sábado, 4 de agosto de 2012

Até a última gota de sangue ... rebelde

                        
          Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas não têm valor coercitivo, como as do Conselho de Segurança.  Se as decisões tomadas pela maioria dos membros das Nações Unidas fossem para valer, diversos problemas que hoje semelham irresolvíveis, como, v.g. a questão do povo palestino, estariam senão resolvidos, muito melhor encaminhados do que no presente.
         Não é à toa que me reporto ao contencioso entre a Palestina e Israel. O seu apodrecimento se deve em grande parte à utilização do veto, não só pelas grandes potências (Estados Unidos, República Popular da China e a Federação Russa), mas igualmente por duas outras nações que há muito perderam o status de grande potência, i.e., Reino Unido e França.
         Por isso, esse procrusteano instrumento, um resquício do imediato pós-II Guerra Mundial – com que os Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt. e a URSS de Jozef Stalin  podiam controlar na prática a assembleia das Nações Unidas (com que afastavam as assombrações da impotente Liga das Nações) – representa, na verdade, um fóssil no século XXI.
        A presente trindade dominante – Washington, Beijing e Moscou – se serve à vontade, quando o respectivo uso lhe apraz, desta arma processual que é um arcaísmo a recordar-nos, no despautério do próprio conceito, um seu longínquo antepassado , vale dizer o direito de veto de cada membro singular do Parlamento Polonês.
        Os que estudaram sabem no que deu o emprego desse estapafúrdio direito para a nação polonesa. Refém de membros porventura corrompidos, o antigo poderoso reino da Polônia acabou distribuído, em cínicas partilhas sucessivas, entre as  vizinhas potências da, Rússia, Áustria e o novel reino da Prússia.
       Fala-se muito em reforma das Nações Unidas. A nossa diplomacia persegue há muitos anos esse fogo fátuo de um lugar permanente no Conselho de Segurança. Por causa dessa cadeira, se espalharam missões por países sem qualquer relevância para os interesses do Brasil, excluído o mágico voto na Assembleia-Geral, quando chegasse àquela imensa aula uma resolução nesse sentido.
      Em uma reforma séria das Nações Unidas, o abstruso privilégio do veto carece de revisão. Não faz sentido que no mundo plural em que vivemos, com instituições supranacionais espalhadas por tantas capitais, se continue tolerando  esse arcaismo anti-democrático. Poderíamos até entendê-lo em um mundo que saía de conflagração geral por fortuna vitorioso, lograda a aniquilação do Reich de Hitler e a submissão pelo irrespondível argumento da bomba atômica do Império do Sol Nascente,  e de sua camarilha militarista. 
      Hoje em dia o veto é o simbolo de um anacronismo que não quer sair de cena.
Absurdo e ridículo, o veto continua, no entanto, com saúde e atrevimento para com um único sufrágio  inviabilizar resoluções originadas pelo trabalho cuidadoso e a necessária equidistância diplomática.
     Não é só Washington que paga no presente a impotência de encaminhar a situação na Síria para solução abrangente e satisfatória. Outros detentores desse resquício de um mundo ultrapassado, que recende a ouropéis e punhos de renda, enfrentariam igual dificuldade em valer-se com demasiado ímpeto das lanças que desejariam arremessar sobre o possuidor desta incongrua e vetusta prerrogativa. Assim, com as margens do poder respectivo, todos os membros permanentes dispõem de uma espécie de chasse gardée [1], que manipulam para atender os próprios clientes.
       Não é, portanto, único o privilégio dos Estados Unidos de curvar-se a todas as exigências de seu estado clientelar, o que, na prática, só tem agravado o problema da Palestina e de seu sofrido Povo. O desrespeito aos direitos palestinos é, lamento dizê-lo, a mãe de todos os terrorismos.
       Isto posto, a resolução da AGNU que condena a repressão à insurgência pelo regime de Bashar al-Assad é mais um pedra, não para lapidar um ou uma infeliz, mas a tarda contribuição para fazer cessar essa estúpida guerra movida pelo tirano alauíta contra a grande maioria do povo sírio.
       Aumentam as defecções, cresce a confraternização de soldados e destacamentos do exército de al-Assad com a causa rebelde. Por toda a parte, não carece saber examinar as entranhas de pássaros e quejandos para pronunciar o desfazimento, a lenta mas inexorável ruína da ditadura dos Assad.
       Se a lista dos países que votaram a favor da Resolução já é um retrato acabado da insustentabilidade do atual governo sírio (133 incluindo até o Brasil), o punhado de sufrágios em contra escancara o isolamento da ditadura, e o quanto aparecem garrafais nas paredes da história os sinais do inevitável descalabro, assim como aparecera diante do rei Baltazar  o Menetekel que lhe prenunciou a a próxima queda.
       O elenco dos doze contrários reúne a Rússia de Putin, a China e o Irã dos ayatollahs. Mas o primoroso grupo inclui também Coréia do Norte, Bielo-Rússia, Cuba, Mianmar, Zimbabue, e o grupelho da Alba de Hugo Chávez (Venezuela, Nicarágua, Cuba e Bolívia –  Rafael Correa, do Equador, preferiu abster-se).
       A Resolução da Assembleia Geral teve outra característica inusitada: atribuiu a crise à inoperância do Conselho de Segurança.
      A paralisia de uma intervenção supra-nacional  foi marcada pela renúncia de Kofi Annan. Por fim, ao cabo de muitas viagens entre Damasco e Moscou, o ex-Secretário Geral das Nações Unidos se deu conta do patético malogro de seu documento, que vem agregar-se na bagagem que não deseja declarar nas alfândegas da história. Na verdade,  tal construção foi sabotada desde o momento em que a tinta da desdentada resolução do Conselho terá secado nos papéis desse vazio e grandiloquente Plano Annan, que Assad ignorou e Putin ridiculizou.
      A tragédia da Síria ainda não terminou. O déspota Bashar al-Assad se recusa a tirar a ilação do amplo repúdio que colhe do povo sírio.
      Será que a obstinação de V. Putin, o ex-coronel da KGB, traumatizado pela queda da República Democrática Alemã, e da sua sub-sede em Dresden, há de continuar nessa cada vez mais solitária empresa, em tão pouco recomendável companhia, enquanto o ditador Bashar al-Assad jura aferrar-se ao poder até a última gota de sangue da coalizão de povo rebelde e exército livre da Síria ?

( Fonte: Folha de S.Paulo)
[1] direito exclusivo de caça

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