domingo, 23 de fevereiro de 2014

Colcha de Retalhos B 7

 
                                 
Vitória da revolução na Ucrânia                                

 
       Viktor F. Yanukovych encontra-se em Kharkiv, na Ucrânia oriental, próxima da fronteira com a Rússia. Afirmando que seu carro foi alvejado, e falando em russo – o idioma legal do país é o ucraniano – Yanukovych se declarou vítima de um complot, de banditismo e de ‘golpe de estado’. Asseverou que não pretende deixar o país. Por outro lado, indicou que seguirá para o sul da Ucrania, em área próxima à Crimeia, onde a maioria da população tem simpatias pela Rússia e o russo é a língua franca. Por sua vez, os governadores das províncias orientais adotaram resolução em que resistem às determinações do Parlamento, que destituíu,  por trezentos votos a favor, e cento e cinquenta contra, Viktor F. Yanukovych da presidência.  Assinale-se que tal maioria, por ser de dois terços da assembleia, elimina qualquer possibilidade de veto parlamentar. Para a presidência do Parlamento, nesta fase pós-Yanukovych, foi eleito Oleksander Turchynov, antigo Primeiro Ministro, e próximo de Yulia Timoshenko 

        A 21 de fevereiro, ainda presidente da Ucrânia. Hoje, destituído do cargo, todo o  esquema de poder de Yanukovych caiu como um castelo de cartas. Assinale-se, por oportuno, que Viktor Yanukovych passou a ter o dúbio laurel de haver sido por duas vezes escorraçado por seus compatriotas do Palácio Presidencial (na primeira vez, pela chamada Revolução Laranja, em 2004/2005).  Tanto o Palácio, quanto a Residência oficial foram abandonados, e estão hoje sob os cuidados de milícias armadas. A Polícia de Choque – que tanto mal fez aos manifestantes – sumiu, enquanto a outra polícia coopera com os revolucionários. As atitudes de Yanukovych – homem estreitamente ligado à Federação Russa e que nesta hora fala russo ao invés de ucraniano – não são de bom augúrio para a Ucrânia, eis que a Rússia vê com desconfiança o desenlace da crise. Muito dependerá da firmeza da nova aliança nacional, inclusive no que tange a trazer de volta ao aprisco os governadores mais arredios da parte oriental (dita pró-Rússia) do país.

         Se se especulara a princípio que o ex-presidente Yanukovych,  sentindo desfazer-se o próprio esquema de sustentação, teria tentado refugiar-se na Rússia – e que existiria mesmo esquema de fuga propiciado pelo governo de Vladimir Putin – esta carta do deposto presidente reflete a influência do Kremlin, ora perdida com a queda de Yanukovych. Não é de esquecer-se que tudo começou com a repentina troca de alianças por Yanukovych, que, às vésperas da assinatura do Acordo de Cooperação com a União Europeia, em Vilnius, na Lituânia,  de forma inopinada e mesmo ofensiva enjeitou o dito Acordo e indicou a sua intenção de subscrever compromisso com o Kremlin, pela qual iria aderir à União Aduaneira, impingida por Vladimir Putin aos seus vizinhos e ex-repúblicas da defunta União Soviética.

        Bem sabemos no que deu esse gesto canhestro.  Começaram em novembro as manifestações de protesto na Praça Maidan, que apesar de toda a resistência e repressão só cresceram durante os meses seguintes, dada a pertinácia das manifestações e a sua negação de acatar a brutal tentativa do presidente em contrariar a escolha do povo pela Europa Ocidental.

       Viktor Yanukovych subestimou a importância para os ucranianos de um acordo de associação com Bruxelas, e as oportunidades que abriria para a Ucrânia, como o demonstrara a vizinha Polônia. O seu erro de julgamento lhe seria fatal, eis que os manifestantes se apossaram do centro da cidade em fins de novembro, e desde então todo o equilibrismo do presidente, e as suas repetidas tentativas de virar a página, não tiveram êxito.

