O filme de Bruno Barreto trata com delicadeza da paixão entre a arquiteta/paisagista Lota de Macedo Soares (Gloria Pires) e a poeta Elizabeth Bishop (Miranda Otto). A delicadeza e o cuidado são características não só do tema de Flores Raras, mas de sua inteira composição.
Todos os demais personagens estão ali para compor o mural. Até a própria Mary (Tracy Middeldorf), a companheira de Lota, diante da qual subitamente um valor mais alto, na escala do amor, se alevanta, é um acessório do destino. A sua presença alia a aparente resignação das boas maneiras com os véus da ambiguidade, na perene ronda das relações truncadas.
O mesmo esmero comparece na reconstituição de época. Na viagem que pretendia ser breve aos mares do sul, e aos sortilégios da ambiência quase pós-colonial para a poeta, ainda vulnerável às críticas do colega Robert Lowell (Treat Williams), o espectador mergulha no tempo dos navios da McComarck. Assim, a linha do Equador não é para Elizabeth uma ficção cartográfica. Discreta sineta lhe anuncia a passagem, quiçá com todos os mistérios de que Hollywood dava visão rápida e superficial.
Como outras grandes relações, o conhecimento e a imersão em realidade tropical, luxuriante mas não caricata, condiciona os tropeços iniciais, que decorrem da abismal diferença entre as visões da emproada e, sem embargo, defensiva americana, e a transbordante naturalidade de arquiteta e paisagista da elite de então.
O sítio de Samambaia – que a câmera nos apresenta com o verde insinuante e mutante do trópico, matizado pelo traço caprichoso dos jardins, e a casa saída das pranchetas de Lota – é um quadro onde a interação da quase sinfonia do verde nos recorda o mundo protegido, em que natureza e privilégio ainda se dão as mãos.
Caída quase de paraquedas em cenário onde o pitoresco parece enlaçar-se no quase-colonial, Elizabeth dissimula sem o saber a sua insegurança diante de um entorno invasivo, com a rudeza da americana, que pensa estar cercada de gente sem cultura, com as usuais limitações dos calorentos trópicos.
Não tardará, porém, o aprendizado aculturante da poeta. Amigo de Lota, e despojado pelo roteiro dos espinhos do polemista agressivo surge Carlos Lacerda (Marcello Airoldi), que chega a completar os versos finais de poema que Elizabeth, quiçá por menosprezar-lhe o conhecimento, se recusara a dizer.
Em outro jantar, Elizabeth constrange o embaixador americano e os convivas brasileiros com a censura pela passiva aceitação do golpe militar contra presidente eleito por um povo que vai jogar futebol no dia seguinte à perda da liberdade.
Através da interação com Lota a americana vê uma inócua passagem de uns poucos dias ou semanas por terras tão ao sul do colosso norte-americano converter-se em projeto existencial de dezessete anos. E apesar dos problemas com a bebida – de que Lota partilha – a sua experiência a leva para as alturas do Prêmio Pulitzer.
Lota convencerá o recém-eleito governador da Guanabara a transformar o areal do aterro do Flamengo em grande parque arborizado e iluminado pela lua dos postes de cinquenta metros.
Mas a mão cruel da deusa Fortuna prepara a peripeteia da tragédia. Assim, irá transformar a fraca Elizabeth em forte, com o movimento inverso na antes afirmativa Lota. Nesse caso, a ironia na reversão dos papéis não será mero jogo de salão, pois carrega no bojo a vingança dos deuses, soprada por quem trará as duas para baixo, sem outra paga que a de desfazer o que nunca terá de volta.
Bruno Barreto com “Flores Raras” insere na sua filmografia mais um título de relevo.
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