sexta-feira, 9 de agosto de 2013

As Relações EUA - Rússia

                                      
          Com a dissolução da União Soviética, ao cabo da experiência Gorbachev  - que para enfrentar a crise do império soviético criara remédios tão potencialmente violentos como a perestroika e a glasnost (reestruturação e transparência) – sobreveio tumultuada fase em que a velha Rússia ressurgiu, e junto com ela muitas das nacionalidades que tinham sido absorvidas no correr dos séculos por Moscou.
         Se o Kremlin ficou com a parte do leão - a que de certa forma lhe cabia desse imenso latifúndio – repontaram a leste e a oeste países médios e pequenos, com herança nacional bem definida. Além dos países bálticos (Lituânia, Estônia e Letônia), repontaram a Bielorrússia, a Ucrânia, além de Moldova, Georgia, Azerbaijão e Armênia, e as grandes extensões ao sul da Sibéria: Kazakistão, Turkmenistão, Uzbequistão, Tadjikistão e Kirgizistão.
          O período de transição pós-URSS – com Moscou assumindo, como lhe competia naturalmente, a herança da superpotência no que tange à representação permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas – corresponde à formação da Federação Russa durante o atribulado período de Boris Ieltsin. Infelizmente a democracia que então se gestou para que o sistema e as suas liberdades pudessem perdurar teve de depender do dúbio dom de verdadeiro ovo da serpente.
         Ao criar condições para que viesse a ser sucedido por Vladimir Putin, egresso da antiga KGB, o círculo de Ieltsin teve de admitir a candidatura e posterior assunção de quem iria necessariamente desestabilizar a frágil democracia instituída sob o caótico governo da transição.
         O poder de Putin – que após a consolidação indispensável orientou-se sempre no sentido autoritário – tem prevalecido desde então, e continua a reforçar-se. O seu próprio sucessor Dmitri Medvedev, havido como um pouco mais liberal, não repontou como válida alternativa.  O predomínio de Vladimir Putin acentuou-se, com o controle da mídia e, na prática, da dócil justiça, a criação de mecanismos de repressão (multas pesadas para os manifestantes, processos encenados e instrumentalizados), a par da concentração do poder econômico (expurgados ou neutralizados os elementos discordantes, v.g. Khodorkovsky). Tudo isso sem falar no controle do Legislativo, a perseguição aos opositores políticos (graduados os meios de acordo com os fins), dentro de uma atmosfera de autoritarismo, em que o ar é retirado de todos os potenciais adversários, transformados em inimigos da ordem constituída.
         Dentro da lógica do regime, as cravelhas se vão apertando sempre mais. A ideologia é a do exercício absoluto do poder, reforçado pela sua concentração financeira. De acordo com essa linha, se a linguagem e as manifestações externas se diferenciam, na aparência, do ideário fascista, pelos seus objetivos e métodos, eles na prática se confundem, como farinha do mesmo saco.
         Por vezes, pessoas não muito preparadas nem versadas na análise do regime ora imperante na Federação Russa estarão contraditoriamente em condições de melhor captar a essência, as grandes vigas mestras da construção de Putin.
         Reporto-me à observação feita pelo candidato republicano Mitt Romney ao caráter de virtual inimigo da Russia em relação aos Estados Unidos. A campanha presidencial chegava ao fim e,na época, os entendidos em política externa fizeram pouco da declaração de Romney, que julgaram um tanto canhestra e não afinada quanto aos laços russo-estadunidenses.
           Vista, no entanto, pelo retrovisor, o juízo do desafiante de Obama tem ganho veracidade com o decurso do tempo.
           As relações entre Washington e Moscou continuam a deteriorar-se. No terreno da simpatia pessoal, os contatos entre os dois líderes não mostram traços dignos de serem acentuados. Talvez seja difícil estabelecer um relacionamento com pessoa da frieza e sisudez de gospodin Putin, mas muita vez os laços podem ser estreitados, se as partes encontrarem motivos que o justifiquem.
           Sem embargo, o viés adversarial se tem assinalado. Diante do pano de fundo do anterior acidentado relacionamento com a Secretária Hillary Clinton, são dignos de nota os esforços do ministro Serguei Lavrov em aproximar-se do novel Secretário de Estado John Kerry, a ponto de buscar vinhos de altos milésimos em banquetes oficiais. Esse meritório intento será baldado, porque o adjetivo tem o fôlego curto diante do substantivo e, por isso, a progressão de Moscou e Washington não cessa de desgastar-se.
          Enquanto o Kremlin apóia de forma resoluta a ditadura de Bashar al-Assad – porque não deseja perder o aliado e sobretudo a base naval de águas quentes, no Mediterrâneo Oriental – Barack Obama tem procrastinado tanto a expressão de um reforço mais determinado à Liga Rebelde Síria, que já surgem dúvidas se após tanto atraso ainda seja oportuna uma presença mais enfática naquela interminável guerra civil.
         Desde muito, Putin estigmatiza o escudo anti-míssil que o Ocidente pretenderia montar em áreas próximas à Rússia.
         Dentre as outras questões, o affaire Snowden contribuíu ainda mais para ensombrecer a atmosfera. De forma insistente, Washington, pelos seus diversos canais, expressou o desejo de que o governo russo atendesse o pedido de extradição do ex-técnico contratado da CIA, que foi parar na área internacional do aeroporto de Sheremetyevo (arredores de Moscou) com a suposta conivência da RPC.
          Depois de longa estada nessa área virtual de quarentena político-diplomática, as autoridades russas, inda que o timing fosse péssimo, concederam visto de residência de um ano na Rússia a Edward J. Snowden, sobre o qual pendia, de parte do Departamento de  Estado, de forma nada metafórica,  o cartaz de most wanted[1], se é que  uma imagem do velho Oeste seja admissível.
           Como se assinala, desde o fim da guerra fria, é a primeira vez que  Presidente americano cancela uma cimeira com o seu colega russo. Haverá, de certo, a reunião do G-20, marcada para daqui a seis semanas  em São Petersburgo. Nessa oportunidade não faltará ensejo para que os dois líderes se encontrem, mesmo que de forma perfunctória.
           Na declaração dada pela Casa Branca, o presidente decidiu adiar a reunião de cúpula, após concluir que não houve progresso bastante na agenda bilateral para dar sentido ao encontro.
            O comunicado semelha expressivo, ainda que a decisão que motivou o cancelamento da visita a Moscou é mencionada como se fosse um argumento secundário: “Dada a nossa falta de progresso em questões como a defesa missilística, o controle de armamento, relações de comércio e intercâmbio, questões de segurança global, direitos humanos e a sociedade civil, durante os últimos doze meses, informamos o Governo russo que acreditamos que seria mais construtivo se adiássemos a cúpula até que tenhamos mais resultados na nossa agenda em comum.”  O porta-voz Jay Carey disse, outrossim, em aditamento à declaração escrita, que a  ‘desapontadora decisão’ de conceder asilo temporário a Mr. Snowden “foi também um fator” para a decisão de Barack Obama.
 

 
(Fonte: International Herald Tribune) 



[1] Mais procurado.

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