domingo, 30 de novembro de 2014

Colcha de Retalhos B 44

                             

A Época da Ambição

 

         O livro de Evan Osnos é o resultado de oito anos de vida e reportagem na China. O seu título “Idade da Ambição – atrás da Fortuna, Verdade, e Fé na Nova China” pode dar ao leitor a idéia de que se trata de mais um manual sobre as últimas décadas do experimento China.

        A princípio se tem a impressão de visão um tanto pedestre da China pós-Tiananmen. Mas a narrativa cresce, levada pela amplitude da observação de Osnos, e o leitor vai aos poucos penetrando no dia-a-dia chinês, conduzido pelo conhecimento do  do idioma pelo autor, e da consequente possibilidade de acesso a espaços que em geral estão cerrados ou inacessíveis ao observador estrangeiro que desconheça a língua, tanto falada quanto escrita, do Império do Meio (essa expressão não é mencionada pelo autor).

        Mas por abrir mais portas que se poderia esperar de correspondente ocidental, a visão se vai esgueirando por espaços diversos, e o quebra-cabeças irá crescendo, com imagens que nos aproximam muito mais do estranho regime chinês, em que a contestação explode na internet, dentro de espaços demarcados, mas com a pimenta de oposicionismo que vai até o limite do abismo, o qual como todo báratro só pode ser atravessado uma vez, até que o contestador diga o que não pode ser dito.

        Há vários tipos de dissidente na China, a começar pelos nacionalistas de direita Han Han e Tang Jie, passando pela jornalista Hu Shuli que trafega nas aléias do mercado e das grandes empresas, e o mais vilipendiado deles será Liu Xiaobo, o único Prêmio Nobel do mundo de hoje (pois os nazistas já tinham criado esse espécimen com Carl von Ossietzky) presidiário na afastada Penitenciária de Jinzhou, na província de Liaoning. Sua esposa, Liu Xia, pôde visita-lo, a dois dias da cadeira vazia em Oslo, e por isso está em prisão domiciliar desde então. Ela teve cortado o telefone e a internet, e a única pessoa autorizada a contactá-la seria sua mãe.

         O julgamento de Liu Xiaobo também foi nazista na sua brevidade. Liu teve direito a catorze minutos de intervenção, eis que o juiz lhe cortou a fala pelo meio, sob o estranho argumento de que o promotor só utilizara catorze minutos (tal despautério nunca fora antes empregado). O discurso de Liu termina com uma frase que pode ser pressaga: ‘Espero que eu seja a última vítima nos longos anais da China de tratar palavras como crimes’.

         O que assustou o regime foi a simplicidade da proposta constitucional de Liu Xiaobo e sua conexão com a Carta 88, de Havel, e a revolução de veludo.

         Condenado a onze anos, em condições duras – pelo que se sabe, as prisões chinesas não diferem muito das dos cárceres brasileiros, consoante referidas pela famosa observação do Ministro da Justiça do Brasil, José Eduardo Cardozo – a periculosidade de Liu para o regime se reflete na singeleza do sistema constitucional proposto.

         Como toda ditadura, tem pés de barro. O temor que evidenciou com a Primavera Árabe aflora o ridículo, que está transcrito nas paranoicas instruções dos censores para os correspondentes em Beijing (chegaram ao ponto de proibir a venda de jasmim, por sua conexão com o herói Buazizi e a revolução tunisiana).

         Osnos  nos proporciona ótimas narrativas, por vezes até hilariantes, para reportar a criatividade do internauta, forçado a navegar entre tantos Silas e Caribdes da Censura Oficial. É  existência atribulada a do censor chinês, pela sua luta inglória contra os buscapés da sátira dos dissidentes chineses. O cinismo do oficialismo não persegue apenas ao pintor Ai Weiwei, mas também às miríades de dissidentes como o advogado cego Chen Guangcheng. O seu principal ‘crime’ era o de defender os lavradores contra os abusos dos potentados locais.

        Sua incrível fuga – sendo cego e cercado por  esquema hostil – diz muito sobre a força do próprio ego, na batalha contra um esquema de repressão que no seu caso – por  cálculo aproximativo de Chen implicava no gasto do equivalente a milhões de dólares – acabou por conduzi-lo ao asilo em Consulado americano, e a posterior travessia para os Estados Unidos, em New York.

        Como há de intuir o leitor, é muito interessante e variada a sua descrição da China atual. Outro ponto relevante, está na amplitude da corrupção no Império do Meio, que do Partido para baixo atinge todas as camadas da população. A esse respeito, é importante recordar que Zhao Ziyang[1] punha muita fé – quiçá demasiada – na importância da democracia para combater os ‘mal feitos’. O Secretário-Geral do Partido contava com a liberalização para inviabilizar ou dificultar a corrupção, como aquela que determinaria o desastre do trem-bala D301, em viagem inaugural de Beijing para Fuzhou. Por causa da corrupção do Ministro  Liu Zhijun, e de inúmeros erros na construção do sistema, o sinistro em Wenzhou causou a morte de 40 pessoas e o ferimento de 192.

