segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Notícias da Anvisa na Terra do Faz-de-Conta


                            
    A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é uma das entidades ditas reguladoras, que fazem parte da vitrine neo-liberal do governo FHC. Deveriam ser autônomas, e velar pelo interesse do cidadão nos respectivos campos de atividade. Por isso, os seus dirigentes, teoricamente selecionados com base no conhecimento específico nas áreas competentes, teriam mandatos determinados e seriam independentes de injunções políticas.
    Com a assunção ao poder por Lula da Silva, a autonomia das aludidas agências constituía verdadeiro anátema, e para tanto foram tomadas as providências para que esses órgãos ficassem sob a asa política do governo petista, podendo ser inclusive alocadas aos partidos da base de apoio, tornando-se na prática cabides de emprego, preenchidos seja pelo PT, seja pelos outros partícipes do inchado ministério e de seus agregados.
    Sob a nova filosofia, de estampo fisiológico, a ênfase para inglês ver seria no conhecimento técnico, e nos consequentes títulos de notória experiência, mas na realidade, o feliz indicado deveria ter muito presente a fidelidade  para a agremiação política que o patrocinava, assim como, e a fortiori para as determinações do governo petista. Não me atreveria a dizer que a especialização no ramo não fosse considerada, mas tais qualificações deveriam ser vistas à luz do implícito  pressuposto de que a sua formal autonomia careceria de ter presente a política do PT, como fonte da autoridade, e ancilarmente das demais agremiações do amplo seio da base parlamentar.
     Este intróito será decerto veementemente contestado pelo lulo-petismo, e de sua presente donatária, mas suspeito que, malgrado o vigoroso bater no tórax para sublinhar discordância, lá nos recessos da mente – de que a moderna tecnologia inda não descobriu maneira de desvendar – os ilustres diretores das colendas agências reguladoras guardarão in pectore (portanto a sete chaves) a respectiva conscientização de que a sua autonomia não deve ser vista exageradamente. Como nas democracias socialistas de outrora ela se acha deveras adjetivada. Se o diretor almeja naquele puleiro vida longa, é aconselhável muito juízo político.
     Feito este prefácio – que está aberto às previsíveis chuvas e trovoadas de categóricos desmentidos – passemos a um caso específico, em que, ao invés de pautar-se pela prudente omissão, a agência em tela escolhe um ativismo inútil, inoportuno e não-inteligente. Quanto a esse último atributo, me valho da ilustradora nota-editorial de Hélio Schwartsman, ‘Viés Burocrático’, da Folha de S. Paulo de onze de agosto corrente.
     As exigências da Anvisa – cuja necessidade ninguém discute nos medicamentos ditos de tarja-preta – têm, no entanto, aumentado exponencialmente a faina burocrática de farmácias e drogarias. Não é crível que os dedicados funcionários da Anvisa possam perlustrar todo o papelório exigido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Para quem procure aquilatar o excesso nos requisitos burocráticos, será inevitável duas  deduções: (a) estão na linha infernal da burocracia que nos legaram os nossos maiores lusitanos; e (b) o seu volume, com as demandas atinentes para os empregados das farmácias, é tal que já tem o seu lugar assegurado no anais do papelório. Por desobedecer à regra primeira, que é a do bom senso, torna-se  labuta, que reflete apenas uma exigência descabida, na prática inviável pelo seu descomunal tamanho.
      Desafortunadamente, a sede burocrática da Anvisa semelha insaciável. A lei prevê – mas por um residual bom senso funcional ainda foi implementado – a seguinte exigência, que transcrevo do texto de Schwartsman: “obrigar os consumidores a apresentarem receita médica para comprar nas farmacias a maioria das classes de medicamentos, incluindo anticoncepcionais, anti-inflamatórios e anti-hipertensivos.”
     Parece simples, à primeira vista, não é ? No entanto, esse requisito obrigatório não implicaria apenas em maior atividade dos empregados das farmácias. Representaria para os usuários desse tipo de remédio – e aqui me reporto ao segmento dos idosos, que mais carecem de tais medicamentos, em geral de uso cotidiano – não uma simples maçada, mas um adicional de diuturna crueldade burocrática, pois os obrigaria a visitas frequentes aos médicos.
     Por outro lado, forçaria a muitos deles a terem uma provisão extra de remédios, para prevenir as eventualidades infelizmente muito comuns, de que a necessidade do uso respectivo desses remédios caia nos fins de semana e em feriados. Neles, é bom que se lembre aos zelosos burocratas do lulo-petismo, as farmácias estão sempre abertas para as rendosas emergências, porém não os senhores médicos.
    Recordo-me que nos inícios do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma ativista autoridade do INPS encasquetou-se de exigir a presença física dos idosos nas filas desse primoroso Instituto cuja avaliação pela sociedade surpreende. O propósito seria que septuagenários, octogenários, nonagenários se apresentassem para provar que estão vivos ! Sabedor da descabida imposição, Lula mandou que a autoridade voltasse atrás. 
    Seria o caso de imitar esta justa e humana decisão. A Anvisa tem de enfrentar muitos problemas, na sua escala de imprescindível vigilância sanitária. Não vamos confundir deveres urgentes, com os sucedâneos de um ativismo burocrático, burro e supérfluo.   Ao invés de pôr nas costas de pessoas menos jovens mais uma carga inútil – além dos achaques e demais insídias da idade – vamos evitar esta sobrecarga burocrática.  Se aplicada,  equivaleria  a escravizar os idosos – e os menos idosos – a terem barrado na prática o seu acesso a remédios indispensáveis – e cuja ingestão decorre de prescrições médicas.
     A burocracia pode matar, seja pela indiferença, seja pela profusão de exigências.
Foucault nos fala do poder dos burocratas, pequenos e grandes, e na capacidade de atenazar os infelizes que têm de servir-se dos guichês da mediocridade investida de migalhas de autoridade.
     A batalha contra a burocracia –  os cartórios estão aí para evidenciar o fracasso da sociedade – é luta inglória. Pelo menos, cuidemos de não torná-la ainda mais cruel e mesquinha. Basta-nos o front atual. Não acrescentemos a quota de infelicidade  de uma camada da população que faria jus a um pouco mais de atenção e sobretudo respeito.




(Fonte:  Folha de S. Paulo)  

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