Engana-se quem define o que ocorreu
ontem na Câmara de Deputados como episódio lamentável. Decerto que é deplorável, mas não se trata de
episódio. O Houaiss define episódio como
fato acessório, mais ou menos ligado a um conjunto.
Portanto, a
inominável recusa do plenário da Câmara, oportunamente oculto pelo mui
conveniente voto secreto, não é um fato meramente acessório.A não-cassação pela Câmara do deputado por Rondônia Natan Donadon, ao cabo de longuíssimo processo, em que teve direito a todos os recursos, e a todas as prorrogações obtidas pelos advogados, a ponto de esgotar do réu não só os seus direitos legais, mas também a paciência dos ministros do Supremo, diante da descaradas repetições de apelações, sem outro óbvio propósito que o de ganhar tempo, essa não-cassação, repito, deveria ser lição para os senhores parlamentares que, se nos abstrairmos de uma única cláusula, a cassação do mandato, nestes casos, deveria decorrer da própria decisão do Supremo Tribunal Federal.
Os senhores deputados e senadores levantaram os seus broquéis, por trás das ameias dos castelos legislativos, para fazer valer a interpretação pro domo sua de que cabe a Câmara ou ao Senado em todos os casos autorizar a cassação do parlamentar respectivo.
Completado o longuíssimo processo – como é em Pindorama o usual -, não há desdouro algum em aceitar a decisão do Supremo. Se o caso desse deputado Donadon para algo servirá, será para evidenciar a insustentabilidade de refugiar-se atrás dessas folhas de parreira, que não ocultam seja o corporativismo, seja sobretudo o privilégio.
Alguém acaso acha estranho que nos Estados Unidos, a prisão de um congressista pode ser determinada por um juiz singular? E por que os deputados e senadores estadunidenses não dispõem do conveniente escudo da autorização do Congresso ? Porque a Constituição americana, que é do século XVIII, e não pode ser modificada por dá cá aquela palha, e tampouco atribui privilégios especiais aos representantes do Povo.
O Senhor Presidente Henrique Alves, envergonhado pela votação da Câmara, declarou que não colocará em pauta nenhuma outra cassação de mandato antes da derrogação do voto secreto, máscara muito conveniente em que se esconde o privilégio e que serve para o perdão corporativo. Debaixo deste pano sujo se escondem receptadores, estelionatários e criminosos comuns.
A memória parece curta na Terra da Santa Cruz. Sob o impacto do movimento do passe livre e do Brasil jovem que descia às ruas, o Congresso mostrou que anotara a lição e o que o Povo queria. Pena que parece ter sido por pouco tempo.
Para quem tem juízo, é rematada loucura esse outro tipo de manifestação, que se esconde covardemente atrás do sigilo do voto, sem enfrentar balas de borracha, “bombas de efeito moral” e quejandas violências das ditas forças da ordem.
Assim como as novas lideranças repelem as tentativas repulsivas de partidos corruptos se declaram “fichas limpas”, como hão de entender que o Congresso se atreva a levantar bandeira tão esfarrapada, de uma causa de criminoso comum, que já se valera de todos os recursos do arsenal dos leguleios, para tentar afastar as consequências de suas múltiplas infrações ao Código Penal ?
Como dizia um defensor célebre da Justiça – aquela com letra maiúscula – ‘será que o Senhor não tem vergonha nem qualquer limite?’
(Fonte: O Globo )
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