         As esperanças quanto à liberalização no que toca a Xi Jinping, o atual Presidente, já se dissiparam, dado o seu viés repressivo na mesma linha do antecessor Hu Jintao, como nas mádidas folhas sob o sol matinal. 

         Há, no entanto, na narrativa em apreço omissões, como o tratamento superficial e, mesmo, incidental dos conflitos de origem colonial na China – a sublevação da etnia uighur, na província do extremo ocidental de Xinjiang, e a revolta no Tibet, assim como a influência do Dalai Lama.

          A maior omissão estaria talvez na falta de qualquer menção ao problema da poluição na China. A única referência encontrada está no umidificador que Evan Osnos resolve deixar para trás, após a movimentada estada de oito anos, até 2013, quando enfim regressa aos Estados Unidos, com a esposa Sarabeth...

 

Abandono da   Lei da Responsabilidade Fiscal ?

 

          A Pedra angular da abóbada na luta contra a inflação e a práticas governamentais que a tornam triste realidade está na Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF). Não foi à toa que o PT empregou todos os meios possíveis para a descarrilar, ao ensejo de sua aprovação pelo Congresso de então e a sanção presidencial. Até ao Supremo foram, na sua descabelada tentativa de inviabilizá-la.

          Hoje no Governo há uma luta surda contra a LRF, que, como se fora objetivo de guerrilha, se manifesta, seja aberta, seja com o benefício da sombra.  Um dos objetivos principais dessa lei, é o de evitar o empreguismo desenfreado, muita vez utilizado no passado como meio de propulsar administrações claudicantes. Dessarte, se aumenta a carga com os empregos correntes – prática, de resto, bastante utilizada pelo petismo federal, já com Lula da Silva – com escopos eleitoreiros, que não correspondem às necessidades (e às possibilidades) da entidade federativa.

         Como mostra reportagem de Silvia Amorim, em O Globo, o número de estados em que a despesa com pessoal entrou na chamada Zona de risco da LRF cresceu 70%  de há quatro anos para cá.  Em 2010, eram dez os governadores na ‘zona de risco’ em fim de mandato. Hoje, são dezessete. 

          E é para o Nordeste, uma das regiões mais pobres do país, que vai essa dúbia palma: AL, CE, PE, PB, PI, RN e SE; quatro são do Norte (AP, RO, TO e PA), três do Sul maravilha (PR, RS e SC) e três do Centro-Oeste (DF, GO e MT).

          O Piauí está na dianteira do atraso, com a situação mais grave no âmbito nacional (a despesa com pessoal chegou a 50,04% da renda corrente líquida). Os outros estados em situação particularmente difícil, são Alagoas  (49,8%), Paraíba  (49,6%) e Sergipe (49,6%).

          A Lei da Responsabilidade Fiscal  - que se tem tentado descaracterizar – sofre, por outro lado, de algumas imperfeições – que num governo federal sério poderiam ser corrigidas. Nesse campo de espertezas, anote-se o Rio de Janeiro, que tem gasto com pessoal que, à primeira vista, impressiona favoravelmente. A situação fica muito menos brilhante ao verificar-se que a posição privilegiada se deve ao fato de o governo fluminense  não incluir no cálculo gastos com aposentados. Assim, por um truque infográfico, o RJ de Pezão sai com percentual admirável de pouco mais de 30%.

 

Absolvição de Hosni Mubarak

 

             Na verdade, a absolvição do ex-Presidente Mubarak foi um lento processo, que se confunde com a doença terminal da Primavera Árabe, no Egito. Na verdade, é o desfecho decepcionante de enganosa abertura. Nesse quadro, o início se assinala por  grandes e entusiastas multidões na Praça Tahrir, que conduziram ao seu rápido afastamento do poder, com a respectiva renúncia, a que se seguiu a condenação à prisão perpétua.

            A Fraternidade Muçulmana, que a princípio olhara com desfavor a revolução egípcia – a que perpassou de início um matiz relativamente liberal  - pensou poder apropriar-se do mando, o que conseguiria com a eleição de Mohamed Morsi. Este, no entanto, por um conjunto de erros, tanto próprios, quanto da Fraternidade, perdeu rapidamente o largo apoio popular, e seria afastado do governo – e preso – ao cabo de cerca de um ano. É uma vítima mais da respectiva incompetência, em processo composto pelo doutrinarismo faccionário da velha Fraternidade.

               Foi um fecho decepcionante para o primeiro governo civil desde a queda da monarquia do Rei Faruk, a 23 de julho de 1952,  abatida pela sólita conspiração militar, que levaria em breve tempo Gamal Abdel Nasser ao poder pleno, uma vez afastado o oficial mais antigo que fora chamado a encabeça-la.

