Eleição em Moscou
Salta aos olhos a importância do posto, dada a sua localização. Logo após a condenação – no processo na interiorana Kirov, manipulado pelo Kremlin – de Alexei A. Navalvny, o que não foi surpreendente, não por causa da acusação, claramente forjada, mas pela circunstância de que o domínio de Putin sobre a magistratura é tal, que os vereditos dos juízes se pautam em geral pelas pretensões da promotoria.
No juízo de Kirov, o espanto foi duplo: ao invés dos seis anos (o máximo legal previsto), o juiz sentenciou Navalny por cinco; e, um dia depois, relaxou a prisão do opositor, enquanto o respectivo recurso foi julgado por instância superior.
Se confirmada a condenação, além do cárcere por cinco anos, Alexei Navalny não poderá candidatar-se ao pleito para a prefeitura de Moscou.
Todas essas variantes têm provocado perplexidade no eleitorado da capital, diante da candidatura de Navalny. Já conhecido, ele se apresenta com o nome e a idade (37 anos), a oposição a Putin e o combate contra a corrupção. Fala também de seu apartamento em Moscou, onde vive há 17 anos – o que o diferencia de Sobyanin, a criatura de Putin, com base na Sibéria, de que veio a mando do poder atual.
Dada a coragem e magnetismo pessoal – o seu slogan é ‘Mude a Rússia, começando por Moscou’ – o que torna pouco críveis as acusações de malfeitos pelos adversários, Alexei Navalny, na sua empresa contra o sistema Putin, enfrenta enormes desafios, a começar pela fraude na apuração generalizada, e as incógnitas com que joga o Kremlin, a começar pela data (ainda não divulgada) da decisão do recurso, que o mandaria de volta para a masmorra de Kirov, para cumprir os cinco anos de prisão. Alguém acaso espera que a própria demanda de anulação do juízo seja acolhida ? A par disso, será que Putin vai esperar até oito de setembro (data do pleito para a prefeitura), e correr o risco de que Navalny obtenha maciço apoio dos eleitores ?
É por causa deste evidente desequilíbrio – entre a ousada carga de Navalny contra a fortaleza do sucessor dos tzares – que o intento do principal opositor do regime é taxado de quixotesco por boa parte da opinião pública. Dará Putin a ele a oportunidade de virar o jogo, e de crescer no apoio do povo moscovita contra o apparatchik Sobyanin?
Custa crer, mas a história das batalhas pela liberdade não é feita pelos que têm fraco o ânimo, no respeito timorato dos que estão por trás das arrogantes muralhas do poder.
O processo de Erdogan contra os militares kemalistas
A própria circunstância de
sua realização diz muito sobre a atual situação política na Turquia. Ao cabo de
longa permanência no poder, o Primeiro Ministro Recip T. Erdogan se
sentiu com força suficiente para afrontar o estamento militar e os respectivos aliados
civis.
O seu
partido islâmico dito moderado instalou o processo, motivado por alegada tentativa de golpe de estado. E não
investiu contra os usuais suspeitos,
nem contra militares de baixa hierarquia. O principal réu, o general Ilker Basbug, chefe do Estado
Maior, foi condenado à prisão perpétua. Muitos outros oficiais militares foram sentenciado
a longas penas de prisão, assim como três membros do Parlamento. Esse processo – que pelo anterior respeito
prestado ao estamento castrense de guardiães do regime legado pelo pai da
pátria, o general Mustafá Kemal, o Ata-turk – impressionou pela ousadia na
virtual reversão da ordem precedente, com a enfática asserção do islamismo
contra o secularismo do fundador da república.Este mega-processo, que se estendeu por longo tempo, incluíu também jornalistas, o que foi visto por muitos como acerto de contas, além de enrijecimento do regime.
O anúncio do veredito em local afastado dos grandes centros – em Silivri, cidade costeira a oeste de Istambul – não dispensou as bombas de gás lacrimogêneo, jogadas contra os manifestantes que, apesar das dificuldades, conseguiram chegar às cercanias do tribunal, a protestarem contra a sentida arbitrariedade do procedimento judicial.
Há mais de uma década no poder, Recip Erdogan, em junho último, no que lhe parecia obstáculo de somenos, tropeçou no seu menosprezo à vontade popular, no projeto de arrasar a remanescente praça em Istambul, a pretexto de aí construir um shopping mall. Pela própria persistência, a disposição dos manifestantes terá surpreendido o Primeiro Ministro, que se julgava próximo de emenda constitucional que lhe ensejasse transformar o regime de parlamentarista em presidencialista.
Expressão, sem dúvida, da húbris de Erdogan o processo-monstro (trezentos acusados entre militares, jornalistas, parlamentares e outros !) logo vestiu os seus sombrios trajes de intimidação à opinião (muitos indiciados por desrespeito ao princípio da turquicidade, um conceito fascistóide de que fora antes increpado ao Prêmio Nobel de literatura Orhan Pamuk ). As sentenças contra jornalistas – que vão de seis meses a 22 anos de prisão – mostram que a pretensa democracia islâmica de Erdogan, como todo oxímoro[1], representa maneira canhestra de valer-se da justiça para viabilizar a caça às feiticeiras[2]. No contexto, o caso presente apenas contribui para mostrar o que vale a democracia na terra de Erdogan, que a organização ‘repórteres sem fronteiras’, com base em Paris, denominou “a maior prisão mundial para jornalistas”. No índice da liberdade de imprensa, a Turquia está em 154º (dentre 179 países).
Recip Erdogan não terá doravante a vida fácil, dada a discrepância entre as suas pretensões a estadista e a tirânica realidade prevalente sob o diáfano véu de uma muito adjetivada democracia. Compreende-se, dessarte, a resistência – e não só da Grécia, mas também da Alemanha de Frau Merkel – ao projeto turco de ingressar na União Europeia.
Em boa hora, os fundadores da Europa unida estabeleceram como premissa da adesão o respeito à democracia como traço de união entre seus membros.
(Fonte: International Herald Tribune )
[1] Na definição do Houaiss:
figura de retórica em que se combinam palavras de sentido oposto, que parecem
excluir-se mutuamente, mas que no contexto reforçam a expressão (v.g. obscura
claridade)
[2] Na surrada estória da chasse aux sorcières,em que tantas
infelizes feiticeiras pararam na
fogueira, tanto na Salem da América Colonial, quanto no sul da França...
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