O referendo sobre a Crimeia,
considerado ilegal pelo Ocidente, produz o resultado esperado, com maciça
aprovação pelos eleitores da península de sua anexação à Federação Russa.
Segundo Washington, Berlin e Bruxelas, o procedimento, seja pela invasão de
forças militares russas (posto que sem assumir a responsabilidade, ao
envergarem uniformes descaracterizados), seja pela redação capciosa de falsa
alternativa reúne todos os elementos para ser considerado como nulo de pleno
direito.
Isto será de
somenos importância para o Senhor do
Kremlin, que reedita, em pleno século XXI, ato de intimidação e força bruta
como foi, v.g., o Anschluss da Aústria pelo Terceiro Reich hitlerista.
Que tal
despropósito possa vir a acontecer, não será decerto por acaso. A Federação
Russa, hoje presidida pelo ex-KGB Vladimir
V. Putin, é o estado-herdeiro da antiga superpotência União Soviética, implodida no começo da
última década do século XX. Como sucessora virtual, a Rússia tem assento
permanente no Conselho de Segurança e o direito de veto, além de dispor de boa
parte do arsenal termonuclear da defunta
URSS.
No entanto, a
sua base demográfica – achacada por tendência ao envelhecimento e à redução na
taxa de nascimentos – tende a encolher, malgrado as fumaças autoritárias de gospodin Putin e de seu círculo. Nesse
contexto, será mais pelos pendores
atléticos e o torso nu, que Vladimir
Putin pode ser comparado ao seu eventual modelo – o Duce Benito Mussolini. Assim,
se o poder militar e econômico da Federação Russa está longe de ser comparável ao da União Soviética,
ainda conserva o deterrente nuclear e parte da grande extensão territorial. Por
isso, será sobretudo pelas bravatas e a afirmação atlética que Putin é
suscetível de comparações com o Duce.
Quanto ao poder militar, no entanto, não
há comparação com as encenações do líder fascista.
Há muita
especulação na imprensa internacional sobre as liberdades que Vladimir Putin
tem assumido na política internacional. Durante o governo de George Bush, no
episódio da Abkázia e da Ossétia do Sul, confrontou com êxito o
Ocidente, a detrimento da Geórgia.
Desta feita,
contudo, a transgressão é bastante maior, pois manu militari interveio na península da Crimeia, a qual desde 1954
fazia parte da Ucrânia. Naquela época, a
passagem da península para a Ucrânia configurava questão interna da URSS. Com a
independência das diversas repúblicas soviéticas, a Rússia pôde dispor de um
porto para a sua esquadra no Mar Negro, inclusive com prerrogativas de
exterritorialidade.
Nesses termos,
a anexação da Crimeia sublinha o imperialismo de Moscou.
A pergunta que
não pode ser calada é se Putin teria ousado apropriar-se na marra da península
– todo o seu proceder está impregnado de afronta ao direito internacional e aos
tratados respectivos – se a posição dos Estados Unidos fosse mais afirmativa.
Dentro do velho
dito – fantasma sabe para quem aparece – não é questão retórica a indagação
quanto à postura do presidente russo, se tivesse pela frente mandatário em
Washington com estratégia mais ambiciosa e afirmativa.
A dita
estratégia da cautela da Administração Obama, na verdade, se já prenunciada no
primeiro mandato, se terá firmado (se cabe o verbo) no lusco-fusco do primeiro
quadriênio. Se anteriormente, pelo braço
da OTAN, a primavera árabe fora muito
incentivada na Líbia, com os bombardeios das forças de Kaddafi, a postura de Barack
Obama foi assaz diversa no que tange a Bashar al-Assad. O 44º presidente se
deu ao luxo de contrariar parecer conjunto dos titulares do Departamento de
Estado, da Defesa, e da CIA, quando se recusou a armar a Liga rebelde. Data
dessa época o começo da recuperação do ditador sírio, com as consequências que
hoje são infelizmente muito mais incisivas.
A Rússia de
Putin agradeceu penhorada o favor. Embaído por promessas de mais uma
conferência de paz em Genebra – algum dia o Palais
des Nations[1]
poderia abrigar um cemitério virtual, i.e. a relação das malogradas
conferências de paz ali realizadas - o governo americano bem cedo enfrentaria novas
condições na guerra civil síria. O próprio Putin se alçaria a dar conselhos a
Obama através das folhas do New York
Times.
Há dúvidas
se essa estratégia da cautela, preconizada por Obama, seja um derivado do
chamado declínio da superpotência,
que é tradução não-spengleriana[2] da
visão do escritor alemão pós-primeira guerra mundial, sobre a chamada Decadência do Ocidente.
Se muito ajudou ao candidato Obama o seu
discurso como Senador pelo Illinois contra a guerra no Iraque - ao contrário da
postura da principal adversária Hillary
Clinton -, muito diferente é a atitude de recuo por ele evidenciada em
diversos episódios, como no da utilização de mísseis Tomahawk contra o arsenal
químico de Bashar.
Desafortunadamente, não se trata apenas de vão prestígio o que se perdeu
com a recuperação do tirano Bashar al-Assad, e de seus aliados, como
Putin. A Rússia tem permitido que Assad
intimide a Organização Mundial da Saúde (OMS). Através do Conselho de Segurança, enfraquece a
linguagem vinculante também nas resoluções relativas à situação médica na
Síria. Não é, infelizmente, opção de estilo. Bashar tem trabalhado assiduamente
para que a área sob controle rebelde não disponha de condições sanitárias
dignas deste nome, inclusive com o criminoso favorecimento da poliomielite,
enfermidade que se pensava extinta, e que graças a Bashar (e ao estulto
preconceito em outras áreas) vem experimentando revoltante recuperação,
sobretudo em território sob controle dos rebeldes (eis que não lhes são facultadas
mínimas condições de higiene e de profilaxia).
Não sei
se esta dita estratégia de cautela de Barack Obama se tenha acentuado por força
das características do temperamento do atual residente na Casa Branca. De
qualquer forma, as diversas vacilações de Obama são água para o moinho de
Vladimir Putin, a par de outros destinos.
Não será
sem preocupação que os democratas americanos observam essa estratégia, em que
os resultados para a liberdade dos povos e a prevalência do direito não são dos
mais auspiciosos. E não se vá esquecer o dito camoniano, que Leonel Brizola
gostava tanto de citar: ‘o fraco rei faz
fraca a forte gente’, Canto X,
Lusíadas.
( a
continuar)
( Fontes: The New York Times, New York Review of Books)
Nenhum comentário:
Postar um comentário