segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXVI)


 

                                                    X X V I

 

  

                 Meu bom e grande amigo Pedro,

 


                 senti  certo laivo amargo na última correspondência. Não tinhas o hábito de tapar sol com peneira, e certas coisas carecem de ser ditas. Tua personalidade me leva, no entanto, a tê-las presente no quadro geral, e sem nada querer pôr debaixo do tapete, tampouco me anima o intento de hipertrofiá-las.  Se o fizesse, estaria cometendo um deslize muito maior do que as eventuais falhas acima referidas – e quem não as tem?     
        
                 Por isso, passemos adiante. Nesse teu quadro – que os anos pintaram com sua por vezes suave, por vezes brutal crueldade – não poderias senão sair com felicidade no caprichoso instantâneo do tempo. Não me refiro, decerto, aos fotógrafos do lambe-lambe, em que nascendo mais de década na minha frente – e todos nós somos educados e cedemos de bom grado a vez se se trata de nosso ingresso no túnel do tempo – terás visto  nos parques da tua infância.

                Entraste tarde no Instituto Rio Branco. Já advogavas quando passaste pelo temível crivo do vestibular. Por isso, quando fui ao Hotel Inglês (na verdade, uma das pensões na Rua do Catete), já relatei a impressão havida com os teus livros – e estavas apenas no começo da tua caminhada de leitor e, sobretudo, de estudioso.

                Depois, a película da mente me abre a imagem fugaz do Secretário Pedro com a sua escrivaninha atopetada de livros e maços, fazendo observações que o deus Cronos fez desaparecer. Mas o quadro, mesmo sem palavras, me fala bastante do Diplomata lotado na então prestigiosa Divisão Política do Itamaraty.

                Sem embargo, tua real entrada em cena no que seria o filme a estender-se por infinidade de seriados aconteceu no aeroporto de Quito. Nesse quadro, estava eu adentrando, sem saber da missa a metade.

               Nem sei por que falei de missa se o personagem sempre fora agnóstico. Hás de entender, contudo, a mensagem. No tarmac do aeroporto me recebias ao pé da escada do avião da Avianca que me trouxera, com a jovem esposa, de New York, com escala em Bogotá.  Não pretendo, porém, cansar-te com reprises do longo documentário de nossa amizade.

               Se bem que me haja inquietado um pouco com tua euforia, quando se confirmava pela respectiva presença a minha transferência da embaixada em Paris para a de São Francisco de Quito. Semelha óbvio que, sem o sabermos, ali se iniciava amizade que se estenderia por quarenta anos.
         
               Não ignoro – e como poderia? – que ao aventurar-me por plagas já percorridas, estou correndo sérios riscos, de que talvez o maior seja o de repetir impressões, ou, o que é quiçá mais grave, apresentar-se visões sucessivas e discrepantes.
 
               Meu desígnio, entretanto, não é o de maçar-te com iterações, à moda daqueles que a idade ou a sorte madrasta transforma em quase-sombras do Hades, a que parecem arremedar no confinamento dos asilos.

               Ao invés, quero tão só traçar-te as grandes linhas, como um pintor que se apressa, temeroso, sobretudo, do tempo que se escoa e não volta mais.
          
               Por vezes, nas páginas acima surge a personagem de gestos imprevistos e mal-controlados, fonte perene de intervenções pontuais do teu fiel escudeiro, o Rezende, por vezes encarnando Sancho Pança para o irrequieto Dom Quixote.

              Se este é o tempero que nos evoca os tipos inesquecíveis da revista Seleções do Reader Digest, será apenas uma vinheta que pouco mostrará de o que realmente foste em vida.

             Mais do que diplomata – em que, de resto, atuaste com proficiência e habilidade nos páramos quitenhos – te vejo como o apaixonado pelo estudo e leitor constante e inveterado. Na verdade, tua personalidade mora em palavra sem tradução exata em português, i.e. o  scholar.