         De uma posição de fraqueza, os manifestantes pela respectiva resolução viraram pedra no caminho de Yanukovych. Na sua última tentativa de desfazer-se da multidão que se apossara da Praça da Independência – e de outros edifícios públicos – o presidente erraria feio, ao apelar para atiradores chamados de elite e munição letal, para um banho de sangue, com cerca de oitenta mortos.

          Afinal veio a intervenção política europeia  - que, entrementes, tardara demasiado na vocalização do apoio ao povo ucraniano - na pessoa dos ministros do exterior da França, da Alemanha e da Polônia.  O presidente cedeu e a situação se transformou rapidamente. Como primeira peça a cair, o  ministro do Interior Vitaly Zakharchenko foi exonerado por decreto do Parlamento, por sua responsabilidade pelo massacre da véspera.

          O progressivo e já acelerado enfraquecimento de Yanukovych leva a que muitos deputados do Partido das Regiões – a base política do Presidente –  abandonem o navio presidencial. Assim, o processo revolucionário retira significado de concessões anteriores de Yanukovych (volta da Constituição de 2004, com a redução dos poderes presidenciais), que se tornam irremediavelmente defasadas. Daí, na dinâmica do esvaziamento do presidente, sucedeu-se o decreto parlamentar determinando a libertação de sua principal adversária política, a quem Yanukovych lograra fazer condenar a sete anos de prisão.

          Terá sido a gota d’água para Viktor F. Yanukovych.  A  própria Russia – que há pouco ainda fazia declarações arrogantes em apoio ao fiel aliado, por intermédio do Primeiro Ministro Dmitri Medvedev – preferiu não associar-se ao acordo em que o presidente mantinha o cargo, posto que diminuído. Tampouco nesse pós-Yanukovych não está esclarecido ainda o que houve em termos da fuga do ex-presidente para a sua protetora, a Federação Russa. Terá falhado o esquema de transporte a cargo da Rússia? De qualquer forma, de presidente da Ucrânia ei-lo refugiado em Kharkiv, com o palácio já ocupado, nos seus principais pontos, pelas forças revolucionárias.

              Entrementes, Yulia Timoshenko, liberta do hospital penitenciário na manhã deste sábado, ressurge como a verdadeira nêmesis que é de Viktor F. Yanukovych. A Tymoshenko, alquebrada e demonstrando saúde precária – não é brincadeira arrostar as prisões da Ucrânia, após o processo encomendado e dentro das ignóbeis normas do judicialismo político, da marca de Vladimir Putin, em que a política da trança camponesa foi condenada, como Jacó, a sete anos de prisão.

               Apesar de que a Alta Corte Europeia de Direitos Humanos pronunciara como politicamente motivada a condenação da Timoshenko, e malgrado todo o empenho da autoridade comunitária e da própria Chanceler Angela Merkel, em retirar do lazareto de Kharkov a prisioneira, para tratamento da coluna, Yanukovych nunca mostrou grandeza.Seu currículo registra duas prisões na juventude por assalto .Sempre optou por eludir as intercessões,  prometendo considerá-las. Na verdade, as colocava na gaveta, movido sobretudo pelo seu temor de  enfrentá-la em novas eleições.

               Nada mais simbólico, portanto, da inelutável vitória da justiça, que o fato de a multidão de manifestantes na Praça da Independência em Kiev ouvir e aplaudir o discurso da afinal liberta, Yulia Timoshenko,  por fim  fora da iníqua prisão. No pedestal do monumento de Maidan, a voz continua firme, mas não se pode deixar de notar que ela está em cadeira de rodas, os cabelos não estão tão louros quanto antes, e a fisionomia mais que o cansaço marca os intermináveis dias de um cárcere duro e impiedoso, com o tratamento deficiente a alguém que tem problemas na coluna, problemas esses que o atraso e a falta de apoio médico terão decerto agravado.