               Com o rápido declínio de Morsi, surgiu o general Abdel Fatah el-Sisi, guindado pelo aplauso de correntes populares. A popularidade com que foi brindada a nova administração castrense fez esquecer as anteriores reservas ao domínio do exército. De novo – e muito pela respectiva inabilidade – a Fraternidade Muçulmana está regressando aos porões e aos guetos em que se manteve por longas décadas viva e atuante, malgrado a perseguição dos generais-presidentes.     

 

O  Drama da Nigéria e o avanço do Islamismo radical

 

              A al-Qaida e o radicalismo religioso árabe  avançam não tão lentamente  na África. Na Nigéria, o movimento Boko Haram continua a tomar espaços,r diante do regime corrupto e ineficaz que preside o maior país africano (em termos demográficos) de que a independência fora saudada como um avatar da democracia (começou com assembleias no padrão parlamentar inglês).

              Em um fenômeno com tinturas mundiais, o islamismo radical – na Nigéria, o Boko Haram também reclama um califado – no correr dos meses,  essa surda insurreição nigeriana se manifesta no sequestro impune de jovens mulheres, que semelham destinadas a uniões conjugais em que inexiste a vontade feminina.

             Se não esquecermos o Isis – que vem sendo combatido do alto, mas que permanece no terreno – também a guerra civil na Síria – em que Barak Obama desperdiçou a oportunidade de apoiar no momento certo a  Liga Rebelde (então com boas perspectivas de apressar a expulsão e queda de Bashar al-Assad), para hoje ver-se a braços com as decapitações em série de outro califado embrionário, este na velha terra da Passagem, próxima da Turquia e do Iraque.

             Ainda na África – agora no versante oriental – encontramos o al-Shabab, mais uma criatura do islamismo radical, que se espraia na Somália – em que persiste a anarquia, o que a transforma em base para piratas e em campo de treinamento para os discípulos de Osama bin Laden.  

              A falta de estado – o apolis que se pensava criatura morta e enterrada por séculos de governo – volta e persiste de modo algo estranho, eis que inclui atividade bastante lucrativa, que é a velha pirataria, hoje não tão endêmica no Chifre da África, empós sua longa ( e por muito esquecida ) estada nas costas do Magreb [2]...

              Será que a presente – e persistente – confusão teria algo a ver com as lutas entre estados que precedem à instalação da dominação por um único governo ? A. J. Toynbee,  no seu Estudo da História, tratara dos diversos Estados Universais que culminaram a luta nas civilizações respectivas.  Se no passado as civilizações não eram universais, na medida em que existiam outros países fora de seu alcance, a situação presente – em que se colocam Estados Unidos e China como virtuais postulantes  - configura situação diversa.  Washington fora a única superpotência, após o desaparecimento da União Soviética em 1992, mas a sua absoluta preponderância, abalada pela guerra no Iraque, e que se manifesta no presente no chamado fenômeno do declínio (com efeitos sobretudo internos),  se vê ora às voltas  com o crescimento, o avanço comportado e na aparência inelutável dentro da  pretensão – bem comportada mas escancarada de Beijing em assumir-lhe o posto e o cetro.  

              Essa é uma história que pode não ser – para felicidade dos pósteros – introduzida pelos chamados períodos interessantes[3] da anterior experiência chinesa. De qualquer forma, é um desenvolvimento que tenderá a manifestar-se e a estabelecer-se de maneira pacífica, ainda que a elevação no diapasão das pretensões de limites marinhos do Novo Império do Meio possam lançar na esfera circunvizinha ondas não tão tranquilas...

 

            

 

     

 (Fontes: ‘Age of Ambition: Chasing Fortune, Truth, and Faith in the new China’, Evan Osnos, Farrar, Straus and Giroux, New York, 2014, pp. 403; ‘Prisoner of the State –The Secret Journal of Premier Zhao Ziyang, Simon & Schuster, 2009;  A Study of History, Arnolf Toynbee, O Globo)             



[1] Zhao Ziyang era o Premier chinês quando ocorreram as demonstrações de Tiananmen. Tentou resolver pelo diálogo a questão, no que foi impedido pela ala conservadora do PCC. Esta, através de Li Peng, logrou convencer o ancião Deng Xiaoping. Determinada a intervenção do exército, ocorreu o massacre de Tiananmen. Zhao passou o restante de sua vida em prisão domiciliar (morreu em 2005)
[2] Magreb é a costa mediterrânea da África, no seu versante ocidental ( hoje, Argélia e Marrocos)
[3] Eles se caracterizavam, na lição de Toynbee, pela luta entre os Estados pretendentes à posição de mando, o que, segundo insinua o período atual, ocorrerá consensualmente, e sem consequências bélicas (por uma série de circunstâncias que não cabe aqui desenvolver).

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