             Onívoro em termos de saber, arrimaste sob o pretexto de que pretendias escrever sobre as origens do direito penal a necessidade de adquirir tudo a que esse tema se reportasse. Já escrevi a tal respeito, e não carece repetir. Dada a amplitude do assunto, se te obrigava a abrir muitas portas, também o passar dos anos te convenceu de sua inviabilidade. Já na década dos noventa, começaste a desenvolver a tua tese acerca da frase, para ti, sem sentido de Aristóteles.

             Em passagem minha por Petrópolis, me deste para ler o que seria o embrião do livro, com os dois primeiros capítulos da tua obra “CRÍTICA DO ANIMAL POLÍTICO  – O significado de uma expressão sem sentido”.

             Mais tarde, no meu período na Secretaria de Estado e à testa do ERERIO (o conjunto arquitetônico com endereço na Avenida Marechal Floriano, 196) fui acompanhando, com os fascículos que me passavas, a elaboração da monografia. Como já referido acima, ela ainda está pendente de publicação.

              Praticamente, não te sobrou tempo em vida para cuidar da edição. O Rezende tentou, mas sem sucesso.  O encargo passou para mim e até o presente ainda não foi concretizado – a despeito de que em uma editora esteve a ponto de fazê-lo – mas podes crer que a sua publicação não se acha longe de ser finalmente implementada.

              Nesta carta de hoje, gostaria sobretudo de bosquejar as razões pelas quais creio te assinalaste em vida. Homem do século XX, serias coerente com ele até com o respectivo limite. Dedicaste tua existência ao livro, que acumulaste não como mercadoria ou objeto de bibliofilia, mas como fonte de saber. Não recusavas o novo, desde que inserido no paradigma de Gutenberg. Acreditavas no estudo, e por isso encetavas a leitura de cada tomo pelo exame cuidadoso de suas fontes de referência. Nelas te abeberavas, antes de ir adiante, para obter uma primeira idéia da proposta e de suas possibilidades.

              Por isso, aprenderias muitas línguas (além do inglês e do francês, de que a fluência era então obrigatória para os diplomatas, lias em espanhol, italiano, alemão e holandês). Tinhas conhecimento mediano do latim. Do grego, não o desenvolveste como decerto o desejavas. Ainda por cima, te embrenhaste pelo acadiano, porque querias ler no original o Código de Hamurabi !

              O teu interesse em termos de conhecimento se estendia do direito a paleontologia. Acompanhavas de perto a pesquisa sobre o homo sapiens sapiens, e procuravas nas mesas de exposição da Leonardo da Vinci  (incontáveis eram as livrarias e os sebos que frequentavas) os tratados mais recentes sobre bioética. Assim, a par de filosofia e história (bastante jovem leste Farias Brito, o nosso único autêntico filósofo, porque proponente de um sistema original), além dos compêndios jurídicos, da política, sociologia e antropologia, biografia e daquilo que os alemães chamam de Zeitgeschichte (crônica contemporânea). Como esquecer a cara assustada de fregueses do Urich ao ver a capa do calhamaço de Joachin Fest sobre Hitler, com uma foto das reuniões pagãs do Terceiro Reich, que sobraçavas como a tua aquisição da jornada!
 
             Os basbaques levaram para casa a impressão errada. Não havia maior democrata que o meu amigo Pedro. Se eras partidário do pior regime que existe (com exceção de todos os demais, na definição de Churchill), respondias também ao imperativo de conhecer melhor o mundo, através da leitura e do estudo.

             Compravas para Thérèse – e havia um ulterior interesse em satisfazer a cara-metade, com os custosos volumes em papel bíblia da Pléiade que creio já ter mencionado, i.e. aplanar o caminho para a tua contínua aquisição de livros e mais livros, mas, no que te concernia, nunca de literatura! – aquilo que humoristicamente denominavas de “demagogias culturais”.

