sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Elefante na Sala de Estar

                                   

      O gerrymander existe em toda parte, mas em nenhuma democracia  ele está sendo utilizado de forma tão aberta e descarada quanto nos Estados Unidos dos dias atuais.
        Valho-me neste blog de dois artigos, o de Andrew Hacker[1] e aquele de Jeffrey Toobin[2]. Devo igualmente mencionar a politóloga Elizabeth Drew, pelo seu relevante trabalho de conceituação desse tema, e da complexidade política em geral.

         Se o gerrymander é invenção estadunidense, não surpreende que em democracias com representação distrital essa fraude política, urdida por Elbridge Gerry, governador do estado do Massachusetts em 1811, seja fenômeno corrente. Sem embargo, o próprio Gerry ficaria decerto lisonjeado pelo ardor e a extensão com que a sua criação vem sendo imitada nos dias que correm na terra de Tio Sam.
               Por que gerrymander? Gerry redesenhara os distritos eleitorais de Massachusetts de tal forma que eles se assemelhavam a salamandras. Daí se cunhou a prática, com a simbiose de Gerry e salamandra.

               Hoje em dia, conquanto os democratas não sejam imunes de tal deslize, não há negar que o Partido Republicano é o principal beneficiário do processo.
               Antes de especificar aqueles estados em que esta prática fraudulenta se tem assinalado – para tanto o software do computador transformou a arte do gerrymander, nas palavras do jurista Toobin, em verdadeira ciência – semelha oportuno assinalar característica hodierna importante do Grand Old Party. Por força de suas bases, o Partido Republicano se arrima em correntes conservadoras e mesmo reacionárias. Enquanto o Partido Democrata atrai as minorias – as quais por sua união se tornam maiorias – o GOP, o partido do status quo a despeito de dispor de simpatizantes determinados e intransigentes, tem um problema com o pluralismo do seu principal adversário.

               Posto que esquerda não seja vocábulo bem visto nos EUA, o observador atento logo se há de aperceber que os republicanos defendem a ordem estabelecida, vale dizer, as grandes empresas, os grandes negócios e seus privilegiados executivos. É intuitivo, portanto, que sintam um problema com o número dos eleitores. Nesse contexto, o GOP tem adotado estratégia voltada contra o número. Para dar um exemplo: os Estados Unidos da América gostam de marcar a sua diferença. Afinal de contas, apesar do chamado declínio, continuam a ser a superpotência. Daí, persistem em enjeitar o sistema métrico que é adotado mundialmente, preferindo o arcaico sistema dos pés e polegadas. Outra singularidade: no mundo lá fora, o vermelho é a cor característica da esquerda, mas não nos EUA. Lá, o vermelho é a cor do partido da direita conservadora, o GOP, enquanto os liberais do Partido Democrata preferem a cor azul...
                A estratégia republicana contra o número há pouco recebeu senhora ajuda da Corte Suprema. Sob especioso pretexto, a maioria de direita da Corte anulou relevante conquista do governo de Lyndon Johnson. Os estados do Sul profundo (Deep South) podem voltar a impor restrições às minorias (leia-se afro-americanos) no seu exercício de voto, o que antes não era possível, por força do controle impeditivo pelo Congresso federal  quanto à imposição de obstáculos legais às comunidades negras pelas legislaturas desses estados.

                Por força desse seu temor do número, nos estados em que detém o mando, o GOP se empenha em dificultar o livre direito do sufrágio por negros, latinos, idosos, pobres et al. No Texas, na Flórida, no Ohio e em muitos outros estados em que o controle legal esteja em mãos do GOP, a palavra de ordem será dificultar ao máximo a votação dessa gente, que sufraga maciçamente os candidatos democratas. Tal não ocorre por acaso. Não foi um acidente que a revelação de que Mitt Romney considerava que 47% do eleitorado era de parasitas (que votavam nos democratas) partiu do bartender de reunião confidencial com ricaços contribuintes do rival de Barack Obama...

