domingo, 3 de novembro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXIII)



 

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         Meu bom e mui prezado Amigo Pedro,

 

          o livrinho sobre o niilismo me ficou na mente, menos pela sua mensagem – por causa de teu entusiasmo não foste muito explícito – do que pela doutrina em si, e o quanto ela significava para ti.

          Ao ver-te o entusiasmo com que nos mostravas o manual, me ficou a impressão que reencontravas na modesta livraria a tua doutrina filosófica. No gesto alegre, radiante mesmo, acenavas para mim e Resende, como se dissesses: olhem, homens de pouca fé, o que encontrei na Loyola! E os teus olhos brilhavam com o júbilo não só do conhecimento, mas também do reencontro.

          Surgido na Rússia no século XIX, na estufa da autocracia dos czares, cresceu a planta do materialismo ateu e da contestação política extrema, de que sairiam os atentados contra as cabeças reinantes. Mais tarde, já no século XX outros movimentos lhe arrebatariam a iconoclastia política, enquanto mergulhava no ceticismo moral e, arrastado pela própria semântica, na falta de sentido da existência.

          Sendo ideologia dos mil e oitocentos, nascida na terra sáfara do absolutismo, a perplexidade por mim experimentada não durou muito. Excluída a versão política em que o simplismo tanatofílico não mais encontrava espaço, após fileira de cruzes reais, o niilismo terá sido o canteiro onde deitou raízes tanto o ceticismo dos teus heróis livrescos, quanto a difusa sensação sobre a falta de sentido da vida.

         Hoje, transcorrida mais de uma década do episódio no Edifício Sisal, em que empunhaste o que viste como cartilha de niilismo – que repontava nas coleções da Loyola, uma livraria católica – e nos agitaste, com funda satisfação, o exemplar da reexumada doutrina, tal qual fosse jocosa, quiçá um pouco irônica, mas sempre epifania de uma verdade, inda que oitocentista, hoje, repito, embrenhando-me nesse anacoluto, reconheço na cena dois largos traços: a alegria do reencontro e a vontade de partilhar a singela experiência com os dois amigos.

 
          Pedro, amigo velho,

 
          repensando-te a obra e o testemunho, ainda tenho dificuldade em situar-te. Quando te conheci realmente – não na visão do protomestre do Hotel Inglês, nem na passagem pela Divisão Política, com maços e livros espalhados na escrivaninha, como era do teu feitio – foi na casinhola que fazia às vezes de chancelaria da embaixada em São Francisco de Quito. Ali surgiria a amizade que indene cruzaria os decênios, enquanto trocávamos de viva voz ou por carta as figurinhas da nossa experiência. No que para mim era um álibi para explicar a amplitude da rede que lançavas às então livrarias do paradigma de Gutenberg sempre em busca de mais livros, me disseste que pretendias escrever tratado sobre as origens do direito penal. Por isso, estudaste acadiano e o Código de Hamurabi, por isso encomendaste obras sobre a mesopotâmia e  respectiva civilização, inclusive a que é reminiscente da ficção de Lima Barreto, com o Homem que sabia Javanês, e que funda um dos teus casos inesquecíveis, com a frustrada aquisição da maior autoridade no direito mesopotâmico, que, nas tuas perplexas mãos, te ficaria epistemicamente inacessível pela ineludível circunstância de estar grafada em tcheco... Sei que relevarás a repetição da historieta, pelo que me mostrou de tua capacidade de autoironia. O humor – que está fora dos tacanhos limites dos filisteus – sempre o levarias na algibeira, e com isso mostravas para o bom entendedor a tua grandeza.

           
         Mais tarde, colherias outros motes para justificar as tuas aquisições livrescas. Como estudioso do direito, da paleontologia, da filosofia, da história, da sociologia, e de tudo o mais que ao homem interessar possa, tinhas particular apreço por novos canais do saber – como, v.g., a bioética – mas havia limites para a marcha batida através das florestas do conhecimento.  

 
         Eras um leitor acima de tudo, um amante do livro, e por isso fugias do cinema e da televisão. Essa dedicação integral à leitura te levava a evitar eventuais idas aos teatros, mesmo que fossem para películas de grande sucesso entre os cinéfilos. Certa feita, tentei convencer-te a ver um filme sobre Alexandre o Grande, que pelas fumaças de reconstituição histórica despertara grande atenção. Cheguei mesmo a recorrer ao golpe baixo de reportar a presença de Aristóteles – como preceptor do jovem Alexandre – e o quanto me parecera devesse fazer exceção à sua draconiana regra de exclusão.

 
        Senti que hesitavas, pela visão que se entreabria. Aquele cântico de sereia – mesmo a despeito das palavras encorajadoras do Resende – não seria, ao fim e ao cabo, bastante para demover-te de uma resolução que de tão férrea, meu caro amigo, te cerrava um largo campo e não só da sétima arte.

 
        Pela qualidade de nossa tevê, a telinha não te seria ameaça de monta. Decerto, havia na tua casa uma televisão, mas era cativa de Therezinha.

 
        Assim, sempre foste um amante do livro, como vetor do conhecimento. Nunca foste um bibliófilo, um colecionador de edições raras e de exemplares bem encadernados. Creio que só por uma vez vacilaste – perdoa-me, Pedro, o neologismo semântico: vacilar pode hoje significar tropeçar, fraquejar – quando pagaste os olhos da cara por edição quinhentista do célebre editor veneziano Aldo Manuzio. Por uma que outra vez os tomos podiam estar muito bem encadernados, mas nesse caso a bela aparência seria apenas um ganho secundário, como no caso dos in-octavo de Pierre Bayle.

 
         Essa tua rejeição das invenções do século XX – dirão que o cinema dos irmãos Lumière é do XIX, com sua estação de trem, mas se tem de convir que antes de adentrarmos no desastroso século passado, ele se cingia a documentários como a coroação de Nicolau II e quejandos – não se limitava à Sétima Arte. Tinhas outra que se tirada do contexto poderia talvez depor contra ti, ou pelo menos fazer-te parecer como um humanista do século dezenove. Dada a tua negação, seria um virtual tabu entre nós.

 
          Por isso, creio mais oportuno deixá-lo para a próxima carta. Com o abraço e a saudade do teu Amigo,

 

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