sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Agressâo à Ucrânia

                             
 

        O relativo silêncio da mídia em relação à Ucrânia pode dar a enganosa impressão de que o cessar-fogo estabelecido  a cinco de setembro não só está sendo mantido, como abre nova fase tendente à solução da ‘rebeldia’ na região oriental.

         Segundo artigo de Tim Judah - que tem visitado essa vasta região ucraniana - a situação agora se acha em claro compasso de espera.

          Não há dúvida que o novel presidente em Kiev, Petro Poroshenko, não tinha muitas opções quanto ao cessar-fogo. Dada a situação, tal acordo pode ser importante para a Ucrânia, justamente para ganhar tempo e ajudar na recomposição das forças.

          Para Vladimir Putin, o cessar-fogo tira por semanas ou meses a agressão à Ucrânia do noticiário, e assim pode assisti-lo no sentido de um encaminhamento favorável da questão.

          Só o Dr. Pangloss, o personagem otimista de Voltaire[1], poderia pensar que o presidente russo estaria interessado em solução pacífica, com o restabelecimento da soberania de Kiev na sua região extremo-oriental.

          A agressão de abril que levou à anexação da Crimeia não encerrou a aventura de conquista de Vladimir Putin. Para tanto, terá contribuído a fraca reação internacional diante da cínica operação de criação de condições para o “referendo”, que buscou coonestar a invasão branca da península.

            A tibieza das Nações Unidas – de que o Itamaraty de Dilma Rousseff participou, inclusive pela não-condenação da conquista, o que é inconstitucional – pareceu indicar que o concerto internacional não se conscientizou das implicações de que Vladimir V. Putin se colocava pela sua agressão à Ucrânia e desrespeito ao princípio do pacta sunt servanda, e se tornava, em consequência, hors la loi[2].

             A fraca liderança de Barack H. Obama terá igualmente cooperado, embora no que concerne aos Estados Unidos tampouco o antecessor George W. Bush se saíra a contento quando tentara bater de frente contra Putin, no controle russo dos territórios da Ossetia do Sul e Abkhazia, na chamada Transnistria.

             E é aí – segundo refere o artigo de Judah – que mora o perigo. Os rebeldes, quando sentirem esgotado o tempo do cessar fogo, podem tentar virar o jogo, se necessário com apoio russo.

            Assim, não se pode excluir que o Kremlin reacenda a guerra, onde os chamados ‘rebeldes’ foram salvos da reação ucraniana, que se encaminhava para recuperar Donetsk e Luhansk, pela intervenção militar russa (através de tropas regulares que atravessaram a fronteira para ajudar os rebeldes). A imprensa e o governo russo negaram de forma veemente a verdade militar. As baixas nos militares russos seriam de ‘voluntários’.

             O núcleo rebelde está na chamada República Popular de Donetsk (DNR, no seu acrônimo russo).  O sonho da milícia pró-Rússia é estender o próprio domínio a uma faixa ao longo da costa do Mar Negro, o que despojaria a Ucrânia desse importante litoral, transformando-a em país mediterrâneo. Tudo isso para ligar-se à Transnitria, que contorna a Moldavia. Toda essa operação de sanhuda conquista já encontrou um ideólogo. Trata-se de Aleksandr Dugin, que propõe a criação de império russo-eurasiano, obviamente governado por Moscou. Antes figura marginal no ultranacionalismo russo, Dugin passou a personagem respeitado pelo mundo rebelde.

               Sob o cessar-fogo,  a cidade de Mariupol, no mar de Azov está muito dividida (ela foi invadida por tropas russas para desafogar a investida do exército ucraniano contra Donetsk). Por sua vez, em Sloviansk e Luhansk, as forças ucranianas estão de volta.

               O conflito, segundo Judah, se desenvolve em duas frentes: é  guerra civil, mas também  guerra entre estados. Na maior parte das cidades, a população está satisfeita com a presença ucraniana, mas tem medo da volta dos russos e dos violentos rebeldes.  As queixas contra o exército de Kiev estão motivadas pela sua pontaria deficiente, que atingiu muitos civis em Donetsk e Luhansk.

                 Não há dúvida, por conseguinte, que com todos os seus tropeços, a campanha do exército ucraniano para recuperar a região extremo-oriental  teria sido bem-sucedida, se não ocorresse o súbito ‘reforço de voluntários russos’, na verdade a reentrada na guerra do exército russo.        

                Com efeito, como se pode inferir, Putin, depois da anexação da Crimeia, e animado pela respectiva facilidade daquela operação,  passou à desestabilização da Ucrânia oriental, valendo-se para tanto da minoria de simpatizantes pró-Rússia colhidos nos extratos menos favorecidos da população, além dos chamados ‘voluntários’ para dirigir o chamado foquismo, com a criação de fatos-consumados (invasões de delegacias e sedes regionais).

                Inexistindo um governo titular em Kiev, pelo momento revolucionário da Praça Maidan e a consequente fuga do desmoralizado ex-presidente Viktor Yanukovich, estava colocada para o Kremlin a oportunidade de encetar a desestabilização da Ucrânia oriental. O processo de transição na capital e a contingente fraqueza do governo provisório e do parlamento ucraniano forneceram a Putin o que julgaria a janela mais favorável para o seu ulterior projeto de desestabilização da Ucrânia como uma das entidades territoriais soberanas surgidas com o desaparecimento da União Soviética no final de 1991.

 

(Fonte: The New York Review of Books, 9 de outubro de 2014, artigo de Tim Judah “Ukraine: What Putin has won”  (Ucrânia: o que ganhou Putin).



[1] Voltaire (François Marie Arouet), escritor francês (1694/1778), autor, entre outras obras, de Candide (1759).
[2] Antigo princípio francês de “fora da lei”, que desampara o infrator da proteção legal.

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