quinta-feira, 6 de março de 2014

O Erro de Putin

                                        
 

         Por uma série de razões – notadamente a húbris, a dissociação da realidade, e a passada e exitosa experiência com a crise da Geórgia, em que o monstro russo abocanhou as pequenas Abkazia e Ossétia do Sulgospodin Vladimir Vladimirovitch Putin cometeu grande erro ao tratar a Ucrânia como se fosse questão similar àquelas da Tchetchênia e tantas outras nos seus largos domínios em que um ukase (decreto) seu tem força de lei.
         Agir como se o Império russo continuasse a estender-se aos limites da antiga União Soviética, é fazer prova de duas coisas: falta de conexão com a realidade e, por outro lado, encarar toda a construção jurídica internacional levantada por força de dois conflitos mundiais como se fora um castelo de cartas, do tipo daqueles que o favorito Principe Potienkin mostrara à sua Soberana, a Tzarina Catarina, denominada a Grande, naquela famosa tournée pelas risonhas demoras dos camponeses na Rússia.

         Theodor Adorno (1903-1969), expoente da Escola de Frankfurt, e um dos grandes intelectuais, filósofo e sociólogo do século XX nos legou obra prima, em que se ocupa da personalidade autoritária. Dentre os modelos para traçar as grandes linhas do comportamento sócio-político, ele cita amiúde o personagem Mack, que é ou não um compósito, e que se caracteriza por atos direitistas, muita vez antissociais. Sendo trabalho de equipe e surgido em decorrência da segunda guerra mundial, Adorno ao delinear os traços principais de indivíduos com potencial perigo para a sociedade, se propunha alertar os leitores no que concerne à potencial ameaça por eles encarnada para as relações inter-sociais e o convívio humano. Do relevante trabalho de Adorno, em que ressalta a inadaptalidade da personalidade autoritária de direita para o bem-ordenado convívio social, ficou a advertência do desafio que pessoas como Mack pudessem trazer para a evolução da sociedade.

          Não se pode esquecer o quanto terá contribuído para a formação desse tipo comportamental a personalidade do pintor austríaco, filho de Alois iH Hitler. Veja a definição de mestre Adorno: A personalidade autoritária é um estado de espírito ou atitude caracterizada pela crença na obediência absoluta ou submissão à própria autoridade, assim como a aplicação dessa crença através da opressão dos respectivos subordinados. Aplica-se assim a indivíduos que são vistos como tendo personalidade  de índole opressiva ou autoritária em relação aos próprios subordinados.

          Não faltam indicações e suportes para as tendências evidenciadas por Vladimir Vladimirovich Putin. Filho de pais de classe média baixa, com a infância em condições difíceis transcorrida em Leningrado, o jovem Putin se integraria na KGB, o serviço secreto soviético – cujos membros não se caracterizam pelo liberalismo – e fazia carreira nesse meio quando os demônios Glasnost e Perestroika que Mikhail Gorbachev libertara da garrafa se encarregariam de pôr em ponta-cabeça o regrado mundinho autoritário em que vivia o funcionário V.V. Putin. Depois da manifestação da multidão em 15 de janeiro de 1990 diante da sede da Stasi (polícia secreta da RDA), dentro de revolução provocada pela queda do muro de Berlin em 9 de novembro de 1989, o prédio da Stasi (em que se alojava também a KGB) foi investido pelo povo alemão, sob os olhos atônitos do funcionário V. Putin (para quem a experiência foi penosa, eis que fê-lo voltar para a URSS).

                 Ao regressar a Leningrado em 1990, Vladimir experimentou, no dizer de Masha Gessen, uma senhora surpresa: aquela gente que Putin e seus colegas controlaram pelo medo – os dissidentes, os quase dissidentes e os amigos de amigos de dissidentes – agora agiam como se eles fossem donos da cidade. Mas não é meu propósito descrever a evolução do jovem Putin através da selva de um reino que se desfazia, e no qual, na antiga São Petersburgo muitos proveitos, alguns duvidosos, poderiam ser colhidos.

                 O período democrático seguinte – a desconstrução de Gorbachev, o surgimento de Boris Ieltsin e a sua defesa da democracia – criaram ambiente em que as ligações de Vladimir Putin com a detestada KGB representavam mais um estigma do que válida apresentação, e daí a sua suposta carta de demissão da polícia secreta (que depois seria convenientemente perdida).