             Nem todos os circunstantes seriam seus partidários, mas as condições em que se dava a sua presença, toda a injustiça e iniquidade que a própria fisionomia não pode ocultar, junto com a férrea vontade, ela não pode deixar de significar tanto a firmeza inabalável de sua disposição, quanto a fragilidade que Yanukovych não logrou quebrar. Não surpreende, decerto, que seja calorosamente acolhida por aquele público duro e empedernido não só pela intempérie, como pela longa batalha contra o tirano Yanukovych. Não surpreendem tampouco os gritos de Yulia, Yulia!  Enquanto  ela faz conhecer a seus compatriotas  a  intenção de concorrer no pleito a ser organizado em função da exoneração do Presidente revel, de que o Parlamento da Ucrânia votara a destituição.      

              Grande parte das maquinações de Yanukovych buscavam obstaculizar o avanço de sua adversária política. Para tanto, não teve quaisquer escrúpulos em montar um juízo politicamente motivado para mantê-la nas masmorras do interior da Ucrânia, de modo a que a Timoshenko não pudesse pôr em perigo os seus planos de reeleição.

               A sua atuação política relembra a de um corredor que cuida sempre pelo espelho retrovisor da posição de sua rival.  Apesar de dizer o contrário, Yanukovych jamais pensaria em libertá-la e por causa disso contrariou, entre outros, a Angela Merkel.

               Ao encetar a sua fuga – que evoca, de certa maneira, a tentativa de Luís XVI de partir com a família real no caminho de Varennes (onde o esperava destacamento do exército austríaco) para escapar da Convenção e de sua situação de rei não mais absoluto – Viktor Yanukovych terá pensado acaso na peripeteia de ver-se transformado em fugitivo, enquanto a sua nêmesis, Yulia Timoshenko, está de volta a Kiev, para disputar pelo voto do Povo a presidência da república? 

               É justo, portanto, que a Timoshenko encarne a nêmesis para Viktor Yanukovych.  No futuro, ela há de superar essa circunstância contingente. Mas no momento, não poderia haver mensagem mais alvissareira, em se falando da força da justiça e da fraqueza do mal.

 
  
Repressão na Venezuela

 
        Ao contrário da laudatória Argentina de Cristina Kirchner, o governo Dilma Rousseff  tem mantido alguma distância do governo Nicolas Maduro, evitando adentrar questões internas da Venezuela. O único escorregão foi assinar embaixo do comunicado do Mercosul que verberou ações criminosas da Oposição. Não à toa esse cochilo causou mal-estar em diplomatas brasileiros.

        O líder oposicionista Leopoldo López continua preso. A justiça venezuelana, que é um braço do chavismo, decretou-lhe a prisão preventiva por 45 dias. Por sua vez, o também chavista Ministério Público já preparou o libelo com pena de dez anos de prisão. A severidade na Justiça quando só funciona em um sentido é mais do que sinal, e sim confirmação do caráter meta-ditatorial do regime. Quanto três aos manifestantes mortos pelos ignóbeis colectivos chavistas – que não passam de milícias estipendiadas pelo Estado – nenhuma palavra e nenhuma ação (sequer a da jovem miss estupidamente abatida com um tiro na cabeça).  Que se deseje penalizar uma ação política – além das dúbias acusações sobre o seu pretenso envolvimento – já fornece pesado indício da melancólica realidade nas condições do debate político na Venezuela, assim como do endurecimento do regime.

        Querer negar gasolina à oposição é ainda descer mais o nível. O que Maduro deveria fazer é governar em atmosfera de liberdade e de defesa do direito de opinião. Desejar sufocá-lo por medidas como negação de autorização para importar papel de imprensa – além de atenazar os veículos de opinião – mostra que o regime atual está mais preocupado em arrochar o diálogo e a expressão de opiniões divergentes, do que manter fachadas democráticas.

        Prevalecer-se do poder constituído para sufocar a liberdade da oposição nada tem a ver com democracia. Em se tratando de governo canhestro e violento, a coisa deve piorar ainda mais, porque as causas das divergências continuam (desabastecimento, inflação galopante, violência dos coletivos chavistas, etc.etc.) e não será por negar-lhes a existência e partir para a intimidação generalizada que tais problemas sóem ser resolvidos.

