Quando me falam ou leio nos jornais acerca das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), a primeira imagem que me vem à mente é a da principal jornada na sua história, i.e. o dia da retomada pelo Estado do Complexo do Alemão.
Creio que estamos todos lembrados desse suposto grande dia, comemorado como se tivéssemos reavido um território irredento, vale dizer não sob o legítimo domínio do poder estatal. Com o apoio das Forças Armadas, o Estado do Senhor Sérgio Cabral e do Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, reincorporou com pompa e circunstância aquele vasto espaço metropolitano, por muito uma área encravada na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na qual a soberania do estado brasileiro não era um fator a ser computado no dia-a-dia dos moradores (a maior parte gente morigerada e trabalhadora, que tinha de deslocar-se a cada dia útil para ganhar o seu árduo pão cotidiano).
Por isso, a data foi comemorada de forma tão enfática, com direito até ao içamento das bandeiras pelas autoridades presentes ao ponto mais alto do morro, para sinalizar a magna conquista.
Sem embargo de tudo isso, do júbilo espontâneo ou de ocasião, confesso que a imagem de tais comemorações se foi aos poucos desbotando na minha mente, como aquelas fotografias de passados eventos que guardamos, sob o golpe da emoção, em caprichosos álbuns ou até na memória que sabemos traiçoeira.
E, não obstante as impressões algariadas, seja dos altos personagens presentes, seja até do povão que, nessas horas, deseja sempre acreditar, a tomada que me restou – não fotografia, porque parece de filmete antigo, daquelas de dezesseis milímetros – como me dizia um clínico inesquecível, ao descrever as impressões que ficam incisas no córtex cerebral, gravadas para o sempre de cada mortal.
Assim, a tudo se sobrepõe na memória a visão de estrada de terra atravessada por bandos de gente, que corre desabalada ou se apinha em caçambas de camionetes. Saídos não se sabe de onde, e rotulados de traficantes, esses magotes fogem de um poder que, naquele momento, ao invés de prendê-los, lhes contempla escafeder-se para o inominado casario à frente.
E a pergunta que lentamente se irá processar no dia-a-dia que virá depois do grande oba-oba será por que o Estado, a exemplo de um jogo de gato e rato, os deixa escapar para o provisório anonimato da megalópole, e não os detém para averiguações e eventual indiciamento? Será que tal escumalha vai mudar de vida ou desaparecer por milagre da mídia?
Enquanto as UPPs avançam e as zonas supostamente pacificadas se estendem, como reagir diante do tráfico que volta, aqui e ali – e também no Alemão – a determinar o fechamento do comércio, pela morte de um traficante, e o que é muito pior, não é arreganho no vazio, pois a ordem é obedecida.
E como avaliar a virtual expulsão também pelo tráfico do Afro-Reggae do Complexo do Alemão, se é afastado pelo trabalho que desenvolve em prol da comunidade, que deseja integrar para valer, trazendo a legalidade para aquele imenso espaço, e não como sites provisórios para as luzes passageiras da mídia e das novelas da tevê, que são as modernas histórias da carochinha?
Quando do entusiasmo sobre o modelo mágico das UPPs e das áreas pacificadas, me ficou na mente o discreto ceticismo de Luiz Eduardo Soares e de seu grupo, quanto às perspectivas da proposta introduzida pelo Secretário de Segurança José Mariano Beltrame. Naquele momento de exuberante acolhimento do instrumento para vencer a chaga do tráfico, semelha importante pensar com que barro são construídas as UPPs, para permitir o implante das áreas pacificadas.
Se não houver radical mudança no ethos do policial militar, como não duvidar da possibilidade de que, com todas as boas intenções, estejamos diante de obra de faz-de-conta? Assim, as áreas ditas pacificadas e as Unidades de Polícia Pacificadora seriam, na prática, duplicação da velha Polícia Militar, de que ora se discute a possível transformação. Mas se o barro for o mesmo, tudo não passará de jogo de palavras ou de espelhos?
O que aconteceu com o pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido desde o dia catorze de julho, depois de ter sido levado, para averiguações, à UPP da Rocinha, como é que fica? Será que a UPP é apenas a duplicata de outros locais, e ao contrário de unidade integrada na comunidade, será mais um posto de força agressiva e estranha, onde quem para lá é levado tem sobejas razões de temer acerca da própria incolumidade?
Por uma vez, estou de acordo com a Ministra Maria do Rosário, dos Direitos Humanos. Não é com o alçar retórico de lanças e escudos que se irá justificar essa ação. As suspeitas são fortes e não irão embora com argumentos bairristas. Não há qualquer dúvida que a UPP da Rocinha é a principal suspeita, e as sombras não se dissiparão enquanto a verdade, doa a quem doer, não apareça afinal.
(Fontes: Globo
on-line, O Globo )
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