quarta-feira, 28 de março de 2012

Uma Celeuma Americana

                                
       A Lei da Assistência Sanitária Custeável (Affordable Healthcare Act) aprovada pelo Congresso estadunidense e sancionada pelo Presidente Barack H. Obama a 23 de março de 2010, não contou com sequer um voto favorável dos senadores e deputados republicanos.
      Dada a cisão política nos Estados Unidos e a cristalização do sectarismo partidário, a prática do bipartidismo, usual no passado – como se assinalara nas grandes iniciativas legislativas de Franklin Delano Roosevelt e Lyndon Baines Johnson – tornou-se nos dias correntes apenas fugaz lembrança, impensável pelo atual antagonismo e enrijecimento à direita de um G.O.P.dominado pelo milenarismo evangélico.
     Desde o início do século passado, muitos presidentes americanos – a começar pelo republicano Theodore Roosevelt, o 26º presidente – tentaram introduzir a assistência médica pública. Somente Obama, o 44º, alcançaria tal objetivo, embora a lei aprovada ainda deixe  número substancial de cidadãos não cobertos por esse instrumento.
    Na elaboração do projeto, a chamada opção pública – a criação de  agência federal que estenderia a assistência a todos os americanos e demais residentes nos Estados Unidos – foi infelizmente descartada. Tal se deveu sobretudo à intenção de atrair apoio de republicanos moderados – uma espécie em processo acelerado de extinção – para o Plano Geral. Diante da oposição de um punhado de senadores democratas da linha conservadora, se privilegiou, outrossim, a formação nos estados de associações  que se encarregariam dos respectivos planos gerais de saúde.
     Há duas consequências de monta na alternativa escolhida: desapareceu a entidade que, negociando com os planos particulares de assistância, assim como as redes de hospitais, teria mais condições de forçar um barateamento relativo dos altos custos médicos (os mais elevados no mundo) prevalentes nos Estados Unidos. A sua substituição por diversos entes estaduais fragmentaria o poder de negociar e, por conseguinte, de lograr reduzir os custos relativos.
    O outro efeito reside na necessidade de cobrar-se uma contribuição de cada cidadão. Há o requisito, estabelecido pela nova lei, que obriga quase todos os americanos a adquirir cobertura de seguro de saúde, ou então ser passível de cobrança de penalidade financeira. Essa condição suplementa o requisito de que as companhias de seguro devem aceitar  todos os requerentes, mesmo aqueles pacientes com problemas médicos preexistentes.
     Desde a sua sanção que a Lei da Assistência Médica Custeável vem sofrendo insidiosa campanha, que a apresenta nos trajes do suposto ‘Obamacare’. A deformação de sua autêntica  natureza e propósitos só é inteligível em ambiente radicalizado, com a consequente toldada visão dos que não se atêm aos fatos, mas às projeções difundidas por  seus detratores. Dessarte, o desígnio de estender a todos os americanos o guarda-chuva da assistência sanitária passou a ser caricaturado como se fora projeto socializante de impor ao indefeso cidadão comum a obrigação de submeter-se a um plano coletivista de cuidados sanitários.
     É de estarrecer que argumentação tão primária e capciosa haja logrado ser aceita por grandes parcelas da cidadania (pesquisa Gallup chega a estabelecer que 72% a consideram inconstitucional). Surpreende, assim, ainda mais que o destino da lei que se propõe ampliar a assistência médica possa ser contestado. Com efeito, os EUA são o único país no mundo industrializado a não dispor de  sistema nacional de saúde. Dezenas de milhões de habitantes ainda não dispõem de nenhuma cobertura, e o  que mais espanta é que exista deles um grande número  que julga estar preservando os próprios direitos individuais na sua raivosa negação do novo instituto legal.
