sexta-feira, 30 de maio de 2014

CIDADE NUA VII

                            

                               A   DAMA   DO   ELEVADOR


                                                                  
                                                   X I I I

 

                 Desta feita, os dois chegaram quase ao mesmo tempo. Como ele vinha do trabalho, a encontrou um pouquinho mais arrumada. Lá estava ela, na mesinha conhecida, a levantar-se ansiosa. Em torno, havia menos gente, por causa da hora. E foi com o mesmo ímpeto que os dois se abraçaram.

                 “Conta pra mim o que você vai aprontar...”

                 “Ah, sou eu então que vou aprontar”, disse, sorrindo. “Mas me deixa o tempo de molhar a garganta... a minha e a tua.”

                Yvone fez o muxoxo de regra, porém ajudou na chamada do garçom. E para espanto de Albano, aderiu ao chope.     

                A bebida veio quase sem colar, como era do gosto do casal. Mas estava geladinha.

                “Temos de arranjar um esquema que te liberte do terror das incertas do Eurípides.”

                “E como isso seria possível?”

                 “Simplérrimo. Basta encontrar-nos em horas do dia, nas quais a tua ausência de casa não pode criar suspeita, mesmo a mais ciumenta das criaturas.”

                “Será que vai funcionar?”, perguntou ela, desconfiada.

                “E por quê não? Há mais de um motel nas cercanias, em que podemos entrar de táxi... E você, com o celular, poderá engabelá-lo à vontade, se ele voltar de repente para casa...”

                Hmm, não sei...”

                “Tenho uma sugestão pra te fazer...”, avançou ele.

                Yvone, a quem a aparente simplicidade da solução de não ser apanhada fora de seu apê, em horas que Eurípides presumiria que ela devesse estar, surgia como demasiado fácil e por isso enganosa...

                “E se ele chegasse à tardinha, e eu ainda estivesse fora?”

                “Uma coisa seria ele chegar à noite, lá pelas dez, e não te encontrar. Outra é o teu marido entrar em casa na hora do jantar...”

               Enquanto descreve as possibilidades e busca convencê-la da segurança desta ou daquela hipótese, ele tenta mergulhar nos seus olhos. Por mais prudente que a idéia lhe pareça, o piscar nervoso ou o rosto mais contraído não lhe dão a impressão de que ela consiga sequer imaginar qualquer encontro dos dois a salvo desta tortura. E dele se vai apossando sentimento misto de raiva e desânimo.

                                                       *

               Embora não fosse dado a muitas leituras, outro dia o amigo João lhe passara um livro de autor pouco conhecido. O que lhe impressionara havia sido o caráter escorregadio da heroína. Posto que aparentasse interesse pelo jovem a tentar conquistá-la, nas diversas situações sempre conseguia eludir-lhe os esforços, recorrendo a complexo jogo de ilusórios afagos e oportunas esquivas.

              Sem saber de suas peripécias sentimentais, João lhe recomendara o romance, sobretudo pela descrição do caráter da personagem.  

             “Esse tipo de mulher é coisa rara hoje em dia. Ai daquele que se interesse por ela!”

             “E que tipo seria?”, perguntou Albano.

             “É o que os franceses chamam de ‘allumeuse’, vale dizer, aquela que acende.”

              Se não entendera bem de que se tratava, a leitura do romance logo o prenderia, ao ver o comportamento descrito. Seria uma mulher que se compraz em provocar atenções e interesses, que teima em deixar insatisfeitos. E diante das atitudes de Yvone e do seu medo dos ciúmes de Eurípedes, principiava a perguntar-se se João não tivera a intuição de apresentar-lhe a personagem, mesmo sem saber de suas aventuras...      

                                                       *

             Hellow...”

             Meio sem atinar, ele olha para ela.

             “Onde você andava ?...”

             “Não compreendo...”

             “Não sabia que ‘cê tinha o hábito de viajar...”

             “Não dá pra entender...”, diz ele.

             “Por uns instantes, ‘cê me pareceu estar muito, muito longe daqui...”

             “Ah!... estava pensando...”

             “E se pode saber em quê ?”

             “Em que talvez esteja fazendo papel de bobo.”

             “Vamos voltar à mesma estória ?”

             “Se não se encontra saída para um problema que, na verdade, não existe, não há outro jeito...”

             “Você me dá a impressão de não querer entender...”

             “E, além de sua fobia, há qualquer coisa pra entender ?”

             “Me desculpe, mas assim não dá mesmo.”