             Como amante da obra impressa dedicada ao estudo e à ciência – e a quem te posso comparar enquanto alguém que acaso haja como tu sacrificado a própria carreira no altar do Livro? – jamais encontrei pessoa que se identificasse tanto com a obra impressa como vetora de saber.

             Compreendo agora que, como o romântico Rollo, que chegara demasiado tarde em um mundo demasiado vetusto, não tinhas condições psicológicas e epistêmicas de identificar-te, mesmo que forma colateral, com o novo paradigma que irrompeu nas últimas décadas do século vinte. Não foi por preguiça, nem por reacionarismo que disseste a frase do Pontífice medieval: Non possumus !

 
             Meu velho e bom Amigo,

 
             Sempre foste um liberal (ainda que por vezes do século XIX), e estavas aberto aos ventos novos e as ideias que trazem. Colocavas, no entanto, uma humilde condição – que fossem vazadas no conduto do livro impresso – porque as facilidades do espaço digital te pareciam a expressão de um outro mundo, que chegara à tua porta demasiado tarde para ser administrado, penetrado e desenvolvido.

              Recordo-me do preço abusivo que te exigia a velha máquina Olivetti, com os seus papéis carbonos, as suas teclas gastas pelo tempo (na prática, o, e  e a) batiam na folha branca o mesmo caracter ! Jamais sequer consideraste a hipótese de abandonar o velho barco, para experimentar o novo. Por quê?  Pura e simplesmente por ser tarde demais.

            Dado o teu temperamento, não saiste de cena pé ante pé.  Preferiste esbravejar contra a nova ordem, que, sem combinar contigo, viera para pôr de cabeça para baixo a tua visão da realidade.

            Hoje, quando a tarde vai caindo e o crepúsculo, com o seu lusco-fusco se espraia, devo confessar-te que entendo cada vez melhor a tua luta. Nada a fazer quando o paradigma muda. Ele não costuma pedir licença, mas, de certo modo, vai infernizar-te o que te restava de vida.

 
           Não havia adepto mais entranhado no paradigma de Gutenberg. Enquanto muitos outros depararam o que acontecia com o olhar ausente dos filisteus, tu foste daqueles que acreditaste no singelo mensageiro do teu mundo – a página impressa dos compêndios! - e julgaste oportuno e válido juntar-te aos poucos que vociferavam e gesticulavam contra as bestas do apocalipse.                 
              

          Todavia – e não duvido que gostarás da imagem – viremos a página. Nas terras frias, quando a escuridão da noite começa a avançar, soa a hora de querer buscar o próprio refúgio, o lar respectivo, com a sua promessa de segurança e aconchego. Home, before dark[1] é título da filial memória biográfica sobre John Cheever, que é, a um tempo pressago, e reconfortante.

 
          Se me permites a franqueza, se te pudesse ainda dar um conselho – e tais propósitos, lá onde estás não mais têm guarida – recomendaria que de vez em quando, ou até muito de vez em quando, admitisse às tuas leituras os ademanes da ficção. Por inexistirem, eles se permitem posturas e pensamentos que a rigidez da ciência – em todos os seus avatares – barra a porta com a mansuetude do leão de chácara. Quiçá nestas linhas não apareça boa intenção mais fora do tempo. Sem dúvida, ela chega tarde demais. Mas a literatura – e a poesia! – são importantes por nos darem visão diferenciada.

 
         Não discuto a tua primeira opção. Preferiste continuar a vocação de estudioso, e para tanto deixaste a banda passar por muitas vezes na carrière[2]. Reservado, não comentaste a injustiça da aposentadoria antecipada, que então se aplicava aos conselheiros e ministros de segunda. Voltaste ao Brasil via New York, e se lá visitaste várias livrarias, inclusive um sebo na Broadway[3], também fechaste a tua conta na agência nova-iorquina do Banco do Brasil, que ficava em edifício da 5ª Avenida. Aqui me detenho sobre tais providências bancárias, em que não demonstraste o teu habitual bom senso.

