As fátuas esperanças de que o novo
Grande Líder chinês seria um reformista liberal, não se sabe de onde saíram.
É processo
estranho o que induz grupos intelectuais a acreditarem no contrassenso. A
história, com uma ou outra exceção, costuma esmagar, na placidez da
indiferença, essas fugazes ilusões. Assim, como acreditar que alguém,
concebido, nutrido e formado por sistema de privilégio, vá contestar o próprio
criador, aquele que lhe dá sentido à existência, e, inda melhor, terá ensejado
a estrada segura da afirmação pessoal?Pois, isto presumiram de Xi Jinping ! Ao cabo da longa espera, ele se transformaria de Clark Kent no Super-Homem, não sem antes livrar-se, na cabine telefônica das antecâmaras do destino, dos molestos trajes da pequena burguesia da acomodação.
Quando a realidade deprime, é compreensível que o espírito humano busque alçar voo, para livrar-se do morno abraço da mediocridade e da subserviência.
Depois que Deng Xiaoping caíu gostosamente na rede de Li Peng e da camarilha conservadora, e provocou através de repreensões defasadas o recrudescimento do movimento dos jovens de Tiananmen, tudo o mais seria consequência, inclusive o massacre.
A súbita morte do injustiçado Hu Yaobang, que foi afastado da Secretaria do PCC, por demasiado liberal – com o que ganhara o respeito de ala partidária e da intelectualidade chinesa – provocou o início dos protestos na praça Tiananmen.
O seu sucessor Zhao Ziyang também compartilhava da posição de Hu Yaobang. Na sua visão, a reforma econômica que, como Primeiro Ministro, implementara, carecia da liberalização da vertente política para escoimar a corrupção. Tal seria, no entanto, impossível sem abrir-se a sociedade e quebrar o monopólio do poder do PCC.
Como não se curvou, Zhao seria a vítima da vez. Demasiado popular para ser contestado em processo público, destituído de todos os cargos, morre em prisão domiciliar, em Beijing, a 17 de janeiro de 2005.
Com o desaparecimento de Deng, falecido em 1997, haveria a institucionalização da ditadura do partido, estabelecida por congressos quinquenais, em que o chefe do estado acumularia o mando do partido e da poderosa Comissão Militar (em que o PCC controla o fuzil). Os ‘mandatos’ são de cinco anos, com direito a uma reeleição, também pelo Congresso pleno do PCC. Há um Primeiro Ministro, subordinado ao Presidente, que também dispõe de dois mandatos de cinco anos.
Na primeira fase, com a lenta saída de cena de Deng, Jiang Zemin é o Secretário-Geral do PCC (24.06.1989 – 15.11.2002) e Presidente da RPC (27.03.1993-15.03.2003). De 9.11.1989 a 19.09.2004 encarregou-se de igualmente presidir a Comissão Militar.
A institucionalização se completa com Hu Jintao. É Secretário-Geral do PCC de 15.11.2002 a 15.11.2012; Presidente da RPC (15.03.2003-14.03.2013) e presidente da Comissão Militar (19.09.2004 a 14.05.2013). O seu Primeiro Ministro foi Wen Jiabao.
Com o mandato de Xi Jinping, é nomeado o seu Primeiro Ministro, Li Keqiang. Se as Parcas estiverem de acordo, o mandato de Xi se estenderá a catorze de março de 2023, com o Congresso Plenário do PCC previsto para março de 2018. O Presidente também preside a Comissão Militar, a partir de catorze de maio de 2013.
O 18º Congresso Pleno do Partido Comunista Chinês contou com 2.270 delegados, e ratificou a eleição de Xi Jinping para a presidência do PCC, e a nova composição do Comitê Central. Os detalhes ficam por conta dos líderes veteranos do Partido, entre os quais Jiang Zemin continua a ter ainda muita influência.
Como se verifica, dentro do costume chinês de respeitar e obedecer aos líderes mais velhos e experientes – como ocorreu com Deng e, em menor escala, com Jiang – caberá boa parcela de participação na conformação das diretivas partidárias.