              Por um tempo, Albano ficou bovinamente contemplando a saída de Yvone, em meio ao burburinho. Depois, esvaziou o copo e, acenando para o garçom, fez sinal de mais um chope.

 

                                                    X I V    

 

              Albano não era um intelectual. Tampouco se poderia defini-lo como um mané, um filisteu. Ele mesmo se colocava em um meio-termo. Lia um pouco, mas não muito. Sem ser cinéfilo, gostava de um bom filme, e não tinha paciência com chanchadas. Poderia ir a museus, visitar exposições, mas em geral não por iniciativa própria. Se não se considerava um maria-vai-com-as-outras, admitia que nesse campo não tinha muita iniciativa. Contudo, se lhe indicassem um programa cultural e se sentisse convicção em quem recomendava, poderia até ir.

             Por que estava pensando naquilo? Francamente, não sabia...

             Nas suas conversas com Yvone, não dera para determinar-lhe os gostos. Tinha, no entanto, certeza de que ela não era nenhuma intelectual. Quanto às suas preferências, não discernia muita coisa, talvez pela simples razão de que não houvesse muito o que descobrir.

              De todo modo, ao perder a paciência, ele lhe fornecera de bandeja o motivo para desvencilhar-se de relação que ela desejava e, ao mesmo tempo, pelo medo que o marido provocava, achava perigosa e angustiante.

              Yvone deveria saber que a probabilidade de ser apanhada por Eurípides não era das mais altas. Mas o seu temor era demasiado grande para conviver ainda que com a probabilidade residual de que desse zebra.

             Por isso, malgrado a química entre eles, a sua moça do elevador queria e não queria. Ele errara, porque se esquecera de que carecia de muita paciência. Como na pescaria de alto mar, o pescador tem de cansar a presa, antes de içá-la para o barco. Também naquela relação, o açodamento não levaria a nada, ou antes provocaria a ruptura.

             Foi justamente o que acontecera... Afobado, desperdiçara a ocasião, ou, pior ainda, dera à namorada – que outro nome poderia dar-lhe? – uma saída para situação embaraçosa. Ficara claro que as possibilidades de serem apanhados por Eurípides eram muito reduzidas, quase impossíveis... Mas no seu pânico, a lembrança do marido já era suficiente para colocá-la em situação de ameaça. Só com muito jeito e persistência ele lograria expulsar de sua mente o espantalho do esposo...

             Ao contrário disso, quisera forçar a situação, mostrar a falta de lógica no temor de Yvone. Com isso, só conseguira reforçar a imagem do marido e sua implícita ameaça. Por entrar em argumentação que não a deixava esquecer o próprio medo, Albano só atiçava um fogo que, no caso, ele deveria ir apagando aos poucos, até que com sinuosas doses de ternura e carinho, ele amorosamente pusesse para dormir resistência obstinada, que não mais teria propósito de persistir, envolvida e de certo modo sufocada pela sua presença. Com isso, sufocaria em agrados os confusos pavores, como se retirasse o ar remanescente aonde pudesse ainda permanecer a centelha do medo... Com o abraço do amor, ele a conduziria para as tépidas aléias onde viaja a voz ciciante das promessas sem termo, e paira a sensação de um infinito sem barreiras...

             “O senhor quer pagar no cartão ou em dinheiro?”

              Ele não tomara cento e dez chopes, como gritava o bêbado na mítica viagem de ônibus para a antiga Barra, que hoje não mais existe, enterrada que foi pela especulação imobiliária.   

             No entanto, lá estavam cinco bolachas de chope... Bebera demais e agora, se arrastaria para casa... Que programa!

               

                                                      X V

 

              Alô, Yvone, sou eu...”

              “...”

              Meu amor, minha querida, atire a primeira pedra quem nunca errou...”

              “Que é que é, Albano ?”

              Sentiu a glacial recepção, mas resolveu ir em frente. Afinal, quem fora grosseiro, fora ele.

              “Meu amor, pisei na bola, é verdade... Será que não tem perdão?”

              “...”

              “Bem, eu só queria conversar com Você...”

              “Depois de ontem, não vejo muito propósito...”

               “Pô, amor, me dá uma chance...”

               “Que seria?...”

               “Que tal um passeio a Petrópolis ?”

               “Petrópolis!? E como seria tal passeio ?”

               “Deixa por minha conta.”

               “Você poderia especificar um pouquinho mais como seria o passeio ?”

               “Pro dia eu vou alugar um carro...”