                  O governo de Ieltsin, com o seu estímulo à democracia e ao pluralismo,a par de surgimento de grandes fortunas e de ambiciosos mini-czares, se estendeu por dois mandatos. No segundo, com a impopularidade crescente do antes arrojado Boris, que subira em tanques para afrontar contestações, e a desmoralização dos excessos na bebida, criariam a conhecida situação em que um quase desconhecido Vladimir Putin foi designado como Primeiro Ministro, o que, se representou presente de grego para a democracia russa, garantiu – ou pelo menos pareceu aos seus ‘mentores’ garantir a preservação da respectiva situação  através do novato Putin, que eles pensavam – como sói acontecer em tais circunstâncias – manter sob o respectivo controle.                   

                 A tragédia anunciada para a democracia na Federação Russa se insere nessa salvação in extremis de  governo desmoralizado, pelas características dipsomaníacas de sua figura tutelar. A pesada ironia e a má-sorte do sofrido povo russo está em que a democracia se afirmaria em período farrista e inconsequente, tão só para ser hábil e gradualmente distorcida e debilitada, para hoje termos nas muralhas do Kremlin um membro da chamada elite da KGB, além da entronizada cleptocracia.

                 Não pretendo estender demasiado este artigo numa descrição do atual regime autoritário de Vladimir Putin, em que, como no tempo dos czares, todos os órgãos do estado russo estão a serviço do Presidente Putin. Como ele demonstrou, de resto, recentemente, para adequar-se a uma ficção de alternância no poder, gospodin Putin não carece de permanecer na presidência para que se tenha dúvida da preponderância da respectiva autoridade, mesmo durante o interregno em que seu próximo auxiliar Dmitri Medvedev exerceu o mais alto cargo. Ainda que Primeiro Ministro, não subsistia dúvida acerca de quem realmente mandava no Império.

               No plano da personalidade autoritária, o senhor do Kremlin tem particular apreço pelo físico e pelos desforços atléticos. Gosta muito de andar a cavalo, que é um esporte que se associa à autoridade e à aristocracia – a equitação tem especial atrativo para os indivíduos de baixa estatura, porque em montando a personalidade ganha a altura do cavalo. Por outro lado, Putin gosta de aparecer de torso nu, no que tem o exemplo do Duce Benito Mussolini, que na chamada Battaglia del Grano (a batalha do Trigo) se fez filmar, com o peito a descoberto, empenhado na colheita do cereal.      
              O comportamento de Vladimir Putin pode demonstrar grande habilidade quando, por conta das indecisões de Barack Obama, chegou a dispor das colunas do New York Times, para dar lições acerca da guerra da Síria. De seu ponto de vista, terá sido a sua posição mais vantajosa, ao conseguir manter o seu preposto em Damasco, e reverter a tendência da guerra civil síria, com o enfraquecimento da união dos sírios livres, a divisão entre os opositores de Bashar al-Assad em dois ou até três campos, e o ressurgimento da ditadura alauíta, que no primeiro ano e meio esteve próxima da debacle. As hesitações de Obama desencorajaram os demais aliados, e levaram à estagnação do conflito, com o agravamento dos problemas de refugiados e o ressurgimento de doenças que se pensava à beira da extinção, como o escândalo da poliomielite, de que é principal fautor o tirano de Damasco (condições higiênicas e medicações, negadas na prática na área de domínio rebelde). Infelizmente, pela conivência russa expressa no Conselho de Segurança não se dá plena autoridade aos órgãos especializados das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (Bashar pensa que a poliomielite possa ser sua aliada)[1].

               No entanto, esse suposto triunfo na Síria – depois da perda de grande parte do território, e a quase certeza da iminente queda de Bashar al-Assad – representa reviravolta impressionante, que é saudada com muito alívio não só por Putin – que havia posto demasiadas fichas no então cambaleante regime alauíta – mas também para o Irã de Ali Khamenev e os ayatollahs, sem falar do Iraque xiita (hoje uma peça no universo xiita por especial cortesia do inepto George Bush) e do Hezbollah, do clérigo Nasrallah, que ora já participa desenvolto de operações militares, como a de Quneitra. Se, como os fados da guerra hoje indicam, Bashar deverá arrastar-se para uma semivitória, com mais da metade da Síria arrasada, Putin verá preservada a sua base naval no Mediterrâneo oriental, com as suas tão prezadas águas quentes de todo o ano.

