sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Diplomacia Presidencial ?


                            
        O jornalista Elio Gaspari se reporta à crise larvar com o Paraguai no artigo publicado na Folha da quarta-feira 15 de agosto, sob o título ‘Itaipu é uma encrenca fabricada’. Quanto à matéria, este blog se ocupara em ‘Demasiadas Concessões em Itaipu’, a 29/07/2009, e ‘O Mercosul e o Subdesenvolvimento’, a 4/07/2012, da assim chamada diplomacia presidencial.
       Pressionado por Fernando Lugo em 2009, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se embrenhara em um tema complexo das relações brasilo-paraguaias. Habituado por sua formação às negociações sindicais, terá julgado factível ‘resolver’ o problema no apressado compasso dos entendimentos de cúpula, sob a doce ilusão de que a questão é política.
      Nesse sentido, dada a importância do assunto, que melhor maneira de solucioná-la senão através da discussão direta no mais alto nível, sem tardanças burocráticas ?
     Ledo engano o de Lula da Silva, pois estas questões são, na maioria dos casos, de muita complexidade. Querer resolvê-las em compasso rápido, por fórmulas aparentemente simples, sem conhecer todas as implicações das teses em jogo, é receita segura de desastres futuros.
     Desde o tempo do Império, e mesmo na colônia, se lograra resguardar os interesses da pátria brasileira, através do cuidadoso estudo dos antecedentes e dos maços respectivos. Este procedimento é o usual das chancelarias diplomáticas, de que uma das funções precípuas consiste no exame  aturado dos eventuais contenciosos, de suas múltiplas implicâncias, inclusive no terreno, e dos argumentos que embasam a posição nacional.
    O próprio secretário de D. João V, o precursor da diplomacia da terra brasileira, Alexandre de Gusmão, servindo-se das pesquisas dos chamados ‘padres matemáticos’ e o consequente mapeamento cartográfico,dos dados levantados por exploradores e bandeirantes, e, muita vez, de precisões obtidas por missões ad hoc mandava instruções pormenorizadas ao negociador oficial da causa portuguesa na Conferência de Madri, que culminou com a aprovação pelos respectivos soberanos e a assinatura, em janeiro de 1750,  do Tratado de Madri.
    O negociador da parte espanhola fora D. José de Carvajal y Lancaster, Ministro do Rei D. Fernando VI, e presidente do Conselho das Indias. Impressionado pela  precisão técnica da argumentação  da Coroa portuguesa, manifestara à contraparte lusa  assombro pela sua qualidade, buscando informar-se da identidade de quem demonstrava tal domínio da matéria versada em seus diversos aspectos.    
      Não foi por uma penada, portanto, que o Tratado de Madri forneceria as grandes linhas do Brasil. A parte portuguesa se preparara – e por mais de um século – com os instrumentos rudimentares da época para reproduzir nos respectivos mapas – que eram guardados a sete chaves, pois verdadeiramente o conhecimento ali gravado poderia implicar em maior poder para a Coroa portuguesa.
      A sucessão de cartas preparadas para a Coroa eram guardadas com especiais cuidados. Pela sua confidencialidade, o acesso a elas era restrito àqueles responsáveis diretos pelas questões afetas a poucos servidores, consoante as determinações de el-Rei, e o eventual manuseio por pessoas não-autorizadas implicava em penalidades severas.  Mutatis mutandis, os velhos mapas estavam sujeitos a medidas de segurança, como hoje se aplica, v.g., a sofisticados equipamentos de alta tecnologia militar.
       A Coroa portuguesa, um país pequeno e de parcos recursos naturais, soubera, através do engenho do Infante D. Henrique e de seus sucessores, estender-se muito além dos seus acanhados limites no extremo ocidente da península ibérica. A manutenção dos domínios coloniais, face à cobiça das grandes potências da época, já dava muitas preocupações ao rei D. João III. Nunca o princípio de frei Roger Bacon – conhecimento é poder – parecia impor-se de forma tão ilustrativa quanto na utilização pelos súditos lusos de técnicas e instrumentos que proporcionaram ao reino e por muitas décadas vantagens comparativas sobre Castela.
         Nesse contexto,  através da ciência dos mapas, os servidores de Sua Majestade – e por conseguinte Alexandre de Gusmão, sabiam exatamente sobre que estavam negociando. Já os espanhóis  dispunham dos acidentes geográficos da América do Sul uma noção que em termos de precisão cartográfica não se comparava com a dos portugueses e brasileiros empenhados em tal missão.
       Se me permiti estender-me a respeito do tema, foi justamente para sublinhar não ter sido por acaso que a chancelaria imperial soube cuidar dos interesses da pátria brasileira. Por isso, pela tradição do conhecimento, pelo estudo das questões de fronteira, se assegurou através do tempo uma ciência aprofundada, de que se encarregaram gerações de diplomatas e de geógrafos, de modo que os marcos de nossas extensas fronteiras fossem colocados nas bases do princípio do uti possidetis. Para tanto, os velhos mapas, os acordos estabelecidos com os países vizinhos, ou confirmaram a posse inconteste dos espaços fronteiriços, ou ensejaram a base documental para que Rio Branco prevalecesse nos arbitramentos. Rio Branco não teria colhido os louros da pátria agradecida se não tivesse sido precedido, na Colônia e no Império, pelo trabalho e o estudo aprofundado de tantos brasileiros ilustres, como Alexandre de Gusmão e Duarte da Ponte Ribeiro.