               “Seria no sábado, então?”, perguntou ela, meio desconfiada.

               “Sim! Marcaríamos um ponto aqui perto, onde eu te apanharia.”

               “Tá bem.”

               “Posso ir em frente?”

               “Ok.”

               “Pra amanhã, providencio o carro. Aí te telefono e marcamos o lugar.”

               “Tchau, então”, disse ela e desligou.

                As dúvidas assaltaram Albano depois. Será que ela cumpriria o combinado? Será que não aprontaria alguma coisa, com medo de Eurípides? De qualquer forma, pensou, não tinha saída. O jeito era arriscar. Só esperava não gastar o dinheiro à toa.

                                                          *

                Estava no ponto de ônibus, conforme prometera. O local distava cerca de 1km do edifício deles, sem ficar na mesma rua. Arranjara um Volks, mas não dos modernosos. Embora fossem para a serra, preferira um com ar condicionado.

               “Oi! Um Fusca! Há quanto tempo não andava nele...”

                Como antecipara, Yvone não fizera menção de beijá-lo. Preocupado em tirar o carro do posto – justo chegava um ônibus -, ele a olhou de relance.

                Até tomarem a avenida Brasil, permaneceram em silêncio.

                “O ar está ok pra você?”

                “Tudo bem.”

                Pouco depois da entrada para a estrada de Petrópolis, ele estendeu a mão, e acariciou-lhe o braço nu.

                “Que bom que você está comigo.”

                Os olhares se cruzaram. Ela já não lhe parecia tão distante.

                “O que ‘cê prefere? Paramos num desses bares de beira de estrada para cafezinho e biscoitos, ou vamos em frente?”

                “Acho melhor a gente rodar mais. Lá fora tá muito quente...”

                Em breve deixaram para trás o comércio – até por acesso a motel passaram – e avançaram pela baixada.

                “Nunca gostei muito desse trecho...”, suspirou Yvone.

                “É? Engraçado, eu também...”

                “Você tá querendo me agradar...”, disse ela, sorrindo. Ele não deixou de ver que seu olhar não estava mais tão arisco.   

                                                            *

                Mais tarde, parou em local onde vendiam  amantegados da serra. Albano logo percebeu que eram do gosto de Yvone. Achava até graça que ela preferisse não ficar com os pacotinhos. Pela frequência, porém, com que os pedia, Albano se divertia. E mais ainda com a mãozinha estendida, que ia depressa apagando os resquícios da carga negativa do outro dia.

                A sua queda pelos biscoitos caiu bem para quem tratava de apagar as memórias da rusga. Nisso ele era mestre. Não se afobava. Tudo que lhe viesse a calhar utilizava como se nada fosse. Sem nunca forçar a barra, com muito jeito ele tratava de apagar as marcas e a resistência deixada pelo episódio.

                Assim, ao chegarem a Petrópolis, depois do Quitandinha, mostrou-lhe os pontos principais: casa da família imperial, o Palácio Rio Negro com seus anexos, a rua Ipiranga e a da Barão do Rio Branco. Ao passarem pelo centro e o rio Piabanha, sentiu que ela já se fatigara. Tratou, portanto, de estacionar o carro perto do restaurante que lhe tinham recomendado.

                “Penso, meu amor, que você vai gostar.”

                Procurou controlar a expressão, dizendo o meu amor como se fosse algo natural no seu convívio. De esguelha, buscou no semblante alguma contração ou mostra de estranheza. Como nada visse, tocou-lhe, de leve, o braço nu, do jeito de quem delicadamente orienta a companheira para tomar uma certa direção.

                 Do canto do olho, viu que ela não reagia. Sentiu, então, que com um pouquinho mais de paciência ele a teria de volta, virando de vez a página da afoiteza no bar do Meier.

                 Por isso, ao adentrar no restaurante, eludiu a indicação do maître – que lhes queria colocar em mesa com cadeiras separadas – e a levou para mesinha de canto, com  pequeno sofá para acomodar a dupla.   

                 Ela não reagiu, nem mostrou desagrado pela circunstância de ficarem muito próximos, juntinhos mesmo.

                 Logo a seguir, por instâncias de Albano, e não sem negacear um pouco, acabou aceitando a caipirinha que o garçom oferecia.

                 Mergulhando nos seus olhos, ele disse, levantando o copinho:

                 “A nós!”

                 “A nós...”, balbuciou ela, com leve aceno de brilho nas pupilas.   

                                                           

                                                           *       * 

 

 

 

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