quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Auto do Mensalão

                                   
       O que se vai aqui contar é a princípio estória pequena,  cosida por personagens anônimos, que vai crescendo e se transformando, até inchar-se às temidas dimensões da História que se diz grande.
      Teria, como o poeta, horror em referi-la, seja pelo vulto e feiúra, seja pelos incômodos  e pútridos ares que desprende.  Vestida dos andrajos de miseráveis, mas também  de ouropéis de cortesãos e muitos fios, fitas e adereços do maldito ouro, a besta chega aos alvos, fúlgidos espaços do mármore com que costumam adornar o paço os monarcas e seus sucessores.
        Esta criatura, em que se mesclam o precioso metal e mal-cheirosas exalações, manifesta estranha desenvoltura. El-Rei, surpreso pela insolente audácia, tentará escorraçá-la dos brancos, luzidios espaços do poder, para tanto recorrendo aos préstimos dos fidelíssimos cavaleiros, a par da habitual chusma de esbirros.
        Não será imediata, infelizmente, a própria conscientização de que a aparição do mostrengo não acontece por acaso, e que, por mais dedicado se apresente a sua confiada gente,  a malfadada criatura, se é repentina em adentrar os vedados espaços do supremo mando, não será de nada fácil desfazimento.
        O riso solto e a alegria  do soberano há de evaporar-se, ao lhe descreverem os íntimos e demais fâmulos, a sua hedionda e peçonhenta aparência. No primeiro burburinho, no atropelo em que as regras do protocolo são, por um instante, postas de lado, até surgirá um estouvado cujo estômago frio não aguentará reter o velho conto, acerca da importuna invasão de sacros espaços, pois não é que desde os tempos do rei Midas essa coisa inominável leva homens grandes e pequenos aos abismos da vã, insensata, mas insaciável e avassaladora cobiça !
        As cortinas se descerram em  palco lateral, a 14 de maio de 2005. Em vídeo encomendado pela revista VEJA, Maurício Medeiros, chefe de departamento dos correios – ‘somos três que trabalham fechado com Roberto Jefferson’- e como se fora a coisa mais natural do mundo, embolsa propina de três mil reais.
        Este indivíduo vai transformar-se no arauto do mensalão. Mais tarde, vagará pelos gabinetes à cata de emprego. Enquanto isso, as CPIs principiam a reunir-se, na nervosa azáfama da nascente crise.
        O Presidente do PTB e Deputado Federal navega na notoriedade de ser um conhecedor da borrasca a formar-se. Sentindo-se perdido, não trepida em tornar-se a efígie da vingança. Em entrevista à Folha de S.Paulo, pronuncia a palavra que carregará consigo o monstro turbulento com que até hoje lidam os poderes da república.
         Surge assim o mensalão, até então vocábulo do conhecimento de poucos, que se acreditavam favorecidos pela divindade. Em um Conselho de Ética repleto, Jefferson troneja que recebeu quatro milhões do PT não declarados à Justiça Eleitoral. José Dirceu, o Chefe da Casa Civil é quem toma conta do negócio.
        O suicida político Jefferson dá recado curto e grosso para Zé Dirceu: salta já daí, senão faz ‘réu um homem inocente, que é o presidente Lula. Sai daí Zé, sai daí rápido’.
         E o antes poderoso Ministro-Chefe da Casa Civil  - que chega a referir-se a ‘meu governo’, como se Lula lá estivesse para inaugurar exposições e quejandos – trata de escafeder-se, em cerimônia a dezesseis de junho,  passando o mando à sucessora Dilma Rousseff.
       No Congresso, anterior à Lei da Ficha Limpa, a saída era sempre a renúncia, se a possibilidade de dona Cassação fosse demasiado próxima. Três deputados foram cassados: José Dirceu (PT), Roberto Jefferson (PTB) e Pedro Correa (PP).  Quatro renúncias: Paulo Rocha (PT), José Borba (PMDB), Valdemar Costa Neto (PL) e Carlos Rodrigues, o bispo Rodrigues (PL).
       Por sua vez, se ouve falar sempre mais na figura do intermediador Marcos Valério. Empresário da área de propaganda, nas Alterosas, ele pensa progredir na vida tornando-se o responsável pela erva do mensalão.
      Nos meses de bonança, quando o mensalão era um segredo de poucos felizardos, as suas duas agências movimentam para lá de 25 milhões de reais, em 2003 e 2004.
      A húbris do controle da legislatura envolve a mais três dirigentes do antigo Partido dos Trabalhadores, hoje virtuais magnatas. A saber, o companheiro José Genoíno, presidente do P.T.,o diligente tesoureiro Delúbio Soares e, por fim, Silvio Pereira, Secretário-Geral do partido.
       O que dizer do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o grande ausente em toda esta movimentação petista ?
