O Ministério das Relações Exteriores não convive bem com o noticiário que vejo ora estampado na imprensa. Entende-se que os profissionais a integrá-lo prefiram a discrição e não esse gênero de cobertura jornalística que coloca a Casa de Rio Branco sob luz reservada a outros tópicos, mais consentâneos com o sensacionalismo da mídia.
Diga-se, de pronto, que o diplomata atua com a cautela do ofício e não o faz por idiossincrasia ou corporativismo. Nos países com tradição diplomática, por representar o Estado, ele terá sempre presente tal condição, e agirá em consequência.
Foi graças à diplomacia, e desde os tempos do Brasil colônia, com o grande Alexandre de Gusmão, que a Terra de Santa Cruz tem encontrado profissionais competentes para cuidar de suas magnas questões. Como o secretário de D. João V nos ensina, nada deve ser deixado à improvisação. E toda a preparação do Tratado de Madri é prova desse método abrangente e providente, de um pequeno e fraco reino que, em não dispondo da força das grandes potências de então, não podia descurar do planejamento político, das expedições de bandeirantes e de padres matemáticos, da localização dos fortes, e do preparo dos mapas.
Não é por acaso que o Brasil tem as dimensões atuais, e as fronteiras demarcadas. Colônia, Reino, Império e República através de pessoal competente cuidaram que os sonhos dos bandeirantes se tornassem realidade. A despeito das mutações na política por todos esses regimes coube a funcionários de escol, com a cultura dos maços, dos antecedentes e dos tratados, manter acesa a tocha da nacionalidade em fronteiras seguras e respeitadas. Só o trabalho aturado e uma política de estado, não condicionada por ideologias e questiúnculas de partido, ensejou que a Alexandre de Gusmão se sucedessem personalidades do realce de Duarte da Ponte Ribeiro e o Barão do Rio Branco.
O sucesso brasileiro, respaldado não em patriotadas, mas na atividade de Chancelaria, está por trás dos êxitos do Barão, quando os litígios territoriais foram resolvidos por laudos arbitrais, que nos deram pleno ganho de causa.
Para tanto, o Barão se fundou nas gestões de chancelaria, nos mapas e nos demais documentos que embasam a doutrina do uti possidetis. Nada foi deixado ao acaso e aos ventos inconstantes dos movimentos de opinião. Como Jaime Cortesão o demonstra em seus muitos livros, está nos velhos mapas e no esforço que registram – não só de sertanistas e bandeirantes, senão dos próprios padres matemáticos – a indicação segura dessa grande empresa em que gerações de portugueses e brasileiros se passaram o bastão do magno cometimento.
No que tange à Bolívia e os nossos laços com aquele país, o governo petista de Lula da Silva fez o que até o regime militar tivera a prudência de evitar. Quando o Presidente Evo Morales, ao arrepio dos acordos internacionais, mandou invadir as dependências ocupadas pela Petrobrás – que lá estava por documentos firmados entre os dois países – Lula da Silva permitiu que a ideologia se sobrepusesse à política de estado. Caímos assim na vala comum das inconstâncias de partido, de que todos os nossos ministros do exterior se tinham mantido à distância.
A mistura de interesses partidários e de Estado não dá bons pratos, como se viu em Honduras, e no Paraguai. Política externa não é coisa tão simples quanto apareça para o vulgo, e nela as intromissões descabidas dos aprendizes de feiticeiro em geral dão no que dão.
Não foi à toa que o estamento militar – a quem incumbe a defesa da pátria – tenha sabido respeitar o conhecimento acumulado de outra carreira de estado – no caso, a diplomática – e, enquanto não deixaram considerações ideológicas nortearam essa política, não lhes couberam os problemas que caem sobre os improvidentes que se julgam acima das intricâncias do ofício diplomático.
Se o Brasil de Lula não soube dar o limite à iniciativa ilegal do então novel presidente Evo Morales, invadindo a área de empresa brasileira que lá estava por força de acordos internacionais livremente pactuados, fica mais fácil de entender as traquinagens do senhor Morales, que até mandou vistoriar aviões brasileiros que transportavam nossos ministros.
O Direito de Asilo, esse instituto latino-americano que é decorrência da prepotência dos governos da vez contra os seus opositores (a que soem considerar como inimigos) tem regras estabelecidas, fundadas na exterritorialidade da residência e da chancelaria das missões acreditadas.
Dentre essas, está a concessão de salvo-conduto à personalidade asilada. Expedido pelo poder territorial, dá segurança ao asilado diplomático, acompanhado de agente diplomático (da missão que concedeu o asilo) para rumar a aeroporto, ou qualquer outro ponto que lhe permita sair do país, a fim de transferir-se ao solo do Estado que lhe concede asilo territorial.
Há convenção internacional sobre isto, mas o Governo de Evo Morales, movido por motivos nunca bem esclarecidos, se recusou por 455 dias em providenciá-lo para o desafeto presidencial, o senador boliviano Roger Pinto Molina.
O governo petista – e não os diplomatas, como o Ministro Eduardo Paes Saboia, até poucos dias atrás Encarregado de Negócios em La Paz, que tiveram de conviver com esse absurdo jurídico, político e pessoal que é permanência, por despótico e idiossincrático capricho do Caudilho, em ambiente destinado ao expediente e não à residência da chancelaria da Embaixada brasileira do asilado, em um cubículo apropriado para as comunicações – foi quem criou este monstro, gerado por acintoso desrespeito ao direito internacional público.
Por demasiado tempo, a chancelaria brasileira, então chefiada pelo Embaixador Antonio Patriota, permitiu que tal deboche, digno de republiqueta – como o asilo do peruano Victor Raul Haya de la Torre, por três anos na embaixada da Colômbia em Lima que motivara a negociação de tratados para evitar a repetição desses abusos – se delongasse muito além de qualquer limite do bom senso e da prática diplomática. O ato assumido pelo Encarregado de Negócios a.i. do Brasil foi motivado por uma situação limite.
O que espanta é que a Presidenta tenha considerado desastrosa a ação do Ministro Saboia. Não se deteve, no entanto, na negligência do Estado brasileiro em permitir que tal situação se eternizasse, enquanto as relações com o Presidente Morales perduravam no diapasão da normalidade.
Por isso, considerar como quebra de hierarquia a iniciativa do Encarregado de Negócios no que tange à direção pelo Ministro Antonio Patriota do Itamaraty, soa para os profissionais do ramo como, no mínimo, altamente discutível. Declarar, ainda por cima, que abriu crise com o governo de Evo Morales, já entra em humor negro.
Senhora Presidenta, o fato de dormir sobre os maços e de ter a última palavra, não a exime, s.m.j., do respeito à coerência e ao bom senso.
Enquanto o Señor Evo Morales, Presidente Constitucional da Bolívia, fizer o que lhe der na venta, os problemas – e não por geração espontânea – continuarão a acontecer na Bolívia, e a repercutir, se for o caso, no Brasil. Porque como nos ensinam os nossos maiores, fantasma sabe para quem aparece.
(Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo, obras de Jaime
Cortesão, notadamente O Brasil nos Velhos Mapas; e Alexandre de Gusmão e o
Tratado de Madrid ; Tratado de Direito Internacional Público, vol. I, de Hildebrando Accioly)
Um comentário:
Parabéns ao bloggeiro por este texto lúcido e incisivo. Oxalá o MRE retome o rumo da excelência e do papel de estado.
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