. Partem muita vez da premissa de que o inimigo de meu inimigo  é meu amigo.

              Em recente artigo publicado em The Interpreter, publicação on-line que se dedica a denunciar a desinformação do Kremlin, Anne Applebaum cita dois jornalistas – Peter Pomerantsev e Michael Weiss - que sublinham ‘desde 2008 pelo menos os pensadores militares e de inteligência falam de  informação não no sentido de ‘persuasão’, ‘diplomacia pública’ ou mesmo ‘propaganda’, mas em termos de um sentido armado (weaponized), como instrumento para confundir, chantagear, desmoralizar, subverter e paralisar.

            Em velha tática de países autoritários, reeditando como já foi dito no blog em diversas postagens sobre as agressões de Putin (tanto na Criméia, quanto na Ucrânia), que seria por procedimentos das vítimas, ou até mesmo  ‘culpa’ do Ocidente – que a Federação Russa se sentiria ameaçada pela expansão da OTAN ou pela ocidental nos Bálcãs.  

            Na tese de Karen Dawisha, desde 2000 a Rússia vem sendo governada por elite revanchista e revisionista, com base no velho KGB. Essa elite busca recuperar o poder desde o fim dos anos oitenta, empregando o furto em larga escala, valendo-se do sigilo proporcionado pelos abrigos off-shore do Ocidente, e cooperando com o crime organizado.

           Uma vez no poder, por intermédio de seu primus inter pares Vladimir V. Putin, a nova elite intenta manter o controle apelando para os mesmos instrumentos do KGB: a manipulação da emoção pública, a subversão das instituições do Ocidente, e de seus ideais, de todos os modos possíveis.

           Nesse sentido, o gesto recente de Putin – o desestabilizador da Ucrânia, o conquistador da Criméia – apenas aumenta anteriores desígnios em países menores como a Geórgia do Sul e a Abkhazia. No sentido de melhor alicerçar os respectivos propósitos – e deixar de ser um ‘poder regional’ como o apodou recentemente Barack Obama, recuperando quem sabe? a força e o peso do velho Império Russo – além da desinformação (referida acima) Vladimir Putin parece reencarnar velhos ditadores – o mais óbvio semelha ser Benito Mussolini.  Na cultura do corpo e por semelhar mais alto do que é, Putin repete métodos antigos e modernos, inclusive com o suposto suporte de doutrina eurasiana, em que faz empréstimos mais à direita do que à esquerda, posto que o objetivo imperialista permaneça o mesmo. Ao seguir nesse caminho, talvez tenha presente mais os êxitos do começo, do que o retrato do fim.

 

( Fontes: Artigo de Anne Applebaum “Como Ele e seus cupinchas furtaram a Rússia”, em The New York Review of Books vol.LXL, n° 20; O Homem sem Face, de Masha Gessen, Riverhead Books, 2012; The New York Times; Der Spiegel)



[1] Serviço secreto da antiga Alemanha Comunista (DDR)
[2] Khodorkovsky, apesar de declarado inocente pela Corte de Direitos Humanos de Estrasburgo, só seria libertado recentemente, asilando-se na Europa ocidental. Está em curso um processo na justiça alemã de ressarcimento de direitos (V. blog)

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