Não há de escapar aos observadores políticos, em que existem inequívocas semelhanças entre os sistemas soviético e chinês. Se o Comitê Central do PCC não terá a mesma força do antigo Politburo do PCUS, a conformação tem muitos traços comuns, a exemplo dos multitudinários congressos, mas difere nos mandatos fixos de Presidente (que acumula com as chefias do PCC e da Comissão Militar), e do Primeiro Ministro. Decerto, em nenhum dos dois casos o espírito democrático está presente, mas no caso chinês o sistema é burocrático-institucional.
Do modelo chinês, a democracia está bem longe. O itinerário ascendente dos futuros líderes se baseia em uma rede de influências e parentescos, sob as vistas de velhos revolucionários (estes uma espécie em rápida extinção) e dos notáveis, que se julgam guardiões do ethos e do lema de elevar sempre mais alto o pavilhão do Império do Meio. Desde Roma, que a escalada dos encargos da República – o cursus honorum - deveria ser feita para aqueles que ambicionassem a honra de tornar-se Cônsul (a suprema autoridade na hierarquia cívica). Como temos presente no exemplo de Bo Xilai – que aspirava ao topo e acaba como réu em processo capital, a iniciar-se nesta semana – essa caminhada não esta isenta de perigos, sobretudo se a hubris estiver presente e se por inabilidade ou má-fortuna o número dos clãs inimigos for demasiado.
Por isso, há de entender-se que as criaturas do sistema para o próprio avanço carecem tanto de algum conhecimento e mérito, quanto e sobretudo de laços grupais e familiares, assentados em acordos e realizações. A popularidade pode ajudar incidentalmente, embora se excessiva tende a transformar-se em imã de invejas e prevenções. Haverá sempre a preocupação dos maiores na preservação da oligarquia – que o PCC, com outros princípios, cuida de manter.
Sem o romantismo e a abrangência das célebres instruções de Quintus Cícero a seu irmão Marco Túlio Cícero, como um pequeno manual de campanha eleitoral, escrito nos primeiros meses de 64 a.C. – Cícero seria eleito Cônsul e exerceria o cargo no ano seguinte -, a escalada na política chinesa, se não envolve o selo democrático das maiorias cidadãs, tem de atender a um número similar de recomendações intra-muros, no jogo de alianças e clientelas da tarda República Romana.
Que algum personagem moldado nesse ambiente de parentescos, privilégios e influências possa guardar o espírito e a essência dos princípios democráticos será um fenômeno bastante raro e quase único. Infelizmente, até o presente os convertidos – e foram muito poucos, como se verifica acima – não tiveram da deusa Fortuna o mínimo de condições que lhes assegurassem efetiva possibilidade de êxito.
Não é o caso de Xi Jinping.
No seu entendimento, em memorandum repassado aos principais escalões do PCC, há sete perigos que rondam a China. O primeiro deles é a Democracia Ocidental Constitucional. Entre os outros, a promoção dos valores universais dos direitos humanos, noções inspiradas pelo Ocidente de independência da mídia e da sociedade civil, o ardoroso neo-liberalismo pró-mercado, e críticas niilistas do traumático passado do Partido Comunista Chinês.
Nesta mensagem, repassada aos quadros do Partido, se alerta para o perigo de forças ocidentais hostis à China, assim como os dissidentes dentro do país que continuam a infiltrar-se na esfera ideológica.
Pobre Liu Xiaobo, Prêmio Nobel da Paz de 2010, condenado a onze anos de prisão, culpado de “incitação à subversão do poder estatal”, por atrever-se a propor a introdução de ultra-moderada democracia na sua Carta 2008. Liu acaba de ter o cunhado Liu Hui condenado por ‘fraude imobiliária’ e também a onze anos, no que se crê seja odiosa perseguição política. Quanta às advertências de Xi Jinping, Liu Xiaobo as dispensa, pois desde muito já sente na carne os padecimentos e as misérias das masmorras chinesas. Elas, em verdade, nada ficam a dever aos calabouços dos tiranos do século XVIII, que inspiraram o Marquês de Beccaria, com a sua obra prima “Dos Delitos e das Penas”, publicada em 1764.
(Fonte: International Herald Tribune)
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