          Antes de concluir, gostaria de escrever sobre um outro Pedro que conheci. Nos almoços que marcavam a tua passagem pelo Rio de Janeiro, depois de cumprido o ritual meteorológico que não dispensavas – e avalanches e desastres posteriores me mostraram à saciedade quão oportuna e apropriada era a tua prudência – vinhas para essas ocasiões em que o alimento mais substancioso estava em nossas discussões e nos temas e tópicos que trazias à baila. Do Bar Monteiro, tangidos pelas exalações dos bueiros, passamos para o Urich, que tinha o requinte do ar condicionado. Ali conversávamos de tudo e sobre todos, mas na mesa teríamos duas certezas: a tua voracidade – que entenderia depois quando nos tocou, depois da tua partida, almoçar na casa de Therezinha – e capacidade de congregar em bar ou restaurante um grupo de pessoas, que ali estavam atraídos pela tua aura de estudioso e pensador.

 
            A trinca – Pedro, Rezende e Mauro – tinha cadeira cativa, e havia convidados, e alguns de nomeada, que ali estavam precipuamente por tua causa. Sabias disso, mas agias sem sobranceria. O que interessava era a conversa e o que se discutia.

 
            Recordo-me que, às vésperas da eleição de 2002, havia uma febre na intelligentsia  quanto à momentosa oportunidade da eleição de Lula. Rezende, do PT igrejeiro, era um apóstolo insistente. Eu mesmo, deixara cair as antigas restrições. Tentávamos convencer a Pedro de sufragar o candidato da hora. Ele ouvia com atenção e a urbanidade de sempre, as instâncias dos amigos (dos quais Rezende era o mais veemente).  A reticência persistia, no entanto, e ela se fundava precipuamente na precária formação intelectual do candidato petista. Pedro achava que um candidato a presidente carece de curso superior. Na época, achávamos que a experiência do líder sindical e político mais do que supria essa lacuna. Na época. Com o benefício da visão posterior, eu não discordaria hoje do amigo Pedro. Ele estava certo.

 
            Assim como ele possuía a pertinácia de caçar um livro – armado até da astúcia de um xerife do velho Oeste, inexorável na perseguição da presa – e me assaltava com solicitações por vezes desmedidas, quando de minhas viagens a Europa, era também proverbial a sua atenção ao amigo, dando-lhe dicas preciosas, como na aquisição do Aristóteles de Ingemar Düring, na época só disponível na edição mexicana da Universidade do México. Às vezes, no entanto, os atalhos podiam reservar surpresas, como a deste maçudo volume, que veio sem um dos fascículos centrais, exatamente o que discutia a questão da existência ou não de um segundo livro da Poética do Estagirita  (que Umberto Eco, em seu best-seller mundial, O Nome da Rosa, aventa a existência em biblioteca de convento medieval). E não é que tu me indicaste, por correspondência para a Guatemala, onde eu estava em posto, a maneira de encontrar cópia do fascículo fujão ?

 
           Os adeuses são cerimônias por vezes dolorosas, mas também ensejam momentos em que nós pobres mortais conseguimos matizar a sensação da perda através de artifícios que não logram suportar uma visão mais detida e percuciente. E, sem embargo, à falta de outra coisa, manipulamos o que temos à mão, e não é que imaginamos o riso nervoso, os gestos (que preocupavam o Rezende), a alegria em estar e conversar com os amigos, tudo isso é bom rememorar – enquanto a noite não vem.

 
         Com forte abraço, mas sem o sempre temível tapa nas costas, do teu amigo velho



[1] Em casa, antes que escureça, de Susan Cheever, Boston, 1984.
[2] Carreira diplomática.
[3] Strand Bookstore, 828 Broadway & 12th Street East.

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