Euforia imperialista
Afinal o jovem e
amargurado apparatchik do KGB, forçado pelos alemães a incinerar o
arquivo da agência em Dresden, pode fruir da reação da velha Rússia, enfim
recuperando terras e, sobretudo, o antigo pisoteado prestígio.
O autocrata
Putin mergulha na popularidade de supostas desfeitas ao Ocidente. Para ele, até que a queda de Viktor Yanukovich, o dócil líder ucraniano,
lhe veio a calhar, eis que reabriu o frasco das veleidades da Crimeia, e a
oportunidade de encurralar um adversário fraco.
Como quem bate
em gato morto, o presidente da Federação Russa, no papel do ofendido, fustiga o
Ocidente, pelo que fez e sobretudo não fez. Pois a implosão da União Soviética,
os russos a devem à própria húbris de
fazer frente a Washington, e, em especial, ao feiticeiro Gorbachev por ter
tirado do frasco os espíritos da glasnost
(transparência) e perestroika (reestruturação).
Se não fosse o
temor do círculo de Boris Ieltsin,
pela sua queda abismal de popularidade, quem sabe, o ex-funcionário do KGB Vladimir Putin teria ficado
esquecido em uma das antecâmaras da história.
A ironia nessa operação de salvação foi a de que quase todos os seus
artífices se perderam, salvo Putin. Com a sua vinda, se mandou à breca o avanço
da sociedade na rota democrática, cedo escanteado, para ceder lugar ao velho e
provado autoritarismo, que também trouxe de volta o cajado da corrupção.
A propósito da
vertiginosa aceitação do líder Putin pelo povo agradecido, há dois tópicos a
sublinhar. O caráter momentâneo dessas efusões é relembrado pela popularidade
atingida na anexação às custas da fraca Geórgia dos enclaves da Abkázia e da Ossétia do
Sul. A euforia era então a regra – como o é hoje na Crimeia e adjacências –
como se todos os problemas de atraso, abandono e da mãe-corrupção seriam página
virada da história. Fora o desalento e a crença nos super-poderes do Kremlin, nada mudou nessas terras por
todos esquecidas.[1]
O outro aspecto
é referido pela observação de Hillary
Clinton (atualmente, a principal candidata democrata à sucessão de Barack
Obama) de que Putin quer redesenhar as fronteiras da Europa.
Colocar a
Rússia como um poder insatisfeito na cena europeia, seria exagerar e não pouco
no mundo pós-II Guerra Mundial. Pela insânia nazista, Stalin – com a ajuda dos Estados Unidos – venceria o desafio, e
procederia a uma brutal revisão de fronteiras, que favoreceram, como é de
regra, os poderes vencedores. É a velha justiça de Breno, a do vae victis (ai dos vencidos), que a
jovem Roma teve de provar, para depois reverter.
No momento, a
Federação Russa parece refletida nesses espelhos de feira, em que a pluralidade
é a regra. Além da potência insatisfeita (a que Hillary alude), é também um
poder emergente – será nesse avatar que gospodin
Putin visitará Dilma Rousseff, na próxima reunião do acróstico BRIC (ou brics, se admitirmos a África do Sul). Sem dúvida, como sucessora
da URSS, é membro permanente do
Conselho de Segurança, e dispõe da mágica faculdade do veto.
Se não se pode
de resto forçar demasiado a comparação com outra suposta grande potência – no caso
a defunta Itália de Mussolini, cujas posturas histriônicas Vladimir como todo
admirador imita – Moscou se qualifica como grande potência pelo arsenal de que
dispõe, mas na economia e até nas Forças Armadas ainda é reminiscente da Roma
imperial do Duce, com muita bazófia e
vazia encenação.
Defrontada com a
possível intimidação, Kiev – que dispõe de boa base demográfica – poderia tratar
de estruturar e treinar as respectivas forças militares. A Federação Russa não
é um tigre de papel, mas tampouco as suas fileiras têm mavórtica capacidade. E
os aguerridos ucranianos não se devem esquecer que o seu melhor amigo serão
eles próprios, como, na antecâmara do conflito de 1939, a pequena Finlândia
surpreendeu o paquidérmico exército do Camarada
Stálin, que pensava levar de roldão os isolados soldados do governo de
Helsinki.
(Fontes:
O Globo, The New York Times
on-line)
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