    A impopularidade da lei é um espelho também da inépcia da Administração democrata de evidenciar o que realmente significa, e que conquista representa para o homem comum. Não há interesse quantificável nem liberdade alguma em ser passível da exploração exacerbada de parte dos agentes privados da assistência médico-farmacêutica (como continuará a ocorrer se a lei for repudiada). É lamentável que a paixão política consiga obnubilar a tal ponto o raciocínio de cidadãos nas faixas mais baixas de renda. Esse tipo desonesto de propaganda alcança mesmo o feito de afastá-los de concreto e tangível benefício, ao fazê-los, na prática, passar  a execrar a oportunidade de serem tratados de forma digna e gratuita.
     Ao negarem peremptoriamente a assistência que lhes é proporcionada, os republicanos e demais simpatizantes  verberam a oferta vinda da outra parte. Com a encarniçada ajuda dos pregadores da extrema-direita – com acesso ilimitado ao rádio e à tevê - o financiamento abundante dos gerarcas do estamento do GOP (com à frente os sólitos bilionários irmãos Koch) o que é bom vira mau, a partir da singela razão de que nada que valha a pena pode vir do lado democrata e liberal (leia-se esquerdizante) da sociedade.
     Assim,  absurdo histórico, uma anomalia no mundo, pode tornar-se realidade dentro em breve. Nesta semana, foi aberto o debate junto a Suprema Corte da nova lei.  Como abnegados fautores da causa republicana, diversos procuradores estaduais foram bater nos tribunais, arguindo a inconstitucionalidade da lei da assistência médica para todos. Chegados ao penúltimo nível, há tribunais  federais de recurso que a consideram constitucional, e outros, inconstitucional.   
     Como seria de esperar-se, a Corte decidiu conhecer e julgar a causa. Dada a sua composição presente, e a sua tendência expressa em sentenças que têm revertido posições relevantes do passado – como a Citizens United, que abriu as cancelas para o dinheiro influenciar os pleitos, com grave prejuízo de parte do eleitor, cada vez mais vulnerável a influências indevidas pelo poder econômico irrestrito - só um ingênuo, um anacrônico Candide formaria a convicção de que os politizados juízes defenderão o interesse da sociedade civil. Subsiste, na realidade, a probabilidade de que, a exemplo de leis promulgadas no New Deal de FDR, também nos dias que correm seja possível tornar írrita a Lei da Assistência Sanitária.
     Em ano eleitoral, sobrepaira esta tentação republicana de derrubar a principal realização do governo Obama. Para realizá-lo, teriam um duplo interesse: enfraqueceriam o candidato democrata à reeleição em novembro p.f., a par de anular inequívoca  conquista, a qual nem republicanos, como o primeiro Roosevelt, nem democratas, como Johnson, haviam antes conseguido.
     A atual Corte, presidida pelo Juiz John G.Roberts Jr. tem inegável viés de direita. Com efeito, há outros três juízes (Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Alito) que pelas suas posições de direita apóiam em geral as causas do campo conservador. As indicações do Presidente Obama vieram substituir juízes também liberais. Assim, a par de Stephen Breyer e Ruth Ginsburg, a ala renovadora tem Sonia Sotomayor e Elena Kagan. Resta o juiz Anthony Kennedy que retém, na prática, o voto de minerva, e que, em casos relevantes, decide da vitória de uma ou outra ala. É séria ameaça, por conseguinte, a sua tendência em grandes casos a favorecer a linha conservadora. Não se deve esquecer que foi o fiel da balança na decisão que ‘elegeu’  George W. Bush em detrimento de Al Gore. Constituiu precedente a não ser olvidado, na única sentença da Corte a intervir diretamente no processo eleitoral, determinando a suspensão da recontagem de votos na Flórida (o que deu a Casa Branca a Bush júnior).
         A perspectiva de que a Reforma da Assistência Sanitária venha a ser derrogada pela Suprema Corte não pode, portanto, ser desconsiderada. Não é das menores tal possibilidade, que, se não houver complicações jurídicas, seria enfim conhecida, segundo a prognose dos especialistas,   por volta de junho p.f.
 



( Fonte: International Herald Tribune )                                  

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