              No que tange à Ucrânia, o erro de avaliação de Putin terá sido o de extrapolar para aquele país vizinho a peculiar visão havida na intervenção de 2008, em que a atitude de ‘excessiva autonomia’ da Geórgia foi, no seu entender, cortada pela raiz através do ‘apoio’ prestado a Ossétia do Sul e Abkázia, duas regiões com maioria de etnia russa. Houve reação do Ocidente e do próprio Bush, mas o tamanho dos mini-países terá contribuído para restringir e amortecer a crise internacional.

              No caso presente da Ucrânia, o cenário é diverso. Trata-se de um país de cerca de 45 milhões de habitantes, que através de luta titânica logrou livrar-se de um ex-criminoso Viktor Yanukovich (condenado na juventude por assalto e estupro) cuja principal qualidade é ser pró-russo, e ter optado (após súbita rejeição do acordo com a U.E.) pela entrada na União Aduaneira Russa. A luta do povo ucraniano foi suficientemente descrita pelo blog, mas a sua vitória, com a expulsão de Yanukovich irritou a Putin, que não tem o hábito de perder.

              Pisoteando o direito internacional, e os compromissos assumidos com a Crimeia – onde a Russia tem importante base naval, que goza de exterritorialidade – gospodin Vladimir Putin viu no percalço sofrido – decorrente de assunto interno ucraniano –  ofensa ao próprio senhor do Kremlin. Toda a operação que circundou a invasão da península da Crimeia – a par de o que representou de incitação para uma população de origem majoritária russa (a Crimeia foi alocada à Ucrânia, então simples república dentro da URSS em 1954) – foi uma bisonha mascarada de ocupação não tão larvar da Crimeia. De triunfo em triunfo – e a operação das Olimpíadas em Sochi, com os gastos enormes, a participação dos amigos corruptos, foi vista como grande vitória do Presidente Putin.

                    Terá sido nesse cenário ultrafavorável e nos grandes salões do Kremlin, que Putin terá cogitado fazer uma operação militar tipo século XIX, em que se leva em conta a fraqueza relativa do objetivo, mas não as formalidades dos tratados e das fronteiras internacionais. Que haja colocado nesse nível um país de quarenta e cinco milhões de pessoas – de que grande parte, em manifestações democráticas, muita vez em condições difíceis, seja em termos de intempéries climáticas, seja em repetidos ataques por polícias e no final por atiradores à distância, o seu aliado Yanukovich pensou poder dobrar a revolta ucraniana.  

                    Putin nos relembraria ao por em funcionamento a sua grotesca invasão não-identificada a frase famosa dita contra Napoleão, ao mandar matar o Duque d’Enghien: Sire, não foi um crime, mas um erro!  Falando pouco, e circundado por gente hábil como o chanceler Sergei Lavrov, o Senhor do Kremlin intuirá muito em breve a extensão do equívoco cometido. A consciência da ochibka (erro em russo) lhe virá por acréscimo, eis que os áulicos à volta não se atreverão a desmerecer da ação do Senhor de Todas as Rússias.

                  Pensa, então, que terá alguma legalidade a decisão do parlamento da Crimeia, cercado que está por militares russos (é infantil o recurso de retirar-lhes as insígnias nacionais) de proclamar a própria acessão à Mãe-Rússia?  Que valor tem no Direito das Gentes manifestações desse gênero, sub mano militari?  

                 Como se pode presumir que um país ocupado – como ora a Crimeia e, quem sabe, no futuro, a Ucrânia oriental -  tenha a presumida capacidade de expressar a respectiva vontade, se sob o tacão do exército russo?

                Toda a empáfia, todo o aparente desdém de gospodin Putin pela opinião alheia tem, na verdade, tanta substância quanto os tigres de papel...      

                Internacionalmente, se o presidente russo prosseguir na sua mascarada, o próprio tamanho do erro e a incapacidade de reinar por decreto, se contra a vontade expressa da população, não tem qualquer perspectiva  de manter-se. Falta-lhe o oxigênio do reconhecimento internacional, a par da resistência obstinada de um povo que sonha com o progresso da vizinha Polônia, e não com o atraso e a ditadura da também próxima Bielorrússia.

 

(Fontes: Masha Gessen, ‘O Homem sem Face’,The New York Review of Books, New York Times, Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo)



[1] V., a respeito, o artigo da Dra. Annie Sparrow, ‘A Oculta Epidemia de Poliomielite na Síria’,  The New York Review, 20.02.2014.

Um comentário:

Mauro disse...

Ótima análise. Infelizmente qualquer que seja o desenlace, os povos russo e ucraniano devem sofrer. Que a fraqueza de Obama não o leve a atos extremados.