                 Descrição mais ampla desta estratégia impeditiva demandaria um outro artigo. Basta dizer que as enormes filas na Flórida, as seguidas dificuldades diante da exigência de apresentação de ulteriores documentos de identidade, a redução nos horários de abertura das seções eleitorais, a não-permissão de votação antecipada, todas fazem parte de  estratégia geral tendente a reduzir ao máximo as correntes de voto das classes desfavorecidas (essa gente não é boba, e vota em quem a ajuda). Por isso, Barack Obama e o Partido Democrata empreenderam luta titânica para criar meios e modos  com que as massas desfavorecidas logrem chegar até a urna para votar.    
                  Esse horror do Partido Republicano diante do número potencial dos votantes democratas se reflete tanto na Casa de Representantes (de que me ocuparei adiante), quanto na tentativa reacionária de restabelecer a eleição dos senadores por Estado pela forma primitiva (que foi ab-rogada por emenda constitucional). Nada é mais ilustrativo desta postura anti-povo que a  anacrônica campanha republicana para a eleição dos Senadores federais voltar a ser indireta, ficando a cargo das assembleias legislativas. É pouco provável que o GOP logre retirar dos respectivos eleitorados estaduais a capacidade de eleger os dois senadores. Mas o caráter  tentativa de manipulação mostra o quanto possa ser cínica, reacionária e antipopular a estratégia republicana.



O recrudescimento do gerrymander.

                
                 No censo de 2010 – que custou à Pennsilvania a perda de dois assentos – os republicanos ‘resolveram’ o problema, redesenhando o mapa eleitoral. Antes o GOP tinha dez distritos e os democratas onze. Através do gerrymander os republicanos passaram a ter doze e os democratas, sete, embora os números político-eleitorais continuassem os mesmos.                

                 Como a Constituição americana é omissa sobre a forma de eleição da Câmara de Representantes - diz apenas que os membros da Casa ‘devem ser escolhidos a cada segundo ano pelo Povo dos vários Estados’ – a maneira de contestar a descarada afronta foi a de promover ação sob a argumentação de que o novo mapa eleitoral privava o povo da Pennsilvania de équa proteção legal, violando, portanto, a 14ª Emenda à Constituição.

                 A ação judicial – Vieth x Jubelirer – foi julgada pelo Supremo em 2004. Com maioria republicana, os ministros se recusaram a derrogar o mapa eleitoral da Pennsilvania.  Em decisão tão importante, quanto facciosa, estranhamente avalizaram o direito dos partidos políticos em valer-se do gerrymander em proveito próprio. Na motivação da sentença, o juiz Antonin Scalia (que junto com Clarence Thomas ocupa a ultradireita na Corte, que mantém a supremacia conservadora até hoje) lavou as mãos de possível intervenção do tribunal, sob o pretexto de que a Constituição garante a proteção equitativa a pessoas mas não a grupos.  

                 Essa sentença está na raiz do sistema iníquo e desigual que ora prevalece na Casa de Representantes. Em função da clamorosa parcialidade, como assinala Toobin, em 2012 os candidatos democratas à Câmara de Deputados receberam meio milhão de votos a mais que os seus adversários republicanos. No entanto, o GOP foi aquinhoado com mais 33 cadeiras do que o Partido Democrata !

                  Há estados, como a Pennsilvania,  em que o exame estatístico é ainda mais severo nos seus números em estigmatizar o sistema que cinicamente frauda a vontade popular. Assim, para presidente Obama venceu com 52% dos sufrágios, contra 47% para Mitt Romney. Já na votação para a Câmara, os democratas, apesar de terem 50% dos sufrágios, contra 49% do GOP, só venceram em cinco contra treze distritos arrebatados pelos republicanos! O truque na fraude eleitoral está em concentrar os eleitores democratas em um menor número de distritos. Assim, no quadro elaborado por Andrew Hacker o percentual vencedor democrata é altíssimo (no quinteto, há uma oscilação entre 89% e 60%), enquanto os contingentes vencedores republicanos estão distribuídos entre 66% e 52% ! Para fins estatísticos, os votos são considerados supérfluos acima dos 55% ! Vejam, portanto, como foi conservador o legislador estadual na Pennsilvania para os distritos a serem vencidos pelo GOP; e como foi pródigo, reunindo a cambada democrata em cinco distritos, com um grande acúmulo de votantes, que assim puderam mascarar um desequilíbrio na votação, que não corresponde ao sentir dos habitantes da Pennsilvania, se distribuídos de forma séria e honesta.

