Engana-se redondamente Barack Obama se pensa haver
redimensionado Vladimir Putin ao apodar a Rússia de poder regional. Com efeito, se algo se
pode determinar com certeza no que tange ao Senhor do Kremlin é que ele, um realista, não atribui muita importância a
classificações.
A exemplo de
outros assim chamados homens fortes
que no passado confundiram, por vezes, os seus interlocutores e as potências da
época, Putin alterna a agressão e palavras de paz. Sem embargo, se se examinar
com atenção a outra face do presidente russo, se verá que com discurso na
aparência pacífico, ele persegue e/ou complementa o objetivo já parcialmente
alcançado por meios bélicos ou de implícita violência.
Veja-se, por
exemplo, o seu inesperado telefonema para o presidente americano. Em tais
circunstâncias, a tendência natural será interpretar a iniciativa como um
eventual repensamento do agressor Putin, que estaria buscando uma via pacífica
para consertar o imbróglio por ele aprontado.
Terá sido,
acaso, ingenuidade do Ocidente ver na atitude de Putin uma possível abertura?
Não, porque as pessoas e os governos, a quente, tendem a projetar na
contraparte o que faria alguém que se pauta por um comportamento dentro das
regras não-escritas das relações interestatais. Imagina-se, dessa maneira, que
gospodin Putin reavaliou a questão, e, diante da reação ocidental, estaria
inclinado a fazer algumas concessões. Argumento supostamente forte em tal
sentido seria o fato de ele haver tomado a iniciativa de reatar o contato, o
que implicaria, se nos ativermos à interpretação acima exposta, a uma matizada
admissão de culpa.
Daí, a boa
repercussão do referido telefonema, fundada apenas em premissas retiradas tão
só da mente a quem visa a comunicação de Putin. Nesse contexto, a personalidade
autoritária de Vladimir Putin tem diversos exemplos na história recente. Quem
não se recorda dos gestos conciliatórios – que tanto animavam os pacifistas –
tomados por Adolf Hitler, v.g., tão logo após realizar um ato de força, com que
os propósitos posteriores se achavam em frontal contradição ? O agressor que se
apresenta como a parte ofendida e, não obstante, insinua genéricas disposições
de paz, não constitui, no figurino do imperialismo, nada de novo. Trata-se tão
só de um aparente recuo – que visa a vesti-lo de boas intenções – e cujo
precípuo desígnio será ganhar tempo, para voltar, em futuro por ele
determinado, com novos reclamos.
Assim, Putin colheu a deixa de Obama de que se
deve recorrer à diplomacia. Telefona, ex-abrupto,
para a sua contraparte americana, a quem terá agradado, como é natural, a
iniciativa, máxime por provir da parte com culpa no cartório. Putin, o
ex-agente da KGB, que preza manter suas cartas bem junto do peito no jogo de
poker de altas apostas, terá sido vago quanto às questões a serem discutidas,
mas enfatiza a concordância com a tese do homólogo de privilegiar a diplomacia.
O americano
imputa essa postura à suposta necessidade de Putin de camuflar o alegado erro
da anexação da Criméia, motivo pelo qual o russo elogia o método propugnado por
Obama. Sob tal suposição, que paira no ar como os aviões de Aporelli, o
presidente estadunidense concorda com a proposta de Vladimir de entregar aos
diplomatas a incumbência de resolver a questão.
A linguagem
será necessariamente vaga, porque o escopo de Putin é como se diz vulgarmente
passar gato por lebre. Nada é muito especificado, e os dois concordam em
atribuir aos seus ministros do exterior a missão de deslindar a questão.
É humano,
volto a dizê-lo, que Barack Obama tenha concordado na reunião entre John Kerry,
o seu Secretário de Estado, e Sergei Lavrov, o eterno Ministro dos Negócios
Estrangeiros da Federação Russa. No entanto, marcada e realizada a reunião em
Paris, ontem dia trinta, eis que se verifica que o intuito do presidente Putin
não tem a ver com a sua agressão e ulterior anexação – dentro de ‘modelo’ que
muitos pensavam superado, em um mundo dos pacta
sunt servanda (os tratados devem ser cumpridos) – mas com outra aplicação
da diplomacia, voltada esta para a Ucrânia!
Com tropas
na fronteira, Putin agora pensa em valer-se da interveniência diplomática para
fazer avançar a causa das populações no oriente da Ucrânia, que são em maioria de fala
russa. Depois de apoderar-se da Crimeia, e de todos os navios de guerra ucranianos que lá
encontrou, Vladimir Putin quer valer-se da diplomacia para intervir nos
assuntos internos do governo de Kiev,
a que pede, a princípio com os punhos de renda do mister, tenha o devido juízo
para federalizar aquelas regiões
habitadas por gente de fala russa.
Ignoro por
ora qual terá sido a reação do Secretário de Estado Kerry quando inteirado da
real motivação da reunião. Se assentiu à discussão, o que me parece pouco
provável, abriu ainda mais a porta para a progressão das intenções de gospodin
Putin.
Enquanto o
Ocidente e os Estados Unidos de Barack Obama não se conscientizarem de que
estão tratando com um realista à antiga, cortado nos moldes do figurino
imperialista – e que se lixa de meras designações como ‘poder regional’ -, e
que só entenderá a linguagem da firmeza, vamos continuar a assistir a reprise
do filme sobre os atos de força seguidos de lânguidos e ôcos gestos de
afirmação de uma estranha paz.
Como é sempre
bom lembrar que os cenários e as armas mudam, porém os homens nem tanto, vale
repetir a afirmação de Virgílio na Eneida: Timeo
Danaos et dona ferentes (tenho
medo dos gregos sobretudo quando dão presentes). Como se vê, desde a guerra de
Tróia as armas mudaram, mas não os homens.
( Fonte: The New York Times )
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