       Roberto Jefferson tem reiterado a inocência de Lula no esquemão. As atitude do presidente obedecem as angústias das diversas horas. Na Granja do Torto, após umas e outras, choraminga uma possível renúncia. Já a doze de agosto, ele se penitencia em rede nacional de tevê: “Não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir de desculpas”.
      Desculpas de quê ? De acordo com a tese do renomado causídico – e Ministro da Justiça – Márcio Thomaz Bastos houve delitos eleitorais e não  corrupção.  Na mesma faixa, no dia dezesseis de julho de 2005, Lula afirma que o PT não fez nada além do que “é feito sistematicamente” no Brasil, vale dizer o uso da ‘caixa dois’.
     Por sua vez, a esposa D. Marisa, recorda-se da ascendência italiana e com as mesuras do embaixador italiano se providencia com notável rapidez o passaporte italiano da primeira dama do Brasil.
     Na periferia, sentindo apertar-se o cerco das incursões no código penal, Marcos Valério engrossa a voz, movido quiçá pelo desejo de que o grande personagem possa ouvi-lo com toda a clareza. Após admitir os empréstimos ao PT, e dizer que o dinheiro era paga pagar despesas de campanha, descamba um pouco para o estridente: “Além do Dirceu, toda a cúpula do PT sabia”. E, em seguida, ameaça “Vou contar tudo o que sei, mas não de uma vez. Vou contar devagarinho e vou fazer um estrago, um barulhão.”
     As menções, obliquas ou não,  se repetem no futuro, como agora, em que o juízo bate às portas. Encontros com o presidente são insinuados, as ameaças se tornam com o tempo mais encorpadas, a pontos de serem confundidas com a chantagem.
    Lula será decerto o grande ausente neste juízo. Em águas turbulentas, ele se manteve à tona, e com a colaboração do PSDB, que não quis  ou não pôde, assestar-lhe golpes mais profundos, Sua Excelência logrou voltar, com céu sereno, para as aras do Planalto.
     Ter-se-á ele encontrado com o trêfego e ambicioso Marcos Valério, é uma pergunta que paira no ar, exaurida pela obstinada falta de resposta. É de recordar-se, a propósito, o comportamento prudente do Presidente Dwight Eisenhower, em operações de destino incerto, e de meios duvidosos, sobretudo se colhidas pelos holofotes impiedosos de um possível ulterior malogro. Tanto no Irã de Mossadegh, quanto na Guatemala de Jacobo Arbenz, o presidente não participa das reuniões dos irmãos Dulles (Allen na CIA e John Foster,  no Departamento de Estado), cingindo-se a uma que outra indagação, em geral colhida no corredor adjunto à sala onde se organizava as operações especiais para a derrubada de tais líderes, havidos como inimigos dos interesses de Tio Sam.
        Se Dwight D. Eisenhower era o motor de tais empreitadas, o jeito de omisso (ou ineficaz) não o adotava à toa. O que dizer de Lula da Silva, mais histriônico e falastrão do que o general americano, comandante do Dia D, e que a nação agradecida elegera presidente em 1952 ?
       Lula decerto não teve conhecimento das lições ministradas pelo Presidente americano. Tem alternado falas e silêncio, e nos últimos tempos, por motivos insondáveis, se tem metidos em encontros fadados tanto a despertar suspicácias, quanto a levantar inúteis polêmicas.
       Neste auto do mensalão, que hoje se abre no Supremo Tribunal Federal, em clima carregado de incerteza e ansiedade, o Presidente Lula da Silva, malgrado todas as suas declarações, choros e gestos, é o grande mudo, aquele de quem se sente a presença por toda a parte, no salão do Palácio da Justiça.
      Como todo processo, as dúvidas abundam. As certezas, em geral, só se encontram nas gélidas lápides dos cemitérios. Aqui juízes, advogados, réus, público et al. palmilham as sinuosas veredas dos escândalos pregressos. As convicções estão talhadas nas personas, pois quantas caras terão esses altos personagens que o olhar humano, por mais que perscruste, se animará a determinar ?
     Os largos panos de cena vão caindo, e algumas luzes se entreveem. Mas a progressão é lenta, sobretudo para quem seja havido como a personificação da ausência e do ansiado silêncio, que costuma vir com o trânsito em julgado.
     A catarse dos espectadores não estará disponível nas sessões infindáveis do processo que tanto fizeram demorar. Será porventura acessível, quando todos – ou quase todos – tiverem expresso a respectiva verdade, e os doutos juízes lograrão compor  o que o vulgo denominará a justiça do mensalão ?




( Fontes:  Folha de S. Paulo, Veja, O Globo )         


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