        Uma das eficiências do regime chavista está na construção de um aparato repressor que visa à manutenção, pela violência, fraude ou ambas misturadas, do próprio monstrengo que o coronel Hugo Chávez Frias deixou como legado para a Venezuela. Isso explica a prepotência de Maduro. Não sendo comparável ao antecessor  em termos de capacidade política de lidar com os desafios presentes, fica mais fácil de entender a institucionalização da fraude, que serviria como espécie de sistema de segurança para a manutenção do chavismo.

         Apesar de dominarem o Judiciário, o Ministério Público, e, por via das apurações (no velho estilo mexicano) assegurar o predomínio no Executivo e Legislativo,  o zeloso aparato chavista confunde oposição com subversão.

          É lamentável que o fanal da democracia na América do Sul – em época na qual pululavam as ditaduras militares – desde o governo de Romulo Betancourt tenha aos poucos decaído e permitido, por força do viagismo de Carlos Andrés Perez e a corrupção, que o chavismo tenha grassado, a princípio com uma linha democrática (até o recall foi permitido), para com o passar do tempo enrijecer as artérias na demagogia e no cripto-militarismo bolivariano de Hugo Chávez.

             Mas a famosa dúvida de Garcia Marquez ao ver afastar-se o ainda jovem Hugo Chávez no tarmac de aeroporto – será possível que vire outro caudilho latino-americano?– infelizmente foi corroborado pela história, com o detalhe suplementar de que o seu sucessor designado deixou de lado as qualidades de Chávez para aplicar apenas a violência institucional, tudo decerto soprado pelo saltitante passarinho que o benjamin (e ex-caminhoneiro) levava no ombro...

             Diante de tamanha e tão sólida incompetência político-administrativa, a pergunta que ronda tanto a cúpula dos velhos chavistas, quanto da atribulada oposição, é o  que terá visto no compañero Maduro o comandante Hugo Chávez Frias. Ou terá sido apenas o último chiste do Caudillo, para assim mostrar o respectivo menosprezo pela alta hierarquia do chavismo...  

 
Paradoxos do ‘Mais Médicos’



       Vejo com tristeza que o Governo Dilma tenha uma relação cada vez mais comprometedora com o regime dos irmãos Castro. As concessões que Havana tem feito à democracia e ao respeito dos direitos humanos são risíveis. Na verdade, por arrogância e senil obstinação os irmãos Castro não mais tentam encobrir-lhe as feições. Seria, assim, como se se dispusessem a colocar à visitação pública, na sala principal, o próprio retrato de Dorian Gray.

        É preciso ter essa relação ambígua com Cuba e as fantasias quanto ao caráter redentor da dita Revolução – alimentadas à distância, enquanto batalhavam no Brasil com os parcos meios disponíveis contra o tacão do regime militar – para reputar factível a aplicação no Brasil, face à nossa Constituição de 5 de outubro de 1988, de um programa de pretensa cooperação técnica, nos tristes moldes do acordo negociado com Cuba – que é inserido com modalidades específicas, que lhe abastardam e desfiguram o caráter, no programa geral, destinado a médicos estrangeiros (mas não os cubanos) Mais Médicos.

         A etiologia desse delito contra a democracia – que me pergunto como subsiste em um país que se crê regido pela Constituição Cidadã – nós a devemos a mestre Ives Gandra da Silva Martins, conforme lapidar artigo publicado na Folha de S. Paulo, a dezessete de fevereiro corrente. Sob o título “O neoescravagismo cubano”, ele põe a nu as odientas características dessa reintrodução, sob chancela oficial, da servidão humana no Brasil.

         A pergunta que fica no ar – por ora sem resposta – é a de por que tal inconstitucional abominação tem a existência permitida e aplicada. Há corporações formalmente encarregadas desse mister, e existem na Constituição e legislação brasileira  os meios e modos para varrer essa assombração da ditadura cubana no Brasil.

          Ou será que a vocação brasileira no regime petista de admiração sem fronteiras à ilha do Caribe  passe também a arremedar  a Venezuela et al., na sua recepção servil à  assistência técnica cubana ?   

 

(Fonte:  Folha de S. Paulo, The New  York Times, O Globo on-line)

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