                   Mas a Pennsilvania, como o mostra o artigo de Andrew Hacker, não é a única campeã da fraude e de sistema adrede disfuncional. O corrente gerrymander republicano se origina da esmagadora vitória do GOP nas eleições intermediárias de 2010 (o amargo fruto de um presidente ainda inexperiente em termos de comunicação política, mas com respeitabilíssimo legado no que tange a esses solitários dois anos, em que teve também o controle do Congresso, como se verifica na lista abaixo de realizações). Como indica Andrew Hacker, apesar de Obama ter vencido em 2008 e 2012 em Michigan, Ohio, Pennsilvania,  Florida e Wisconsin, em 2010, por causa do shellacking (tunda), esses estados elegeram governadores e legislaturas republicanas.

                  Com a liderança do GOP no palácio do governo e nas assembleias desses estados – cabe a elas, a cada dez anos, elaborar o mapa de distritos eleitorais para a Câmara – fica mais fácil de entender, tanto a extensão do gerrymander, quanto a sua proficiência em assegurar aos republicanos a maioria na Câmara de Representantes.

                  O que não se adequa bem com a especiosa fundamentação da sentença de 2004, a que me reporto acima, pode ser resumido em duas considerações básicas: o objetivo dos constituintes foi o de assegurar que a vontade do Povo seja respeitada. Por outro lado, esse desrespeito à vontade do Povo Soberano se reflete na eleição de uma Câmara em que o sentir majoritário da Nação não é obedecido. A composição da atual Câmara de Representantes está na contracorrente de o que povo americano deseja, e daí a disfuncionalidade atual do sistema, eis que um dos poderes não está constituído em forma que corresponda à vontade da maioria do eleitorado. Eis a razão básica pela qual Washington e o Governo são ditos não funcionarem. Depois dos dois primeiros anos de Obama, em que foram aprovadas a Reforma Sanitária (a lei da assistência médica custeável – ACA), a reforma financeira (a lei Dodd-Frank), o salvamento da indústria automobilística, a revogação da disposição não pergunte e não diga (don't ask, don't tell  vinda da Administração Clinton, quanto aos gays nas Forças Armadas), os estímulos (Tarp) para sair da grande recessão, e a ratificação de tratado de controle de armas com a Federação Russa, o 44° Presidente não conseguiu mais nada na prática do Congresso, pela oposição da Câmara dominada pelo Tea Party, e um Senado, em que o Partido Democrata não mais dispunha da maioria de sessenta para vencer os filibusters dos republicanos. 

                 O Partido Republicano, por uma série de fatores, tornou praticamente irrelevante a sua anterior corrente moderada, que funcionava como espécie de ponte com os democratas. Dadas as suas características, atuava em prol do espírito bipartidário.  Hoje em dia há pouquíssimos congressistas republicanos moderados. São uma espécie em extinção. Daí também a queda no espírito de entendimento bipartidário, que punha os interesses da Nação acima dos da facção.

                  O estudo da política nos tende a ensinar que todos os sistemas antifuncionais – e existe algo mais antifuncional do que a fraude erigida como base de uma organização ? – contêm dentro deles o próprio germe de sua eventual auto-destruição.

                  Existem traços no atual sistema disfuncional americano que podem dar guarida a uma avaliação mais otimista das possibilidades de superação de tais irregularidades (mesmo aquelas avalizadas pela toga). O processo, no entanto, é necessariamente lento.       

 

Fontes: The New York Review of Books; The New Yorker; The New York Times.                                               




[1] ‘2014: outra debacle democrática ?’,  em The New York Review of Books,  9/01/2014.
[2] “Nossa fraturada Constituição’, em The New Yorker, 9/12/2013.

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