      Se a ênfase no conhecimento e o viés técnico e especializado muito contribuíu para o prestígio da chancelaria brasileira (e, no passado colonial, a portuguesa) junto a nossos irmãos ibero-americanos, tal se deve outrossim aos resultados aparentes de tal método de administração das questões politico-diplomáticas. Os nossos governantes sempre tiveram o bom senso e o necessário equilíbrio de ter presentes as informações e recomendações baseadas no estudo documental. Muita vez, essa postura não foi imitada por muitos dos países nossos vizinhos e co-lindeiros. Compreende-se que uma chancelaria estará em melhores condições de defender os legítimos interesses pátrios  seguindo uma gestão coerente das respectivas questões, com o necessário e indispensável conhecimento técnico – o que envolve, de resto, o domínio das teses e posições eventualmente sustentadas pela outra parte, e de todas as respectivas implicações.
     Com o advento do lulo-petismo, em termos de relações diplomáticas, ao invés do interesse de estado – que se distingue das oscilações político-partidárias, e que possibilitou a transição entre império e república, sem perder de vista a precedência do Estado sobre os eventuais regimes – se observa um suposto novo assessor na mesa de negociações. A sua argumentação – e  inevitáveis consequências – hão de ter resultados diversos se, por obra da circunstância, defender um outro interesse que o de Estado. Concessões apressadas, que se separam de uma longa linha de coerente defesa do interesse nacional, podem render afagos da contraparte que logrou baralhar as cartas, e apresentar reivindicações ideológicas sob as diáfanas vestes de movimentos político-partidários. As concessões de Lula a Fernando Lugo (V. blog de 2009)  não têm nada a ver com o interesse nacional. Se acaso confundirmos estados e partidos, estaremos misturando fatores diversos, e as consequências de tais experimentos são construções sem fundamentos sérios e duráveis.
      O segundo episódio de abandono explícito da normativa secular – que até o presente fora bem recebida, com os costumeiros elogios ao Itamaraty – ocorreu sob a presidência de Dilma Rousseff. Com a crise do Mercosul já bastante adiantada, em uma reunião dita de cúpula, a Presidente do Brasil, com a característica desenvoltura, limitou os participantes a apenas os chefes de estado – no caso Cristina de Kirchner, pela Argentina, e José Mujica, pelo Uruguai – excluindo outras autoridades, inclusive os ministros das relações exteriores. Perguntada do porquê, disse que bastavam os presidentes, eis que a reunião era política.
     Volta a pobre política a ter sob os ombros a pesada responsabilidade da última palavra. Em verdade existe uma preocupante confusão quanto a esse conceito. Se dissesse a presidenta que a reunião era humana, faria tanto sentido quanto explicar por injunção de poder a causa eficiente da barração das demais altas autoridades. Como o ar que se respira, a política participa da diplomacia, como de tantas outras atividades. Na sua ânsia de evitar que eventuais indecisos como Mujica pudessem valer-se daquele copo de laranjada que é a consulta às fontes e a seu conhecimento, a Presidente Dilma Rousseff logrou impor a própria vontade. Ao preparar-se uma confecção se deve ter presente os ingredientes devidos, e não utilizar aqueles que podem ter molestos resultados.  
      Cabe aqui um breve resumo para que se tenha ideia da atual situação do Mercosul e das relações brasilo-paraguaias.     
      Depois da suspensão do Paraguai – o primeiro ato da crise do Mercosul – realizada de afogadilho, sem sopesar todas as implicações da decisão imposta a um membro menor do que é ainda  uma organização in fieri – se sucedeu a oportunista admissão da Venezuela.
       Impedida até o presente pela recusa do parlamento paraguaio em aprová-la, Dilma Rousseff e Cristina Kirchner julgaram apropriado aproveitar-se de um trauma causado a uma das partes constituintes de organização internacional para abrir as portas do Mercosul à solicitante Venezuela. Procedendo desta forma, vincou-se com maior força, o ‘castigo’ imposto ao Paraguai.
        O atual Presidente do Paraguai, Federico Franco, respondeu em recente entrevista de que o país utilizará toda a energia de Itaipu a que tem direito (50%). Embora tal ameaça não possa concretizar-se em futuro próximo, pela absoluta falta de condições de realizá-la (o direito é formal,  mas na verdade o Paraguai utiliza entre cinco e oito por cento, vendendo o resto ao Brasil).   
       Impensável antes da suspensão de um e do ingresso de outro país, por força da política  da Presidente, o atual estado das relações  pode trazer embaraços futuros  com o nosso vizinho. Não é decerto boa política criar um diferendo onde antes não existia. Nem tampouco ensejar a entrada de outros convivas, a que nunca foi intenção dos governos brasileiros abrir as portas. Tudo isso sublinha a necessidade da restauração da boa política diplomática.
        O Paraguai há de pensar que está sendo tratado de maneira de todo diversa de a que antes presidira às nossas relações, nos séculos XX e XXI. Se resolvemos construir a usina de Itaipu em condomínio com o Paraguai – e há muitas razões (energéticas e diplomáticas) que o justificam – seria de toda conveniência manter-se o espírito de entendimento e fraternidade que norteara tais relações até época recentíssima. Senão, como diria um antigo ministro, seria bom apertar o cinto, Senhora Presidente, porque aí vem turbulência.
 



( Fonte: Apud obras de Jaime Cortesão e notadamente ‘Alexandre de Gusmão e o Tratado  de Madri – Parte I – Tomo II (1735-1755, Editora Nacional).     

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